É para mim uma honra ver-me associado a uma realização de tão grande prestígio como o Festival de Teatro de Almada. Prestígio aliás que cresce de ano para ano, pois em cada nova edição o Festival – como tivemos ocasião de verificar quando há pouco Joaquim Benite anunciou a programação deste ano – cresce em ambição e supera-se a si próprio.
Foi dito que a distinção recebida fica a dever-se à minha actividade em projectos de espaços teatrais. Parece-me francamente um exagero, já que, tanto o 1º Acto de Algés, como o Lourdes Norberto, de Linda-a-Velha, foram adaptações de espaços pré-existentes e com fortíssimas limitações. E quanto ao Teatro Taborda, tratou-se essencialmente de um restauro, embora com adição de novos espaços. E em todos os casos trabalhei em colaboração com colegas: Luís Moreira e Gastão Cunha no 1º Acto, Carlos Reis em Linda-a-Velha e Bartolomeu da Costa Cabral no Taborda. E o que se destaca realmente neste conjunto de obras modestas foi o importante papel que o 1º Acto desempenhou, nos anos anteriores ao 25 de Abril, no campo da resistência cultural, cívica e mesmo política ao obscurantismo e à opressão da ditadura. Mas isso ficou a dever-se ao entusiasmo, à coragem e à enorme dedicação ao teatro de Armando Caldas, que hoje dirige o Grupo Intervalo, sediado em Linda-a-Velha, demonstrando assim que aquelas suas características não esmoreceram.
Há no entanto, nesta distinção que a Companhia de Teatro de Almada me quis fazer, um aspecto que me tocou particularmente: trata-se da intensa relação que ao longo da vida tenho mantido com esta terra desde a mais recuada infância e a que a ligação ao Festival do ano 2000 acrescenta mais um elo. Essa relação tem como bases, por um lado, o facto de meu Avô possuir uma quinta entre Almada e a Cova da Piedade, no Pombal, onde vinha passar férias prolongadas e, por outro, a existência, no cais do Ginjal, dos armazéns de exportação de vinhos da firma Theotónio Pereira, dotados de residências e também de uma pequena quinta. Foi numa dessas casas que o escritor almadense Romeu Correia passou a infância, já que seu Avô era o encarregado-geral dos Armazéns.
Foi mercê destas circunstâncias que fiz o exame da então 4ª classe em Almada, na velha Escola Conde de Ferreira, pois era aluno da professora Adelaide Coutinho, grande figura do ensino, há alguns anos homenageada. E lembro-me muito bem das numerosas fábricas do Caramujo ainda em plena laboração, da vincada marca proletária da população de Almada de então, da existência de uma oficina de ferrador na Rua Capitão Leitão – na altura a principal artéria da vila – e até de ter assistido a uma das últimas corridas na Praça de Touros de Almada, situada no campo de S. Paulo e há muitos anos demolida.
Foi nessa época que vim fazer uma visita com meu Pai a umas tias idosas aqui à Casa da Cerca, tendo ficado muito impressionado com a escuridão das salas iluminadas por bruxuleantes candeeiros de petróleo. É extraordinário verificar como esse enorme casarão, que me aterrorizou na infância, se transformou neste magnífico espaço transbordante de vida e de cultura , que considero um dos muitos prodígios operados pelo Poder Local democrático. Efectivamente, não só a Casa da Cerca foi objecto de uma recuperação exemplar em termos arquitectónicos e paisagísticos, como o Centro de Arte Contemporânea aqui posto a funcionar sob a orientação do pintor Rogério Ribeiro constitui uma instituição modelar de promoção e irradiação cultural.
Voltando às minhas ligações a Almada, quero aqui referir um outro episódio na altura em que era aluno do antigo 2º ano no liceu Pedro Nunes, em Lisboa. Tivemos um extraordinário professor na cadeira de Português, ainda jovem, mas de aparência frágil, que era adorado pelos estudantes pela competência e dedicação que punha no ensino e na relação connosco. Um dia esse professor deixou repentinamente de aparecer e com muita pena não soubemos mais dele. Só passados 30 ou 40 anos vim a saber o terrível drama que se passara: o professor fora preso pela odiosa Pide e desterrado para o campo de concentração do Tarrafal, não sobrevivendo muito tempo. Esse Homem era cidadão almadense e tem hoje o seu nome no jardim central da cidade: Alberto Araújo, membro destacado do Partido Comunista Português. Tenho uma fotografia dele com um grupo dos seus alunos, tirada no Liceu, de que há anos enviei uma cópia ao dr. Alexandre Flores, que se vem dedicando à publicação de interessantes volumes sobre a História de Almada.
Passados uns dez anos, encontrando-me a estudar Arquitectura na Escola de Belas Artes, meu Pai, Luís Theotónio Pereira, então Presidente da Câmara de Almada, desafia-me a fazer o projecto de um miradouro na Boca do Vento, local privilegiado de vista para Lisboa, onde acaba de ser construído o novo elevador para acesso ao Ginjal. Inspirei-me em algumas obras semelhantes que Keil do Amaral acabara de construir no novo Parque Florestal de Monsanto, com a tradicional pérgola e paramentos de tijolo à vista. O miradouro foi há pouco demolido – o que não lamento, pois está a ser construído no seu lugar um restaurante panorâmico de boa arquitectura. E por falar em meu Pai como Presidente da Câmara, quero lembrar que foi no seu mandato que se construiu o sistema de abastecimento de água a todo o concelho, projecto da responsabilidade do Eng.º Pais Clemente, ao tempo director do Instituto Geográfico e Cadastral. Em artigo recente publicado no nº 2 da revista cultural “Anais de Almada” faz-se uma referência a esta importante obra, mas lamentavelmente omite-se a quem ela se ficou a dever.
Também por essa altura me lembro de ter levado os meus colegas de curso à Quinta do Pombal, ainda quando toda a área compreendida entre a antiga Almada e a Cova da Piedade era rural. Entre esses colegas contava-se o arquitecto Manuel Taínha, que ainda há pouco teve uma bela exposição sobre a sua obra aqui na Casa da Cerca. A vila já manifestava tendência para crescer e pensámos como aquela encosta suave, voltada a sul e com vista para o Alfeite e o Mar da Palha, tinha óptimas condições para uma expansão urbana exemplar, ao estilo da “Ville Radieuse” de Le Corbusier, cujas ideias nos fascinavam. Não foi isso que aconteceu e toda aquela belíssima área acabou por ser estragada com as banais urbanizações da periferia.
Na década de 50 fiz um ante-projecto de um cinema para a Cooperativa Piedense, cuja construção entretanto não se concretizou. E aqui recordo as relações com o pujante movimento cooperativo da Margem Sul e as fraternas celebrações do Dia Mundial da Cooperação, a 1 de Julho, congregando as várias correntes de oposição à ditadura.
Mais tarde, nos anos sessenta, é-me dado fazer o projecto da nova igreja paroquial de Almada, juntamente com os colegas Nuno Portas e Luís Moreira. Este trabalho realizou-se logo a seguir ao da igreja do Coração de Jesus, paróquia rica de Lisboa, e que obteve o Prémio Valmor. Em Almada empregámos materiais mais baratos, pois havia pouco dinheiro, mas empenhámo-nos em que a igreja, com uma forte presença na cidade, tivesse toda a dignidade. Por isso dizíamos que era a versão pobre da igreja de Lisboa.
Mas essa igreja tem conhecido alguns infortúnios. O primeiro foi não ter sido construído o corpo destinado aos serviços de carácter social, cultural e educativo – exactamente porque o dinheiro não chegou. Outro, foi a vandalização que afectou os espaços públicos e que nunca permitiu que o adro desempenhasse as importantes funções de acolhimento e convívio. Outro ainda foi a deterioração dos elementos externos à base de cimento que à época do projecto não era previsível.
Recentemente, com a posse do novo pároco, o padre Fernando Belo, está a iniciar-se um esforço de reabilitação do edifício que merece o apoio da Câmara, pela sua importância no espaço público da cidade.
Chega-se ao 25 de Abril e o arquitecto Nuno Portas, Secretário de Estado da Habitação nos governos provisórios, lança o programa SAAL, com vista à erradicação dos bairros de lata, aproveitando o dinamismo das populações organizadas. Eu e o colega Pedro Botelho, para além de algum apoio prestado a nível central, ficámos responsáveis pelo projecto de realojamento dos residentes na Quinta do Chegadinho, perto da Cova da Piedade. Estabelecem-se contactos com as Comissões de Moradores, lança-se um inquérito visando conhecer as necessidades e aspirações das famílias e fazem-se os primeiros esboços do novo bairro, que são discutidos em plenário. Mas, de repente, todo o processo é suspenso, pois a população, apoiada pela Câmara Municipal, decide ocupar, logo que estivesse concluído, um conjunto de prédios em construção nas proximidades.
O projecto não chegou assim ao seu termo, e pior é que a prevista ocupação não se concretizou, talvez por falta de condições políticas à data da conclusão dos prédios, e o bairro degradado do Chegadinho ainda lá está, talvez à espera do PER.
Nos anos oitenta, desta vez com a colaboração do jovem colega Victor Mestre, participo num novo estudo na área do Município. Tratava-se de um concurso para a requalificação urbana da frente de mar da Costa da Caparica e para o qual foram convidados vários arquitectos. As diferentes propostas foram apresentadas não conhecendo no entanto resultados práticos, mas as intenções creio serem semelhantes às que informam o actual programa POLIS, em início de execução.
Já na década de 90 dou entretanto um pequeno contributo para um ambicioso Plano de Pormenor do Ginjal, encomendado ao Gabinete Proambio por uma sociedade de proprietários locais onde estava representada a minha família. Plano maximalista de desenvolvimento das potencialidades do Ginjal e que, por exigir desproporcionados investimentos públicos, não teve condições de ir avante.
Mas um novo estudo, realizado há dois anos, estava também destinado a ficar no papel: o do concurso para a requalificação urbana de Cacilhas, no qual a nossa equipa só conseguiu o 2º lugar. O desafio era difícil e os riscos consideráveis, mas o meu empenho pessoal em concorrer, exactamente pelas fortes ligações a Cacilhas e a Almada, não permitiu que nos alheássemos do concurso.
Foi possivelmente o estudo aturado nessa altura desenvolvido em volta da problemática da requalificação da frente do rio que me levou no ano passado a tomar posição pública na defesa do arrojado e polémico projecto urbano para os terrenos da Lisnave na Margueira, da autoria de Manuel Graça Dias e Egas Vieira. Reconhecendo a volumetria exagerada da proposta, empenhei-me em demonstrar os benefícios da construção de uma área central com forte presença de terciário, como polo aglutinador da extensa mancha urbanizada que vai de Almada até ao Seixal. Parece que o processo está bloqueado por padecer de irregularidades administrativas e incorreções políticas, mas as virtualidades que a proposta encerra não deveriam ser menosprezadas e por isso acredito que, com o projecto reformulado, aquele grande desígnio venha a ser concretizado.
Nesta evocação que já vai muito extensa, deixei de fora ainda muitas memórias, como sejam as visitas aos velhos estaleiros da Mutela, dedicados à reparação de fragatas e varinos, antes dos aterros e docas ali construídos para a Lisnave; os banhos e passeios de barco a partir do cais do Ginjal, quando os níveis de poluição do Tejo à época são agora tomados como meta a atingir; ou as idas de carroça à Romeira para buscar água potável trazida numa pipa. Foi tudo isso e muito mais que a distinção oferecida pela Companhia de Teatro de Almada fez recordar, mostrando como transportamos até uma idade avançada as descobertas da infância, os entusiasmos da juventude e as preocupações e reflexões da maturidade.
[Alocução de agradecimento ao Teatro de Almada pela homenagem que lhe foi prestada. Almada, Casa da Cerca, 16 jun. 2000. Publicado em Anais de Almada: Revista Cultural, nº 3, 2000, pp. 207-212, com o título “Na Casa da Cerca: a propósito de uma homenagem”]