1. A pré-primária com misses inglesas e o 7 de Fevereiro
Era um Colégio em que a directora se chamava Miss Price e a adjunta Miss Gladys, num belíssimo prédio todo forrado a azulejo na Calçada Marquês de Abrantes, felizmente ainda hoje bem conservado, e com um jardim anexo, sobranceiro à rua.
Todas as manhãs, eu e a minha irmã Maria Alice éramos levados por meu Pai, descendo a Rua do Quelhas e atravessando a Travessa do Pasteleiro até à Rua da Esperança. Depois de nos deixar, ele tomava o eléctrico no Conde Barão a caminho do escritório, no Largo de S. Paulo.
Lembro-me de uma sala toda pintada de verde, e de pouco mais. Mas sobretudo não esqueço uma manhã em que se começaram a ouvir tiros de canhão e as Misses aos berros: “it is a revolution!”. Estávamos no recreio e mandaram-nos para dentro até que a empregada lá de casa nos viesse buscar, o que acontecia a meio da tarde.
Era o 7 de Fevereiro de 1927, a primeira revolta contra a ditadura militar instaurada a 28 de Maio do ano anterior pelo marechal Gomes da Costa e que daria lugar ao salazarismo. Chegados a casa, num r/chão da Estrela, encontrámos as janelas com as portadas interiores fechadas, ouvindo o crepitar das metralhadoras nos combates acesos que se desenrolavam no Largo do Rato e que duraram alguns dias. Meu Tio José Tristão de Bettencourt, oficial do Exército e mais tarde Governador-Geral de Moçambique, tinha sido chamado para combater pelo governo. Meu Pai fez algumas surtidas cautelosas para comprar alimentos. A revolta, que se destinava a apoiar uma que rebentara no Porto alguns dias antes, foi sufocada e tudo voltou à normalidade.
2. A instrução primária em Almada
Passando a nossa família nessa época bastante tempo em Almada, numa quinta de meu Avô João, foi aí contratada uma professora para nos dar a primária. Tratava-se da Dr.ª Adelaide Coutinho, uma excelente pedagoga, reverenciada muito justamente como grande figura almadense.
Foi por essa razão que fiz o exame da então 4ª classe na Escola Conde Ferreira de Almada. Acabadas as provas, minha Mãe falou com a directora, para saber do meu desempenho. E ela respondeu: “falou pouco, mas bem: o que disse estava tudo certo”. Era a revelação de uma maneira de ser que me acompanhou ao longo de muito tempo, e que levava meu Pai a classificar-me de mudo, por ser de poucas falas. Só na idade madura consegui soltar a língua, obrigado a isso por intervenções em reuniões e debates em que participava cada vez com maior frequência.
3. No Liceu Pedro Nunes
Tive a sorte de frequentar um dos melhores liceus do país – o Pedro Nunes, classificado como “normal” pelo facto de aí leccionarem enquanto estagiários jovens professores, e que tinha, entre muitas outras, a vantagem de funcionar no regime então chamado de semi-internato, isto é, com os trabalhos para casa feitos em salas de estudo, acompanhados por professores.
Dirigido por um considerado pedagogo, o reitor Sá Oliveira, tinha excelentes docentes nas diferentes áreas de ensino, a quem muito fiquei a dever. E ainda em disciplinas não-curriculares, como na Educação Física os professores Vilar e Ayala Botto, nos Trabalhos Manuais em madeira o excelente Mestre Lobo d’Ávila e no Orfeão, em que eu fazia péssima figura, por ser um desafinado incorrigível.
O responsável por esta disciplina, o professor Josué Trocado, veio a ficar na História por causa do atentado a Salazar em 1937, em plena guerra civil de Espanha. Isto, porque, sendo de uma família abastada do Norte, residia num palacete, já demolido, na avenida Barbosa du Bocage, ao Campo Pequeno. Era aí que Salazar ia à missa todos os domingos. Aproveitando a ocorrência, um dirigente anarco-sindicalista colocou uma bomba escondida numa caixa de esgoto. Comandada à distância, a bomba explodiu quando o ditador saía do carro, mas não o atingiu. O autor da proeza foi depois preso, ficando longos anos na cadeia do forte de Peniche. Tratava-se de Emídio Santana, com quem trabalhei e fiz uma sólida amizade muito tempo depois, quando, como dirigente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, deu um forte impulso à habitação cooperativa.
No Liceu havia rapazes das “melhores famílias” da Lapa mas também outros de camadas populares. E era com estes que me sentia mais à vontade, embirrando com a fanfarronice dos primeiros. Caso único em Lisboa, havia também raparigas no Pedro Nunes, mas não mais do que meia dúzia por ano, todas sentadas na primeira fila da turma. Nos recreios, jogávamos ao eixo, no qual eu não era muito exímio. E, quanto ao futebol, para o que o liceu dispunha de um excelente campo, só tinha algum jeito para guarda-redes, já que não sabia manejar os pés com agilidade, não sendo capaz de driblar. No que respeitava a notas, figurava de vez em quando no “Quadro de Honra”, afixado no átrio, para o que era necessário não ter classificações abaixo de 12. Do escutismo gostava muito, tendo ficado seduzido com aquela regra de “fazer uma boa acção em cada dia”. E que depois foi substituído pela Mocidade Portuguesa – do que não tive pena nenhuma, pois andava embriagado por fardas e por marchas. É do liceu que guardo a lembrança dos primeiros namoricos, procurando seguir o exemplo de um colega amigo muito dado a eles – o Rui Oliveira da Silva – que avançava sempre mais decididamente do que eu.
O liceu estava instalado num belo edifício, que mais tarde vim a saber ter sido projectado por Ventura Terra, e que fora construído durante a breve ditadura de João Franco, nos últimos anos do reinado de D. Carlos, assim como o Passos Manuel e o Camões e um outro no Porto. Desde então fiquei a saber que as ditaduras – como veio a ser a de Salazar e também as de Mussolini, Hitler e Estaline, têm um excelente desempenho nas obras públicas.
Um caso de que nunca me esqueci, foi o de um jovem professor estagiário de Português-Latim, de atitudes modestas e sempre muito atento aos alunos, pelos quais era adorado. Tanto assim que toda a turma fez questão de tirar uma fotografia com ele, no campo de futebol. Aconteceu que um dia faltou às aulas, nunca mais tendo aparecido. Não recordo as explicações que nos terão dado para isso, ou sequer se alguma razão foi dada. Chamava-se Alberto Araújo.
Entretanto passaram décadas até que, já depois do 25 de Abril, numa visita à igreja que eu havia projectado para Almada, vim a descobrir que o seu nome havia sido dado ao jardim circundante. A Câmara Municipal colocou aí um busto, onde eu reconheci o professor desaparecido, com a legenda: dirigente do Partido Comunista Português. Fiquei então a saber que tinha sido preso pela Pide e deportado para o Tarrafal, de onde regressara passados anos bastante doente, vindo a falecer pouco depois.
A certa altura tive como companheiro de carteira o filho de um arquitecto de renome, já à época. Tratava-se do Carlos Manuel, cujo pai era Carlos Ramos, futuro director da Escola de Belas Artes do Porto e que teve um papel fundamental no prestígio conquistado por essa escola. Fizemo-nos amigos e desafiou-me a ir com ele para o curso de Arquitectura, contrariando o meu interesse pela geografia. E assim foi, tendo por isso deixado o liceu após a conclusão do 5º ano. Isto, porque o curso de arquitectura não era considerado superior, pertencendo ao chamado Ensino Médio. Fiquei assim sem os dois últimos anos, que tive que fazer mais tarde, particularmente, como adiante se verá.
Mas não deixei o Pedro Nunes sem antes fazer um projecto urbanístico cujo desenho envergonhadamente conservo. Estava então em obras o prolongamento da avenida Alvares Cabral, com a construção de prédios modernistas, alguns deles do celebrado pioneiro que foi Cassiano Branco. Rasgada assim a avenida até ao Rato, do lado oposto esbarrava no Jardim da Estrela, ficando uma espécie de beco. Não me conformando com a situação, fiz um desenho em que a avenida, rompendo os portões do Jardim, ia desembocar majestosamente frente à Basílica da Estrela, arrasando por isso muitas das belíssimas árvores existentes. A solução encontrada mais tarde foi a de abrir uma via lateral, junto ao cemitério inglês e ladeando o Jardim, para possibilitar uma ligação viária. Curiosamente, o meu colega e amigo Manuel Salgado, investido agora de responsabilidades camarárias, declarou há pouco que a solução conveniente será a de prolongar a avenida em linha recta, mas em túnel sob o Jardim. Passados 70 anos, o problema ainda é sensível!
4. Arquitectura na Escola de Belas Artes (ainda não superior)
Praticando desenho de estátua pela mão do escultor Leopoldo de Almeida, professor da Escola, fui aprovado em 1938 no exame de admissão para o curso de Arquitectura. A Escola funcionava onde depois ficou a Faculdade de Belas Artes, em dependências do antigo convento de S. Francisco, partilhando o enorme edifício com a Biblioteca Pública (que mais tarde foi para o Campo Grande), o Museu de Arte Contemporânea, o Governo Civil e o comando da PSP. Estes últimos organismos ainda hoje lá estão, apesar de há anos estar prevista a sua deslocalização, para viabilizar a expansão do Museu, que agora se chama “do Chiado”, e que se debate com falta de espaço.
A Escola ministrava outros cursos, além do de Arquitectura: também Pintura, Escultura e Gravura, estes últimos frequentados quase só por raparigas. Mas no de Pintura conheci António Dacosta, com quem me vim a encontrar décadas depois, em Paris, para onde fora viver, para tratarmos da intervenção pictórica na estação do Metropolitano do Cais do Sodré, que ele não pôde chegar a ver e que foi concretizada por um colega amigo, o pintor Pedro Morais.
Feito o 1º ano do curso, Leopoldo de Almeida sugerira a meu Pai que uma viagem à Grécia seria muito útil para a minha carreira no campo das artes. Foi assim que comprámos uma passagem para o paquete grego “Nea Hellas” que a 1 de Setembro de 1939 deveria escalar Lisboa no seu trajecto de Nova-Iorque ao Pireu. Mas aconteceu que nesse mesmo dia teve inicio a 2ª guerra mundial, como resultado da invasão da Polónia pelas tropas de Hitler. E assim o meu embarque foi cancelado. Só passado meio século conheci a Grécia, onde fui com a Irene por ocasião dum Congresso da União Internacional dos Arquitectos, na altura em que era presidente da Associação portuguesa.
Os anos da Escola marcaram-me profundamente, não tanto pelos professores, mas sobretudo pelos colegas. Éramos apenas onze no curso de Arquitectura e a quase todos devo muito daquilo que vim a ser, não só como profissional mas também como pessoa.
Aquele a quem me liguei mais foi o Manuel Costa Martins, filho do simpático Sr. Costa, porteiro da Escola e morador no Pátio do Salema, ali ao Rossio. Arquitecto que fez carreira na Função Pública mas praticou sobretudo pintura e fotografia, em que foi um mestre, leccionando no IADE e co-autor, com Vítor Palla, outro colega de curso, do célebre livro “Lisboa, Cidade Triste e Alegre”, de que infelizmente não foi possível até agora fazer uma 2ª edição. Assíduo companheiro de estudo, devo-lhe a minha iniciação na literatura contemporânea (Aldous Huxley, Erico Veríssimo, Fernando Pessoa…) e muitas coisas mais. Fui padrinho de seu filho Jorge e tenho mantido contactos com sua Mulher, Alice, com vista à publicação e depósito em local apropriado de uma extraordinária colecção de retratos que ele deixou.
A Vítor Palla, colega de extraordinária inteligência, invulgar cultura e múltiplos talentos, também muito fiquei a dever, como se pode depreender da brilhante carreira que veio a fazer, não só na arquitectura, mas também no design, na fotografia e até na escrita.
Para além de Costa Martins e Vítor Palla, muito fui aprendendo também com Manuel Tainha, Carlos Manuel Ramos, Manuel Alzina de Menezes, Francisco Blasco Gonçalves e Manuel Coutinho Raposo. A este último se ficaram a dever os jantares de curso em que nos fomos encontrando ao longo da vida e que nunca falhavam depois das minhas passagens pelas cadeias da Pide. Num deles, antes do 25 de Abril, ostentávamos premonitoriamente cravos vermelhos na lapela.
Na Escola respirava-se um ambiente pidesco, já que o director, Luís Alexandre da Cunha, arquitecto da CP, era muito ligado ao regime e apelidado de Cunha Bruto. Foi neste contexto que uma vez fui alvo dum processo disciplinar e castigado com uns tantos dias de suspensão porque um contínuo me viu a saltar da janela da Escola para a Praça da então Biblioteca Nacional.
Dos professores guardo gratas recordações, com especial destaque para Mestre Leopoldo de Almeida, pela atenção que dava aos alunos e pela paciência em corrigir-me os desenhos de estátua e de modelo, disciplina para que eu não mostrava especiais aptidões – insuficiência que me marcou toda a carreira profissional. E também recordo o professor de História, Macedo Mendes, que nos abriu as portas para aspectos do pensamento contemporâneo, como a obra de Oswald Spengler “a Decadência do Ocidente”. E que também nos ensinou a apreciar aspectos menos conhecidos da História da Arte, como o pré-românico asturiano. E ainda os irmãos João e Virgílio de Lemos, professores de Matemática e Resistência de Materiais, que me abriram os olhos para a importância dos sistemas de construção na Arquitectura.
Claro que o mais marcante professor foi o de Arquitectura, Cristino da Silva. Um dos pioneiros do Movimento Moderno entre nós, com a obra do Capitólio no Parque Mayer e o Liceu de Beja. Cristino foi quem fez o volte-face mais notório quando da erupção da arquitectura de expressão tradicional/monumentalista que marcou a fase de fascização do regime de Salazar. Foi assim que, no momento da nossa entrada na Escola, ele acabava de fazer o projecto emblemático dessa viragem – a Praça do Areeiro.
Fervorosos entusiastas da Arquitectura Moderna, que íamos conhecendo através de publicações estrangeiras que nos chegavam e partilhávamos entre nós, tínhamos frequentes discussões com o Mestre, que atingiram o auge quando da apresentação em Lisboa, no Salão da Sociedade de Belas Artes, da Exposição da “Moderna” Arquitectura Alemã – de que conservo um precioso catálogo. Moderna no nome, mas ferozmente anti-modernista no conteúdo, e espectacular demonstração do reaccionarismo estético da Alemanha nazi, foi inaugurada na primavera de 1941, quando o poderio hitleriano estava no auge, depois de conquistada toda a Europa (à excepção da Inglaterra) e imediatamente antes da invasão da União Soviética, que viria a causar a sua derrota.
Sucedeu que a exposição foi inaugurada por Albert Speer, o arquitecto favorito de Hitler, mais tarde nomeado ministro do armamento, função que lhe valeu vir a ser condenado pelo tribunal de Nuremberga onde foram julgados por crimes de guerra os dirigentes nazis. Condenado a vinte anos de cadeia, a que sobreviveu, publicou depois livros e tem sido objecto de estudo por historiadores do nazismo e da arquitectura. Pois foi esta importante personagem que veio nessa altura a Lisboa e foi guiado na capital portuguesa pelo próprio Cristino, já que a mulher deste era alemã. Contou-nos o Mestre, numa aula, que, chegados ao Terreiro do Paço, Speer exclamara maravilhado: “Então Vocês já têm isto há tantos anos! Nós só agora é que começámos a fazer.” De facto, a grande maioria dos monumentais edifícios que figuravam na exposição não chegaram a ser construídos, sendo uma das excepções a Chancelaria do Reich, onde o Fuehrer se suicidou quando da tomada de Berlim pelo exército soviético.
Entretanto, nas aulas, Cristino, olhando com desdém para os nossos trabalhos modernistas, dizia-nos: “Vocês ainda acreditam nisso, que já passou à História? Vão ver às Belas Artes a exposição de arquitectura alemã, que vai ser a arquitectura do futuro.” A despeito destas desavenças, Cristino da Silva ensinou-nos muitas coisas e, entre elas, o amor pela Arquitectura.
A frequência da Escola foi interrompida com a emigração para o Porto, juntamente com Costa Martins, por causa de um chumbo que nos foi dado na cadeira de História, mas por mando do director, e do qual recorremos sem sucesso. Fizemos um ano ali e regressei a Lisboa para terminar o curso, apresentando como prova final o projecto do complexo de captação de águas de Valada do Ribatejo, que me valeu 18 valores. Isto, ao contrário da grande maioria de outros colegas que começavam a constituir uma onda migratória de grandes proporções, e que iam fazer os últimos anos do curso ao Porto, atraídos pelo magistério de Carlos Ramos.
5. Um ano na Escola do Porto
Na Escola de Belas Artes do Porto era professor Carlos Ramos, que mais tarde viria a assumir a direcção. Já o conhecia pessoalmente, pois tinha trabalhado no atelier do Largo de Santos, levado pelo Carlos Manuel. Homem extremamente afável e aberto, deixava-nos à vontade, mas dando sempre, discretamente, seguras palavras de orientação. Como estávamos já na parte final do curso, não havia aulas e por isso eu e o Costa Martins não precisámos de nos mudar para o Porto. Apresentávamo-nos na Escola nos dias em que os trabalhos trimestrais nos eram dados pelo professor, voltávamos a meio do prazo para os nossos estudos serem apreciados e fazíamos chegar os projectos à Escola na data da respectiva entrega, voltando mais tarde para ouvirmos o veredicto de Carlos Ramos.
Lembro-me do que eram as nossas pitorescas viagens de comboio no “correio da noite”, na 3ª classe e sem aquecimento, parando em todas as estações para receber e entregar o correio, transportado em carruagens próprias. Era frequente no meio da viagem, em plena noite, famílias abrirem os cestos onde levavam suculentos farnéis. E também, por vezes, aparecer um ou outro passageiro que puxava dum instrumento musical e punha-se a tocar uma melodia popular. Na chegada ao Porto, ao romper da aurora, contemplávamos a cidade, a partir de Gaia, envolta em nevoeiro, e desembarcávamos em S. Bento. Subíamos depois a rua de S. António e atravessávamos, enregelados, o Jardim de S. Lázaro para chegarmos à avenida Rodrigues de Freitas. Quando, uma ou outra vez, era preciso pernoitar no Porto, meu Tio José arranjava maneira de ficarmos hospedados, a baixo custo, na Messe dos Oficiais, à Praça da Batalha.
Quanto à remessa dos trabalhos para entrega na Escola, acabados à pressa com noitadas pelo meio, íamos levá-los à estação de Entre-Campos, depositando as respectivas embalagens na carruagem-correio.
Como as nossas estadias na Escola eram breves, não tive por isso oportunidade de me relacionar com colegas do Porto, só me recordando de ter conhecido o João Andresen, irmão da Sophia e arquitecto notável, prematuramente falecido e com quem fiz amizade. Efectivamente, alguns que frequentavam a Escola por essa altura – como Fernando Távora, José Carlos Loureiro ou Octávio Lixa Filgueiras – só os vim a conhecer mais tarde, já nas lides profissionais.
6. No Instituto Luso-Alemão: der Sprache des Zukunft
Estava-se em plena guerra mundial e os exércitos alemães lançavam as divisões Panzer à conquista da Europa, numa irresistível Blitzkriege, enquanto vagas de refugiados chegavam a Portugal, procurando atingir as Américas. Aqui, a opinião pública dividiu-se em anglófilos e germanófilos, sendo estes uma minoria. Apesar de em nossa casa sermos anglófilos, a ascendência alemã, por parte da minha Avó Herrmann, era assumida com orgulho. Foi neste quadro que me decidi a estudar alemão, que muitos diziam ia ser a língua do futuro: der Sprache des Zukunft.
No primeiro ano, numa escola católica, perto da nossa casa, à Rua do Quelhas e, a seguir, no prestigioso Instituto Luso-Alemão, instalado junto ao que se chamava então a Rotunda, na avenida Joaquim António de Aguiar (o “mata-frades”), num palacete em estilo barroco que se tem mantido de pé. O director era o principal chefe nazi em Portugal e a propaganda hitleriana enchia as salas do edifício.
As aulas eram em horário pós-laboral, ao fim da tarde e os progressos eram lentos, porque a língua era difícil. Fui ainda mais dois anos, mas acabei por desistir, ainda em plena guerra, sem ter conseguido aprender mais do que algum vocabulário e regras gramaticais. Mas fiquei com uma visão mais alargada do mundo germânico, ajudada por uma pronúncia que os professores diziam ser excelente (eine gute ausprechen).
7. No Centro de Estudos Geográficos, com Orlando Ribeiro
Sempre com a paixão pela Geografia, o Carlos Manuel Ramos falou-me de um curso livre que um seu tio, professor na Faculdade de Letras, iria ministrar. Não hesitei e lá nos fomos inscrever no Centro de Estudos Geográficos, que ele criara havia pouco. As aulas ao fim da tarde, acompanhadas com muitos diapositivos, ainda nas instalações do antigo convento de Jesus, foram para mim um deslumbramento. O que Orlando Ribeiro ali nos ensinava, produto de uma investigação original que o levou a ser considerado o maior geógrafo português do século, era essencialmente o que veio a ser publicado pouco depois num livro fundamental da nossa geografia: “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico”, de que comprei logo a 1ª edição. Impulsionador entre nós da Geografia Humana, Orlando Ribeiro, que tanto percorria o País de lés-a-lés como se correspondia com os grandes mestres mundiais, dava-nos uma nova e completa visão do nosso território em que os aspectos físicos e climáticos se enredavam com a História do povoamento numa síntese admirável que me deixava extasiado. Se até então já desejava conhecer melhor o País, com as suas paisagens e as suas gentes, esse desejo tornou-se uma ânsia que nunca mais me largou, pois passei a ser capaz de ler melhor um território marcado por séculos de ocupação humana.
8. E no primeiro curso de Arquitectura Paisagista, com Caldeira Cabral
Em 1942, Francisco Caldeira Cabral, que tirara o curso de Arquitectura Paisagista na Alemanha, abre, no Instituto Superior de Agronomia, o 1º curso desta disciplina em Portugal. Com o propósito de atrair estudantes, e dado o carácter inovador da iniciativa, admite alunos livres nas suas aulas. Eu e o Carlos Manuel Ramos aproveitámos a oportunidade e frequentámos o curso durante o primeiro ano.
Foi assim que fomos colegas, durante algum tempo, dos primeiros diplomados em Portugal, entre eles Gonçalo Ribeiro Teles, Edgar Fontes, Álvaro Dentinho e outros, curiosamente todos eles activistas da Causa Monárquica, e que estiveram, por isso, ligados à fundação do Centro Nacional de Cultura. Assim se explica como o primeiro movimento ecologista que apareceu em Portugal após o 25 de Abril foi o Partido Popular Monárquico, que deu mais tarde origem ao Partido da Terra.
As lições de Caldeira Cabral eram fascinantes e, para nós, abordando matérias inteiramente novas. Não mais esqueci uma aula fazendo a descida da Avenida da Liberdade, com explicações detalhadas sobre as espécies arbóreas que se sucediam desde o Marquês de Pombal até aos Restauradores, e que eram mais variadas do que as que existem actualmente, pois foram quase totalmente substituídas por plátanos. No quarteirão a seguir aos Restauradores dominavam as acácias japonesas e logo acima enormes ulmeiros que foram dizimados por uma doença que os atacou nos anos sessenta.
9. Duas cadeiras em Económicas, para acesso ao Curso de Oficiais Milicianos
O facto do curso das Belas Artes não ser superior, ou universitário, pertencendo ao chamado Ensino Médio, implicava que o serviço militar obrigatório fosse prestado na escola de sargentos milicianos, que funcionava em Tavira – o que fazia perder um ano lectivo inteiro na carreira académica.
Foi essa a razão que me levou e ao colega José Croft de Moura a procurarmos ingresso num curso superior, já que, neste caso, o serviço militar era prestado durante dois períodos seguidos das férias grandes. Mas, para isso, era necessário passar no exame de admissão e fazer pelo menos duas cadeiras do 1º ano.
Ponderadas as várias alternativas, optámos por concorrer ao então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, não porque tivéssemos qualquer inclinação para tais matérias, mas porque nos parecia mais acessível. Mas, antes, ainda tivemos de fazer os antigos 6º e 7º anos do liceu, com lições particulares ao fim do dia e à noite.
Aprovados na admissão, escolhemos as duas cadeiras que nos pareciam mais acessíveis, e também interessantes, que foram História Económica e Geografia Económica – já que as áreas de ciências ou matemática nos obrigariam a um esforço muito maior. Lá terminámos o ano com sucesso e fomos alistados no Serviço de Administração Militar, onde também eram colocados os estudantes de Direito.
Foi assim que fomos parar nas férias grandes de 1943 à Póvoa do Varzim, para fazermos o 1º ciclo do Curso de Oficiais Milicianos. Não havendo espaço suficiente nas camaratas, ficámos hospedados numa pensão barata, de que guardo uma recordação preciosa: um quadro a guache, representando o meu quarto, com nítidas influências de Van Gogh, e onde avultam umas botas altas de cavalaria, porque então o serviço de Administração Militar funcionava com viaturas puxadas por mulas, andando os oficiais a cavalo.
É claro que aproveitei para fazer novos amigos e para conhecer os arredores, em passeios aos domingos em camionetas de passageiros – para além dos que gozava em grandes cavalgadas ou marchas a pé na instrução militar.
10. Na Escola Prática de Administração Militar
O 2º ciclo do Curso de Oficiais Milicianos foi feito em Lisboa, em 1944, na Escola Prática, à Alameda das Linhas de Torres, Lumiar, onde hoje está uma universidade privada. Aí tivemos aulas versando diferentes especialidades, desde o fabrico de pão até ao abate de bovinos e ao corte das respectivas carnes. Promovidos depois a aspirantes milicianos, iniciámos então a prova final, que consistiu em comandar um pelotão de 30 recrutas que acabariam como soldados rasos.
Do ponto de vista das relações humanas, foi essa a fase mais interessante do meu serviço militar, se bem que as anteriores tivessem já constituído uma experiência muito enriquecedora nessa matéria. Dado que se tratava da Administração Militar, os recrutas tinham sido destinados a este serviço a partir das profissões que desempenhavam. Por isso abundavam os padeiros, os magarefes e os cortadores, muitos deles com poucas letras, ou mesmo analfabetos. Foi então que fiquei a conhecer alguns homens nestas condições, mas dotados de excepcional inteligência e que, por isso, estavam destinados a fruir condições de vida muito modestas e extremamente limitados no contributo que poderiam dar à sociedade. Esta constatação marcou-me profundamente, fazendo-me ver com crueza a injustiça da sociedade em que vivíamos. Ao mesmo tempo, a camaradagem com pessoas de todas as classes sociais veio fortalecer sentimentos que já vinham de trás quanto à necessidade de mudanças radicais que proporcionassem a todos igualdade de oportunidades ao longo da vida.
É assim que considero ter sido para mim o serviço militar uma escola de vida, e por isso entendi o fim do seu carácter obrigatório como um atentado à prossecução de um mundo mais justo e solidário.
11. Um convite para professor vetado pela Pide
Em várias ocasiões, colegas colocados na Escola de Belas Artes (já então Superior) me sugeriram que concorresse ou aceitasse funções docentes. Sempre fui dizendo que não estava interessado. Por um lado, o trabalho que tinha, acumulando o de assalariado da Previdência Social com a profissão liberal, não me deixava margem para mais responsabilidades. Mas também porque não me sentia atraído, nem sequer capacitado, para a dimensão teórica da arquitectura, ferramenta que considerava indispensável para exercer o cargo de professor.
No entanto, em 1966, o meu amigo Frederico George, com quem tinha trabalhado em projectos importantes, então responsável pelo curso de Arquitectura da ESBAL, passou uma manhã inteira no atelier da Rua da Alegria para me convencer a aceitar o lugar de professor – o que acabou por acontecer. Passaram entretanto alguns meses até que ele me comunicou que a proposta que fizera nesse sentido fora recusada pelo governo por razões políticas. Recebi depois uma carta do então director, arquitecto Paulino Montez, com data de 20.01.67, comunicando-me que, “por despacho ministerial” fora recusada à Escola a autorização para me contratar. Não fiquei surpreendido com esse desfecho, já que a minha oposição à ditadura se vinha manifestando em várias ocasiões, mas confesso que senti um grande alívio por não ter de enfrentar as exigências a que a função docente me iria obrigar e para as quais não me sentia preparado.
Por muito que custe a acreditar por quem não viveu esses tempos (que duraram quase meio século) a contratação de professores ou de quaisquer outros lugares na Administração Pública, e até lugares de direcção nos sindicatos, só eram possíveis com parecer favorável da Pide. Foi assim que, passado um ano, recebi uma carta do Sindicato Nacional dos Arquitectos dizendo que o meu nome não tinha merecido a necessária homologação para o cargo para o qual havia sido eleito como vogal da Direcção.
12 – Já no século XXI, duas docências honorárias
Foi com este pano de fundo que recebi a notícia de que a Faculdade de Arquitectura do Porto me queria conceder o grau de doutor “honoris causa”, ao mesmo tempo que o celebrado italiano Vittorio Gregotti, co-autor, com Manuel Salgado, do Centro Cultural de Belém. O acto teve lugar em Janeiro de 2003 e o elogio foi feito por Nuno Portas. Como padrinho, tinham convidado Manuel Tainha que, por circunstância imprevista, não pôde estar presente mas mandou uma mensagem que ouvi pela voz amiga de Clara Mendes, directora da Faculdade de Lisboa. Álvaro Siza foi o padrinho de Gregotti e à cerimónia assistiram familiares e amigos, num ambiente de alegre confraternização. A artrose que me atacara o joelho direito já ia adiantada e por isso tive que utilizar uma belíssima bengala de acrílico que a Irene tinha trazido do Brasil como objecto de design, e que fez um sucesso no palco.
No mês seguinte sofri a primeira operação ao joelho, que não resultou, pelo que a bengala foi minha companheira inseparável ainda quase três anos.
Passados dois anos, em 13 de Abril de 2005, foi a vez da Faculdade de Arquitectura de Lisboa, desta vez na companhia do goês Charles Correa e de Gonçalo Byrne. A apresentação foi feita por Ana Tostões, que fez o papel de madrinha. Foi-me pedida a feitura de um painel ilustrativo da minha actividade profissional ao longo do tempo, que foi entregue em CD e colocado na parede.
Nas palavras de agradecimento, evoquei as causas que fui transformando em paixões: a habitação para todos, o território e o património, o associativismo e a sede de informação, do local ao global. Dirigindo-me aos estudantes, fui pródigo em conselhos, mas destaquei um deles: serem fieis a si próprios.
Tal como no Porto, fiz os percursos solenes apoiado na bengala, que teria a ventura de deixar a meio do ano, graças a uma 2ª operação ao joelho, com a colocação duma prótese pelo professor Delgado Martins, que mudou em muitos aspectos o meu quotidiano, voltando a andar a pé e utilizando diariamente o Metro nas deslocações para o atelier, como fazia desde que fora inaugurado no Natal de 1959.
Documento impresso, 2008, inédito.