1. Antecedentes familiares
Nascido no ano em que Mussolini conquistou o poder com a Marcha sobre Roma; a fazer onze anos no exacto dia em que Hitler também o alcançou, por via eleitoral (30 de Janeiro de 33), filho e sobrinho de amigos de António Sardinha e militantes do Integralismo Lusitano – mais tarde convertidos ao salazarismo – a política estava-me na massa do sangue. Uma política de cariz conservador, monárquico e católico, mas com preocupações sociais. Foi assim que meu Tio Pedro, primeiro Secretário de Estado das Corporações, foi o criador do incipiente sistema de Previdência Social no nosso país e meu Pai Luiz impulsionou o primeiro contrato colectivo de trabalho entre patrões e assalariados, criado no âmbito do Estado Novo Corporativo, e também a primeira Caixa Sindical de Previdência. Quanto à política, foi deputado à Assembleia Nacional, procurador à Câmara Corporativa e Presidente da Câmara Municipal de Almada.
Lembro-me do entusiástico comício no Teatro de S. Carlos em 1933 onde foi celebrada a criação dos primeiros “sindicatos nacionais”, que foram os de trabalhadores bancários, de seguros e de escritórios. O discurso de meu Tio Pedro, publicado em 2006 na colecção “Portugal como Problema”, define com muita clareza os princípios do novo Estado Corporativo, nos quais a crítica ao liberalismo é recorrente. Enquanto isso, nos sectores operários, os dirigentes de matriz comunista ou anarco-sindicalista ou eram aliciados para o novo regime, ou presos e desterrados para a fortaleza da ilha Terceira, que foi um antecedente do Tarrafal. Entre eles estava Francisco Lyon de Castro, o fundador das Edições Europa-América, que me contou os horrores da poterna, o espaço onde os reclusos alvo de castigo eram encerrados durante semanas.
Foi neste clima que, também em 1933, no referendo da constituição promulgada pelo regime salazarista, acompanhei meus pais à assembleia de voto na Escola Primária da Rua da Bela Vista à Lapa, envergando uma camisa azul comprada por minha Mãe para o efeito (símbolo do movimento nacional-sindicalista de Rolão Preto, proibido depois pelo ditador em 1934, dado o seu carácter de fascismo radical). Então aluno do 2º ano no Liceu Pedro Nunes, fiquei fascinado com um enorme cartaz da AEV – Acção Escolar Vanguarda no átrio da entrada, onde duas grandes rodas dentadas com as designações de “plutocracia” e “comunismo” eram acompanhadas por uma legenda que não mais esqueci: “Nós somos o grão de areia que há-de destruir esta engrenagem infernal”. Teve curta vida esta organização, já que não funcionava a mando de Salazar.
O que escrevi acima quanto à ascendência familiar refere-se à mais próxima. Porque, quanto à remota, o apelo não era menos forte – só que de sinal contrário. Efectivamente, tanto de um lado como do outro essa ascendência é de pendor liberal e progressista.
Assim, meu bisavô materno, o comendador Nicolau Anastácio de Bettencourt, com nome em ruas dos Açores, mas madeirense de origem, alistou-se no Batalhão Académico formado em Coimbra para apoiar a revolução liberal. Foi por isso que embarcou para a Terceira, tendo depois participado no desembarque do Mindelo com as tropas de D. Pedro IV. Após a vitória na guerra civil, foi governador civil da Horta, Portalegre e Aveiro.
Do lado paterno e na mesma época, um militar prussiano, de apelido Herrmann, veio para Portugal, também em apoio do exército liberal. Foi meu trisavô e pai de um engenheiro notável que introduziu o telefone em Portugal, proprietário de uma casa no início da Calçada do Lavra, ainda hoje pertencente aos CTT.
Foi assim que, entre as duas tradições, eu tinha que ir construindo as minhas próprias opções. Foi o que procurei fazer, com a ajuda de muitos, mas especialmente da Natália, companheira dos vinte anos mais decisivos da minha vida.
2. Engajamento precoce
Em Maio de 1936, já no clima de fascização do regime que se iria acentuar com a guerra civil de Espanha, é criada a Mocidade Portuguesa, ainda não de carácter obrigatório. Com alguns colegas do liceu, logo corremos a uma loja da Rua das Portas de S. Antão para comprarmos as fardas. Entre eles estavam os irmãos Nobre Guedes, de uma família da alta burguesia com casa na Lapa e cujo pai fora nomeado Comissário Nacional da organização, cargo que seria depois ocupado por Luís Pinto Coelho e mais tarde por Marcelo Caetano. Radiantes com a indumentária, fizemo-nos retratar por um fotógrafo “a la minuta” que havia no Jardim da Estrela.
Desde muito novo que gostava de assistir a paradas militares, como as que havia todos os anos a 9 de Abril na Avenida da Liberdade, onde via com orgulho os dois únicos e pequenos tanques de guerra do Exército Português, aquartelados no Batalhão de Caçadores do Castelo de S. Jorge: o “Pátria” e o “República”.
Fascinados com as camisas azuis que haviam sido de Rolão Preto, tínhamos até então que nos contentar com as nossas fardas de escuteiros, cujo grupo no liceu foi aliás dissolvido para dar lugar ao núcleo da MP. Mas agora tínhamos também uma camisa garrida. O verde era a cor que ainda restava no mercado cromático internacional dos fascismos em plena ascensão: o negro para os italianos, o castanho para os nazis e o azul para os falangistas espanhóis. O vermelho estava à partida proscrito, só sendo usado nas boinas dos requetés, milícia monárquica tradicionalista de Navarra. O rosa ninguém o queria, pois era uma cor tíbia, e o amarelo nem pensar, pois era a cor dos que pactuavam com o capitalismo. E o verde tinha uma vantagem: era a cor da Esperança num mundo mais justo.
Estava-se então nas vésperas dos célebres Jogos Olímpicos de Berlim, em que o afro-americano Jesse Owens iria arrebatar várias vitórias, deixando Hitler furioso, já que a superioridade da raça ariana era um dos postulados do nazismo. Sabíamos que a Mocidade iria enviar uma delegação a Berlim e estávamos ansiosos por termos essa possibilidade. Só que os candidatos eram mais que muitos e o governo acabou por decidir, face às críticas de que a delegação seria constituída por rapazes de boas famílias, enviar também alguns alunos da Casa Pia, para compor o ramalhete.
A partir daí fiz uma carreira fulgurante na Mocidade, envergando orgulhosamente o uniforme com a camisa verde e o S de Salazar na fivela do cinto, e participando nas marchas pela Avenida da Liberdade abaixo fazendo a saudação fascista. Desde cedo comandante de Castelo (30 rapazes), fiz o curso para comandante de Bandeira no Liceu Camões e depois nos Pupilos do Exército, participando num acampamento nacional no parque onde depois haveria de funcionar a Feira Popular e mais tarde construída a Fundação Gulbenkian. No verão de 1936, depois de eclodir a guerra civil de Espanha, participei com entusiasmo no comício do Campo Pequeno, em que foi anunciada a criação da Legião Portuguesa. No seio desta rapaziada empolgada, Salazar era criticado por nunca ter vestido uma farda e só timidamente fazer uma ou outra vez a saudação fascista.
Com tal currículo, quando entrei na Escola de Belas Artes em 1939 fui chamado ao gabinete do director, o arquitecto Luís Alexandre da Cunha, esbirro da Pide e que mais tarde começámos a conhecer por “Cunha Bruto”. Queria ele que eu fosse o responsável da Mocidade Portuguesa na Escola. Já sem as convicções daquela fase imberbe da juventude, respondi-lhe que não estava interessado. Tinha começado a abrir os olhos.
3. Leitor compulsivo de jornais
Meu Pai não dispensava dois jornais diários: um matutino, que era o “Diário da Manhã”, órgão oficial do regime, dirigido por um tal Manuel Múrias; outro, vespertino, de uma oposição que tinha que ser encapotada, o “Diário de Lisboa”, dirigido por Joaquim Manso, e que foi ao longo de décadas uma escola de jornalistas. Era este último que eu lia sofregamente, já que o “Diário da Manhã” era aborrecido, pelo seu carácter oficial. Lembro-me que quando meu Pai chegava a casa, pelo fim da tarde, e se sentava a ler o jornal, eu punha-me atrás dele, para ficar a saber, por cima do seu ombro, as notícias do próprio dia. Já em casa de meus avós paternos, o jornal era o monárquico “A Voz”, dirigido pelo velho conselheiro Fernando de Souza.
Mas havia ainda os não diários, dos quais o mais interessante era o Semanário “Acção”, dirigido por Dutra Faria e de grande formato. Assumidamente de Direita, exibia, no entanto, no cabeçalho, um lema contraditório: “Nem direitas, nem esquerdas – para a frente!”
Dado curioso é que nos primeiros números, publicava na 1ª página cartoons de um até então ilustrador pouco conhecido, mas que, passadas décadas, viria a ter, não só como artista, mas também como político, um papel importante na sociedade portuguesa: Arlindo Vicente, que em 1958 se assumiu como candidato da oposição democrática à Presidência da República, tendo depois renunciado a favor de Humberto Delgado. A verdade é que as caricaturas de Arlindo Vicente focavam com grande virulência aspectos sociais, ridicularizando patrões e capitalistas. Terá por isso sido dispensado ou terá ele próprio tomado consciência do verdadeiro carácter direitista do semanário?
Mas meu Pai assinava outro periódico, creio que quinzenal, e de orientação bem diferente: “O Trabalhador”, dirigido pelo padre Abel Varzim e órgão dos sectores operários da Acção Católica. Doutorado pela Universidade de Lovaina, de onde regressara havia pouco, Abel Varzim vinha imbuído dos ideais do catolicismo social, que soavam como pedras no charco no seio da política corporativa do Estado Novo. Embora escolhido para deputado na Assembleia Nacional nas listas únicas do regime, aí chamou a atenção para os problemas sindicais num aviso prévio que ficou na História. Demitido dos seus cargos, mesmo no seio da Igreja, graças à conivência entre Salazar e o cardeal Cerejeira, acabou por ser exilado na sua aldeia minhota, onde veio a falecer precocemente, depois de, por várias ocasiões, ter manifestado a sua oposição à ditadura.
Entre os jornais que tinha em casa, “O Trabalhador”, que acabou proibido pela Censura, era uma voz diferente, que veio a influenciar-me nas minhas convicções de católico ansioso por um mundo melhor.
Foi desta forma que ganhei o hábito de leitor compulsivo de jornais, e mais tarde o de fazer recortes e arquivar tudo o que me parecia importante. E não só de notícias do mundo político e social, tanto a nível nacional como mundial. Também dos aspectos relacionados com a profissão. Foi assim que, tendo trabalhado em diferentes ocasiões na área do urbanismo em vários pontos do país, habituei-me a assinar a imprensa local quando recebia uma nova encomenda. Esta prática revelou-se muito útil, pois não só me permitiu tomar conhecimento de muitos problemas locais, como também de acontecimentos ou decisões importantes relacionados com o meu trabalho, dos quais por vezes as autoridades responsáveis não me informavam ou que mesmo deliberadamente me sonegavam.
É assim, desde cedo, que tenho esta máxima: para poder intervir, é indispensável estar a par do que se passa.
4. Como fui passando da direita para a esquerda
Apesar de já ter começado a abrir os olhos, como escrevi atrás, ainda em 1941/42, já estudante de arquitectura, leitor devoto de António Sardinha, escrevi dezenas de páginas de um diário nas quais afirmo as minhas convicções monárquicas, mas tendo sempre presentes preocupações de ordem social. É que estas preocupações eram, também, herança familiar. Não foi meu Tio Pedro o principal fundador do Estado Corporativo, ditatorial, mas que criou, entre nós, os contratos colectivos de trabalho, as caixas de previdência, as colónias de férias para trabalhadores, as casas económicas, os tribunais do trabalho, etc.? E não foi meu Pai, Luís, que concretizou, quando pôde, na prática, esse ideal corporativo?
Mas foram os apóstolos da chamada doutrina social da Igreja e os acontecimentos mundiais que me foram abrindo mais os olhos. E isto, em duas direcções. Por um lado, com os horrores do nazismo e a segunda guerra mundial, a rejeição de tudo o que cheirasse a fascismo; por outro, a aversão, agora mais consciente e objectiva, das utopias comunistas, que seduziam cada vez mais os meus companheiros de geração. Isto, porque, para além do ateísmo sectário e dos regimes totalitários, tinha acesso a livros de meu Pai onde eram denunciados – embora defendendo teses de direita – os crimes do estalinismo. O New-deal de Roosevelt e o regime parlamentar britânico, com o conservador Churchill e, depois, com o trabalhista Attlee, fizeram-me um adepto da democracia. Entro então numa espécie de limbo político que, olhando embora criticamente para a ditadura salazarista, não me sentia impelido para a acção. Foi assim que presenciei as grandes manifestações populares que celebraram em 45 a vitória dos aliados e constituíram um desafio ao governo, mas sem nelas participar.
Empenhado, por um lado, no aprofundamento da prática religiosa e, por outro, no arranque duma carreira profissional em que as ligações familiares, com os decorrentes conhecimentos pessoais, tiveram um importante papel, a política passava-me ao lado. Condicionado pela censura à Imprensa, sem acesso a publicações clandestinas, e olhando com desconfiança os meus colegas de tendências marxistas, minimizava os aspectos tenebrosos da ditadura, que me pareciam males menores e inelutáveis. Foi assim que não alinhei no MUD/Movimento de Unidade Democrática, nem em iniciativas semelhantes. Foi por isso, creio eu, que nas Exposições Gerais de Artes Plásticas que foram organizadas na Sociedade de Belas Artes de 1946 a 1956 por um grupo de artistas neo-realistas em que figuravam arquitectos, nunca fui convidado para nelas participar, ao contrário de colegas da minha geração claramente posicionados à esquerda. E também, claro, por ser sobrinho de quem era e trabalhar num organismo do Estado.
Ao longo dos anos 50, fui continuando, lentamente, a abrir os olhos. Muito por influência da Natália e de alguns padres, como Manuel Rocha e Abel Varzim, os quais, de colaboradores do regime, passaram a ser, mais tarde, fortemente críticos da política de Salazar. O primeiro, que era açoriano, foi mandado pelo cardeal Cerejeira para os Estados Unidos, para pastorear uma comunidade de patrícios; Abel Varzim foi demitido de vários cargos da Igreja de Lisboa, depois de ter sido proibida a publicação de “O Trabalhador” de que era director. Até que se deu o furacão Delgado, de que falarei mais adiante, do qual resultou, devido ao trabalho do meu grande amigo Francisco Lino Neto, a constituição de um grupo de católicos claramente conotados com a oposição ao regime.
A partir daí, as coisas correram mais depressa. Engajados na produção de publicações clandestinas denunciando as práticas salazaristas, e passando das palavras aos actos, com a cooperativa Pragma, a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos e a luta contra a guerra colonial, nós éramos já parte activa da oposição, situação em que ocorreu a trágica morte da Natália e da nossa filha Catarina. Esse processo foi provocando problemas familiares, com o meu Pai, irmãos e cunhados, que se exprimiam em acesas discussões e, por vezes, através de troca de cartas.
Foi neste quadro que a estadia na prisão de Caxias antes do 25 de Abril contribuiu para uma radicalização política que exprimi claramente no discurso que, em nome dos católicos progressistas, proferi no histórico comício do 1º de Maio de 1974, redigido na véspera, no atelier da rua da Alegria, onde entrei pela primeira vez desde a prisão, em Novembro de 73: “Os cristãos terão um grande papel a desempenhar na construção de um socialismo completo e total: um socialismo amputado ou incompleto não é socialismo.”
Essa radicalização foi-se a seguir acentuando com o engajamento no MES/Movimento de Esquerda Socialista – capítulo que será relatado mais à frente.
Documento impresso, 2008, inédito.