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Memórias inacabadas 3 – Um quarto de século mais tarde, outras viagens a Espanha

Uma rua de Marvão, vendo-se à esquerda a casa de férias comprada em 1965 (sem data)

 

1. Solidariedade com o bispo exilado

Ao longo dos anos, a minha paixão pelo conhecimento do território português, que as leituras de Orlando Ribeiro e o curso livre dado por ele no Centro de Estudos Geográficos haviam potenciado, levaram-me a percorrer o país de norte a sul, muitas vezes por estradas primitivas, nos carros sempre baratos que eu podia comprar: Renault joaninha, Volkswagen carocha, Renault 4L, Morris Mini. Por vezes, levávamos amigos, como foi o caso de Bartolomeu Costa Cabral e Teresa Almeida. Como não tínhamos dinheiro para hotéis, levávamos tendas para acampar à beira da estrada.
Tal interesse levou-me a alargar as excursões frequentemente para lá da fronteira, na Estremadura, em Castela-Leão e na Galiza e até muito para além dela, tendo começado este ciclo com a própria viagem de núpcias pela Andaluzia em 1951. Já mais tarde, fizemos, com Nuno Portas, a grande diagonal da Península para ver Gaudí e Cerdá em Barcelona e seguir até Itália.

Mas as viagens de que vou agora falar, ao longo dos anos 60, são outra coisa.

Em 1958, a campanha de Humberto Delgado para a Presidência da República constituiu um violento choque contra a ditadura salazarista. Vitoriado por enormes multidões nas cidades que visitava, o general abalou o regime e conquistou para a oposição sectores que até aí se mantinham afastados da política ou mesmo haviam apoiado o ditador, como ele próprio o tinha feito. Foi o caso de sectores católicos que assim entravam em dissidência com a Igreja, um dos bastiões em que o regime se apoiava.

Dois acontecimentos mais notórios se deram neste sentido. Por um lado, o engenheiro Francisco Lino Neto, que já protestara publicamente contra o jornal “Novidades”, órgão oficial da Igreja, pela cumplicidade a favor da propaganda salazarista, promoveu dois abaixo-assinados denunciando a falsidade das eleições e as torturas da Pide, subscritos por dezenas de personalidades, incluindo vários padres. Por outro lado, o próprio bispo do Porto, António Ferreira Gomes, enviou uma carta a Salazar com idêntico sentido e que teve ampla difusão, apesar de proibida a sua publicação pela Censura. Tanto bastou para que, no ano seguinte, após uma deslocação ao estrangeiro, a polícia política impedisse a sua entrada no país.

Tendo-se instalado numa casa conventual, perto da fronteira portuguesa, na expectativa de poder em breve regressar, logo houve católicos que o foram visitar, para lhe manifestarem a sua solidariedade. Foi o meu caso, tanto mais que o bispo me enviara pessoalmente cópia da histórica carta. Com a Natália e alguns amigos, fomos assim até Alba de Tormes, perto de Salamanca, dando-lhe conta do movimento que ganhava força entre nós, mais tarde chamado dos católicos progressistas e a que a sua corajosa atitude tinha dado grande alento.

2. “O Tempo e o Modo” e “Cuadernos para el Diálogo”
A revista “O Tempo e o Modo”, lançada em 1963 e dirigida por António Alçada Baptista e João Benard da Costa foi um acontecimento de relevo no campo da cultura e da acção política em Portugal. Inspirada no personalismo cristão de E. Mounier, fundador da revista “Esprit”, congregou uma nova geração de intelectuais e dirigentes do movimento estudantil de oposição à ditadura, servindo de porta-voz a várias correntes do pensamento e da acção política.

Na Espanha franquista existia já uma revista de índole semelhante, integrada por intelectuais de grande prestígio e que procurava rasgar janelas por entre as malhas da censura: os “Cuadernos para el Diálogo”. A proximidade ideológica levou a que se realizasse uma reunião em Madrid reunindo pessoas ligadas às duas revistas, tendo nós integrado a delegação portuguesa.

Foi assim que, durante alguns dias foram debatidos problemas comuns relacionados com as ditaduras ibéricas e com as formas possíveis de os ultrapassar. A reunião teve lugar numa casa religiosa e foi aí que criei relações com companheiros espanhóis com os quais fui mantendo contactos ao longo da década que ainda faltava para o 25 de Abril. Regressámos de Madrid com redobrado vigor para as lutas que ainda tínhamos pela frente.

Faço aqui uma menção especial a um grande amigo desaparecido há poucos anos: José Maria Riaza, advogado em Madrid mas originário da Galiza e que se dedicou após a reforma a um intenso trabalho na UNICEF, já com mais de 80 anos.

Em Junho de 74 os “Cuadernos” publicaram um número especial dedicado a Portugal com o título “El fin de una dictadura”, para o qual foram entrevistados muitos portugueses e que incluiu um depoimento meu, então dirigente do Movimento de Esquerda Socialista.

3. Para a publicação de um jornal clandestino

Em finais de 1961 a União Indiana, perante as recusas reiteradas do governo de Salazar em encetar negociações relativas aos territórios ditos da Índia Portuguesa, conquistou pela força Goa e Diu, como já havia feito com Damão e Nagar-Aveli. Do acontecimento resultou uma humilhação para Portugal e o enfraquecimento até mesmo da nossa importância histórica e cultural no continente indiano. Já a braços com a revolta iniciada em Angola no princípio desse mesmo ano, o governo português endureceu as suas posições em termos de política colonial, não admitindo quaisquer ambiguidades.

Foi neste quadro que decorreu uma viagem do então Papa Paulo VI à União Indiana, por ocasião de um congresso eucarístico, em 1964. Com grande repercussão no mundo católico, o governo português deu ordens para que a viagem fosse totalmente silenciada em Portugal, não sendo admitida qualquer referência ao acontecimento, mesmo aos órgãos da Igreja, com a conivência de Cerejeira.

Conhecidas estas intenções com antecedência, um grupo de católicos decidiu publicar um jornal clandestino que pudesse ter uma ampla difusão na altura da viagem. Tirando proveito das ligações com os espanhóis dos “Cuadernos para el Diálogo”, seguiram para Madrid dois companheiros nossos – Eduardo Cruzeiro e Manuela Cruzeiro – com a missão de recolherem o noticiário junto de jornalistas locais, de fazerem a redacção do jornal e de acompanharem a impressão. Foi na sequência desse trabalho que eu e a Natália atravessámos a fronteira do Caia e chegámos a um local combinado perto de Badajoz para trazermos os jornais para Portugal, correndo o risco de sermos apanhados na passagem da fronteira.

Como o carro era pequeno, empilhámos uns milhares de exemplares no nosso “carocha” VW, inclusive junto do motor, mas fomos obrigados a deixar ainda uns tantos que já não cabiam. Chegámos a telefonar a um amigo que morava em Elvas para que fosse dar uma ajuda, mas a resposta foi negativa. Entretanto, na fronteira tivemos sorte: o carro não foi revistado pela Guarda Fiscal, e assim acabou bem mais essa viagem a Espanha.

Em Elvas estavam à nossa espera alguns carros com companheiros que se destinavam a vários pontos do país. Era sábado à tarde e estava previsto que os jornais seriam distribuídos à saída das missas de domingo nas principais cidades. Um carro foi para Lisboa, outro para o Algarve, outro para Coimbra e assim sucessivamente. Coube-me a viagem até ao Porto. Lembro-me que à passagem por Portalegre, um poente esplendoroso inundava de luz a cidade.

Com o título “Igreja Presente”, quatro páginas e a data de 6 de Dezembro de 1964, o jornal tinha um editorial e amplas notícias do acontecimento, acompanhadas com fotografias. Em grandes caracteres, a declaração de Paulo VI: “A mensagem que trago é a da fraternidade e da paz. Porque não havemos de estar unidos?”

A distribuição nas várias cidades decorreu sem incidentes.

4. Novamente, o bispo do Porto

Com a morte de Salazar em 1968 e a nomeação de Marcelo Caetano para chefe do Governo deu-se, num primeiro momento, um abrandamento das actividades repressivas da ditadura. Mário Soares, deportado por Salazar para S. Tomé, fora autorizado a regressar e outras medidas se anunciavam. É verdade que muitas das expectativas não se traduziram em factos, já que a prossecução das guerras coloniais não dava alternativas a qualquer processo de transição para a democracia, ao contrário do que viria a acontecer alguns anos mais tarde em Espanha.

Foi assim nesse clima que começou a constar que o bispo do Porto iria ser autorizado a regressar a Portugal. Logo o nosso grupo se mobilizou no sentido de lhe fazer saber que se tratava de uma manobra de propaganda a que ele não deveria sujeitar-se. Ele residia então em Lourdes, no sul da França, para onde nos dirigimos, encarregados dessa missão, atravessando toda a Espanha e passando os Pirinéus.

O bispo recebeu-nos afavelmente e lá o tentámos convencer: que a guerra colonial não ia acabar e que só com essa questão resolvida seria possível um regime democrático em Portugal. Mas em vão: D. António iria aceitar a permissão de voltar ao país, o que aconteceu daí a pouco tempo.

A história viria a dar-nos razão e o bispo regressado a Portugal já não parecia o mesmo que tinha afrontado Salazar, limitando-se a cautelosas considerações nas suas declarações públicas.

5. Passagens da fronteira a salto

Nós tínhamos entretanto comprado em Marvão uma bela casa onde íamos passar férias. Foi nos tempos da PRAGMA, uma cooperativa “de acção social e difusão cultural”, fundada em 1963 e encerrada pela Pide em 67. Mário Murteira, colega da Direcção, tinha ido a Marvão e voltou entusiasmado com as belezas da paisagem e do burgo e os preços irrisórios de casas que estavam à venda. A Vila estava num acelerado processo de desertificação e por isso muitas casas estavam desabitadas – processo que felizmente se inverteu após o 25 de Abril.

Conhecendo Marvão, pois já lá tínhamos estado na estalagem “Ninho d’Águias”, fomos até lá logo no fim-de-semana seguinte, para não perdermos a oportunidade. O Mário e a Aurora tinham visitado algumas casas e houve uma de que gostaram especialmente e que custava 7 contos. Quando, a seguir a Castelo de Vide, avistámos o imponente penhasco, ficámos extasiados. Subimos a estrada sinuosa, alcatroada havia pouco, e fomos directamente à tal casa. Uma construção quinhentista, junto à muralha, com um pequeno quintal anexo e uma vista deslumbrante pela vastidão das terras de Espanha.

Indicaram-nos que a proprietária era uma senhora de idade, que vivia numa pequena fazenda extra-muros, e logo nos dirigimos para lá. Acolheu-nos com a maior simpatia e quando lhe falámos no preço começou com uma longa conversa a dizer que esse valor era demasiado baixo; que amigos lhe haviam dito que a casa valia mais; e mais isto e mais aquilo – uma lenga-lenga que não mais acabava, até que concluiu: “o mínimo por que eu posso vender são 8 contos”!

Claro que logo fechámos o negócio e regressámos à capital, depois de termos pernoitado mais uma vez na “Ninho d’Águias”e conversado com o proprietário de quem ficámos amigos e que se chamava Jeremias da Conceição Dias.
Entretanto, com o prolongamento das guerras coloniais, alargavam-se os movimentos de contestação à ditadura, nomeadamente nos meios universitários. As revoltas estudantis de Coimbra e de Lisboa davam lugar a uma repressão que não cessava de aumentar. Nesse quadro, estudantes e licenciados recusavam-se cada vez mais a ir para a guerra e tentavam sair do país clandestinamente.

Foram para esse efeito algumas das nossas idas a Espanha em fins-de-semana nos finais dos anos 60 e início dos 70. Passando a noite na nossa casa de Marvão, por vezes com alguns amigos, como José Manuel Galvão Teles e frei Bento Domingues, saíamos em pequenos grupos, percorrendo a pé os caminhos que iam dar à Fontanheira, na fronteira do rio Sever. Para não levantar suspeitas e dar aspecto de um passeio familiar com um pic-nic no campo, iam também os nossos filhos. Por vezes, cruzávamo-nos com uma patrulha da Guarda-Fiscal, que de nada desconfiava e com quem cordialmente falávamos.

Chegados ao rio, os jovens que iam passar a salto atravessavam por um pequeno açude, enquanto um carro com amigos cruzava legalmente a fronteira próxima e ia buscá-los para os levar a Cáceres, ou, em alguns casos, a Madrid. Aqui, estavam recomendados a companheiros espanhóis que os encaminhavam para chegar a França, onde conseguiam o estatuto de refugiados políticos.

6. Nova reunião em Madrid

Com a intensificação da luta contra a ditadura e a guerra colonial, recorremos mais uma vez aos nossos amigos espanhóis para nos acolherem em Madrid. Tratava-se duma reunião interna de “católicos progressistas” no sentido de serem definidas estratégias políticas e aperfeiçoados meios de actuação. Partindo de várias cidades, juntámo-nos assim em 1970 num convento da capital espanhola, em que um dos assuntos foi a alternativa entre “reforma” e “revolução”. Lembro-me de ter defendido a primeira, mas nitidamente em minoria.

Já com uma experiência assinalável em matéria de publicações clandestinas, que por vezes contavam com a colaboração de padres que tinham nas suas paróquias copiadores de stencil, a quem íamos entregar os originais dactilografados, perguntámos aos espanhóis como eles faziam. Ficámos estupefactos quando nos responderam que havia um convento de monjas aonde iam entregar os originais manuscritos e que elas se encarregavam de fazer o resto do trabalho.

Regressámos assim a Portugal com ideias mais claras e um melhor conhecimento dos meios de intervenção nas actividades que íamos intensificando e que levaram à prisão, em Novembro de 73, de uma parte importante do nosso grupo, libertada de Caxias no ano seguinte, com o 25 de Abril.

Documento impresso, 2008, inédito.