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GEDOC- Grupos de Estudos e Intercâmbio de Documentos, Informações e Experiências (1969-1970)

“Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar…”

Era o tempo do unanimismo em ditadura e da afirmação colonial pela força das armas.

Num jogo de gato e rato com a Censura Prévia, surgem, entre 63 e 69, publicações como o Boletim Direito à Informação, policopiado, seguido de África Livre, de curta duração, os Cadernos Necessários e o Boletim Anti-colonial. Também a Cooperativa Pragma (64/67) – Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária, SARL, que verá as suas portas seladas pela PIDE e presos os elementos da sua direção. A publicação da revista Concilium, que traduzia para português as dinâmicas conciliares, foi suspensa em 1965 e, como esta, a revista do ISET (Instituto Superior de Estudos Teológicos), a revista A Palavra e o Tempo, do Seminário dos Olivais, e os próprios GEDOC.

GEDOC- Grupos de Estudos e Intercâmbio de Documentos, Informações e Experiências

O Concílio Vaticano II (1962-1965) revelara-se uma pedrada no charco. De João XXIII a Paulo VI, as novas Encíclicas sustentam leituras críticas do regime, em particular a Pacem in Terris, de Abril de 1963, pela doutrina de paz social que expressa e, em 1967, a Populorum Progressio de Paulo VI, que, reconhecendo o direito dos povos a decidirem de si próprios, abriu as portas à condenação do colonialismo português, sustentado, desde 1961, através de uma guerra colonial que o levará a um progressivo isolamento internacional, e à censura da Organização das Nações Unidas (ONU). Internamente, à crispação social, traduzida em crises académicas, greves operárias, aumento da emigração clandestina, fuga à guerra e a uma situação económica e social sem perspetivas, e em agitação política, o governo responde com repressão violenta.

No dia 1 de Janeiro de 1969, teve lugar uma “Vigília da Paz em S. Domingos”, vigília de oração segundo o tema da mensagem papal – “A Paz é possível”. Mais tarde, na Capela do Rato, de 72 para 73, a vigília foi acompanhada por uma greve de fome pelo fim da guerra colonial e termina com a intervenção policial, detenção dos participantes e demissão dos que dentre estes eram funcionários públicos. Outras reuniões de “católicos progressistas” se realizaram – de clero, e de clero e leigos. Deram brado na imprensa conservadora, e descontentamento nas estruturas, as realizadas em 1969, em Cascais e no Entroncamento, com participação de “Gedoques”.

Os Cadernos GEDOC surgem em circulação clandestina a partir de fevereiro de 1969. Tratando-se de um formato Caderno não seria obrigado a exame prévio pela Comissão da Censura, mas um “livro” sujeito a apreensão posterior. Temendo-se que a publicação pudesse ser acusada de periódica apesar do formato, a partir do nº7 os Cadernos são titulados, por ordem alfabética, com nomes de profetas, possuindo os leitores habituais a chave sequencial (Gedeão. Habacuc, Ismael, Judite). Não obstante, com a apreensão do caderno JUDITE foi instaurado um processo pela PIDE, que só teve o seu desfecho no Tribunal Plenário, em 1973, levando à absolvição dos arguidos, entre eles Nuno Teotónio Pereira.

Os Cadernos GEDOC apresentam uma estrutura interna que organiza a leitura e os conteúdos genericamente dividida em Documentos, Testemunhos, Estudos e Informações. Têm como objetivo catalisar a reflexão e a discussão em torno de questões que o grupo entende colocarem-se com maior acuidade aos católicos, sendo que os membros do movimento não fazem seu o pensamento dos documentos publicados. Fazem sua – isso sim! – a preocupação de terem o mais largo acesso à documentação que lhes permita uma crescente consciência cristã adulta, a uma informação verídica e completa, a reflexões que os façam avançar dinamicamente na direção do mundo novo (GEDOC nº3, caixa, p. 8). Grande número destes documentos são provenientes de França, Holanda e da América Latina, e de lugares de exílio de tantos portugueses. Tendo como pano de fundo o Concílio Vaticano II, refletem, no primeiro caso um pensamento teológico mais dirigido à renovação interior da Igreja, enquanto os sul-americanos expressam uma tensão social e política que inevitavelmente entra nas consciências e condiciona tomadas de posição. Os documentos oriundos da Holanda revelam especificidade e pioneirismo na aplicação das decisões conciliares, pelo que são uma referência importante nos Cadernos.

Os Cadernos são publicamente desautorizados pelo Cardeal Cerejeira, em Carta ao Clero, de 24 de fevereiro desse ano; em 1970, a PIDE/DGS encerra as atividades do Grupo, vindo a processá-los por «associação ilegal» e por «incitamento à desobediência colectiva». É a forma de tratamento que o Estado Novo aplica sistematicamente como mecanismo de controlo do poder e da unanimidade acrítica da Nação, desafiando a própria constitucionalidade, indo da censura e exame prévio à escrita, ao cinema, ao teatro, a todas as expressões culturais, passando pela interdição do direito de reunião, associação e manifestação, à violação da liberdade de consciência de cada um, até ao internamento por tempo indeterminado, por ação da polícia política e dos Tribunais Plenários.

Para comunicação entre os elementos ativos, contou-me o Nuno, utilizariam, para além do mão a mão, envelopes timbrados de empresas onde eventualmente trabalhariam, incluindo serviços do próprio Estado, a fim de tentar escapar à curiosidade da Censura. Também a interrupção das listagens de adesões, que vinham sendo publicadas nos Cadernos, se deveu a cuidados necessários com a preservação da identidade dessas pessoas, a partir do momento em que se deu conta das implicações.

Em documento distribuído pela rede de aderentes ao Grupo, a folha de rosto apresenta um pequeno texto de Martin Luther King, que ilustra o espírito que os anima:

Não vos posso prometer que não vos batam.
não vos posso prometer que não vos assaltem a casa.
não vos posso prometer que não vos magoem um pouco.
APESAR DISSO TEMOS QUE CONTINUAR A LUTAR PELO QUE É JUSTO
com esta fé seremos capazes de trabalhar juntos
de rezar juntos, de lutar juntos
de irmos juntos para a prisão
de construirmos juntos a liberdade
sabendo que um dia seremos livres

Nuno Teotónio Pereira foi elemento ativo de todas estas ações, foi o organizador do Caderno GEDOC Ismael (nº8), o autor das capas dos Cadernos não tipográficos, e a sua vida é expressão da sua coerência com os princípios que adotou, do sentido de comunidade, cidadania e justiça social, e da integridade mantida, a despeito das perseguições e da prisão em que se encontrava em 25 abril de 1974. A ele, e à Luísa, devo o meu 1º “abrir o olho” para fora da massa desinformada e acrítica. Obrigada!

Maria Teresa Macara
Janeiro de 2022

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