1. O furacão Humberto Delgado e os abaixo-assinados
Se bem que interessado pela política, fui resistindo, ao longo dos anos, ao engajamento partidário. Tendo, durante muito tempo, adoptado uma atitude de passividade, fui inflectindo para a esquerda, no campo dos que vieram a ser chamados católicos progressistas, movimento que se radicalizou com a luta anti-colonial.
Assumindo e praticando, já claramente, a oposição à ditadura após o furacão Humberto Delgado, o meu catolicismo convicto defendeu-me das investidas feitas por amigos para me ligar a alguma das correntes marxistas então dominantes à época. E também a aversão que sentia pelo estalinismo, de cujos horrores me ia informando e com que muitos estavam comprometidos, fazendo por desconhecer a crua realidade dos factos. Foi assim que a invasão da Hungria em 1956 afastara definitivamente algum benefício da dúvida que ainda pudesse restar. Mas também terá contribuído para esse distanciamento a preguiça mental que sempre me caracterizou, traduzida na falta de apetência pelas grandes narrativas teóricas que tanto seduziam alguns amigos e companheiros e que os fizeram aderir a causas políticas que vieram a soçobrar rotundamente e em que eles hoje certamente não se revêem. Datam desse período os abaixo-assinados de católicos que então subscrevemos. Os primeiros, a seguir a Delgado e à carta do bispo do Porto a Salazar, redigidos pelo incansável Francisco Lino Neto, que percorreu o país em busca de assinaturas, e que reclamavam eleições livres e denunciavam os crimes da Pide; mais tarde, o Manifesto dos 101, com origem no grupo da revista “O Tempo e o Modo”, e que já levantava questões relativas à guerra colonial.
Entretanto, já convencido de que a ditadura só cairia pela força, como realmente aconteceu no 25 de Abril, a minha maneira de ser não me dotava dos requisitos necessários para me comprometer com acções armadas, com as quais, de resto, simpatizava e, episodicamente, colaborei.
Recordo que uma vez combinei um encontro com Carlos Antunes, dirigente das Brigadas Revolucionárias, que vivia na clandestinidade. Foi no jardim do Instituto de Oncologia, a Palhavã. Instou a que me ligasse a eles e deixou-me nas mãos um manual para o fabrico de explosivos, que li em casa, com toda a atenção. Passados uns dias, em novo encontro que tínhamos combinado, devolvi-lhe o livro, argumentando que não tinha jeito para aquele tipo de coisas. E não foi desculpa. Era verdade, como se veio a confirmar infelizmente mais tarde, perante as torturas a que fui submetido no forte de Caxias e às quais não consegui resistir o suficiente.
É preciso notar, entretanto, que os movimentos de luta armada que actuaram antes do 25 de Abril, embora praticando actos de violência, fizeram-no contra alvos militares, nunca em acções terroristas. Foi assim com a LUAR, de Palma Inácio, com a ARA de Raimundo Narciso, ligada ao Partido Comunista, e com as Brigadas Revolucionárias de Carlos Antunes e Isabel do Carmo. Trata-se de um comportamento que honra esses grupos e a luta contra a ditadura em Portugal.
2. O associativismo para fazer política: a PRAGMA
A PRAGMA, “cooperativa de difusão cultural e acção comunitária”, cujo nome foi inventado pelo Mário Murteira, foi fundada por um grupo de católicos em 1963, no 1º aniversário da encíclica “Pacem in Terris” do saudoso papa João XXIII. Agregando militantes dos sectores intelectual e laboral, este último representado por pessoas como João Gomes e Manuel Bidarra, oriundos da LOC, desenvolveu uma série de iniciativas que tiveram ampla repercussão e serviram até de modelo para a criação de organizações congéneres, como a Cooperativa Confronto, sediada no Porto e animada por Mário Brochado Coelho, de que Francisco Sá Carneiro era o sócio nº 1, e a DEVIR, ligada ao Partido Comunista, tendo mais tarde surgido a CED, “Cooperativa de Estudos e Documentação”, por iniciativa da corrente afecta ao futuro Partido Socialista, dirigida por José Ribeiro dos Santos.
A liberdade de movimentos de que estas organizações puderam usufruir, no quadro repressivo da ditadura, deveu-se ao facto de os constrangimentos que incidiam sobre associações, sindicatos, etc., não se aplicarem às cooperativas, consideradas estas como meros agentes económicos sem quaisquer relações com a política. Foi assim que a PRAGMA se aproveitou de um vazio legal que lhe permitiu organizar livremente colóquios, exposições e outras actividades e de não ser obrigada à homologação, por parte dos governos civis, dos seus corpos gerentes. Até conseguimos ter uma sede, num r/chão alugado na rua da Glória, perto dos Restauradores, com o jovem Joaquim Lavado fazendo de funcionário.
Ficaram-me na memória os colóquios sobre temas candentes da nossa sociedade e dos quais alguns eram tabu para o regime: emigração, educação popular, condição da Mulher, situação na Universidade, habitação, saúde, ecumenismo religioso, sindicalismo. Uma exposição itinerante sobre o Plano de Fomento, orientada por Francisco Pereira de Moura e Alexandre Vaz Pinto, desmascarando a propaganda do governo, teve um enorme sucesso – tanto que acabou apreendida pela Pide no Norte, em S. Mamede de Infesta.
Não passou muito tempo sem que a sede fosse encerrada, em 1967, invocando a Pide que, a coberto duma organização legal, se desenvolviam actividades subversivas. Mesmo assim, prosseguimos com algumas iniciativas, enquanto o governo preparava uma alteração legislativa sujeitando as cooperativas que promovessem actividades culturais ao regime legal das associações – o que veio a acontecer já no tempo de Marcelo Caetano.
Lembro-me bem desses dias. A Natália estava na sede quando a Pide chegou e telefonou-me. Logo lá acorri, desde o atelier da Rua da Alegria, que ficava próximo, e deparei com o celebre inspector Sachetti, a arrancar dos painéis fixados às paredes cartazes e outros documentos que dizia serem subversivos. Eu e o Mário Murteira, presidentes da direcção e da assembleia-geral, fomos convocados separadamente para irmos à António Maria Cardoso. Quiseram-me forçar a assinar uma declaração acerca de alguns desses documentos – de Cuba, da Argélia, de países do Leste e de movimentos de libertação. Recusei, alegando que só assinaria com a menção de todos os que lá estavam, e que incluíam outros de origem sindical, de movimentos cristãos, etc. Tivemos uma discussão – pois ainda nos tratavam com respeito – e o Sachetti acabou por desistir.
Foi assim que a acção da PRAGMA foi das mais exaltantes nos desafios à ditadura.
3. A luta clandestina contra a censura
Em 1961, após a revolta no norte de Angola e o malogrado assalto à cadeia de Luanda, em 7 de Fevereiro, para libertar activistas pela independência detidos pela Pide, um grupo de padres angolanos foi preso e deportado para Portugal. Colocados isoladamente e com residência fixa em casas religiosas, vigiadas pelos respectivos superiores por incumbência da polícia política, o nosso grupo de militantes cristãos teve notícia do sucedido e logo procurámos contactar com alguns deles para os ajudarmos no que fosse necessário e manifestar-lhes a nossa solidariedade. Entre eles estava Joaquim Pinto de Andrade, à data vigário-geral da Sé de Luanda e que fomos visitar numa casa religiosa em Valadares, Gaia. Logo dele obtivemos informações que nos foram permitindo contactar outros padres.
Perante estes acontecimentos, que a censura impedia que chegassem ao conhecimento do público, tornava-se imperioso divulgá-los, ainda que clandestinamente. Foi o que fizemos, congregando apoios e colaborações – sempre dentro do maior sigilo, iniciando-se a partir de 1963 a publicação de um pequeno caderno policopiado chamado “Direito à Informação”. E as cautelas foram tão bem sucedidas, que a Pide, apesar de conhecer a publicação, mercê de inúmeros exemplares apreendidos nos correios, nunca conseguiu descobrir os seus responsáveis.
Até ao 25 de Abril participei activamente noutras publicações clandestinas de grupos católicos, como o jornal “Igreja Presente”, em 1967, o “Boletim Anti-Colonial”, cujo principal animador foi Luís Moita, os Cadernos GEDOC, dinamizados em 1968 pelo padre José Felicidade Alves (de cuja capa fui autor) e os “Sete Cadernos contra a Guerra Colonial”, com mapas mostrando a situação militar desenhados por mim. Foi este o último trabalho da Natália, que os bateu integralmente à máquina, e que foram distribuídos por todo o país por altura da sua morte, em 1971.
4. As eleições de 1969
Uma experiência de que guardo uma grata memória foi a das eleições de 1969. As primeiras no consulado de Marcelo Caetano, e que tiveram um grau de liberdade maior do que as do tempo de Salazar e por isso foram alvo de enorme expectativa. Tendo concorrido duas listas da oposição, a CDE/Comissão Democrática Eleitoral e a CEUD/Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, ligada ao então recente Partido Socialista – optámos pela primeira, lançada pelo Partido Comunista e à qual aderiram os chamados católicos progressistas e de que o nosso amigo Francisco Pereira de Moura era a figura dominante.
Tendo casa em Marvão e por isso com ligações a oposicionistas da região, fiz parte da lista por esse distrito, juntamente com o poeta Joaquim Namorado, o marquês de Fronteira, Fernando Mascarenhas, e outros dedicados companheiros. Pude então dar-me conta do medo que ainda existia em afrontar o regime, em amplas camadas da sociedade portuguesa. Sendo necessárias 50 assinaturas para subscrever a candidatura, percorremos incansavelmente cidades, vilas e aldeias do distrito, deparando até com resistências inesperadas da parte de pessoas que nos tinham sido indicadas como da oposição. De tal maneira que, quando, exaustos, chegámos ao Governo Civil no último dia do prazo para entregar as listas, os serviços tinham encerrado havia já duas horas. Desesperados com o fracasso, eu e a Natália fomos sentar-nos num café da cidade onde redigi um comunicado à população, que, clandestinamente, foi impresso em Lisboa e de que distribuímos milhares de exemplares durante a campanha que se seguiu. Portalegre foi, com Bragança, um dos dois distritos onde a oposição não concorreu, mas isso não nos fez baixar os braços: corremos de novo todo o distrito, aproveitando aquele intervalo de liberdade para alertar as pessoas e sacudir o medo que as subjugava. É claro que as eleições foram falseadas e as listas da União Nacional, baptizada por Caetano de Acção Nacional Popular, ganharam em todo o país.
5. O apoio aos presos políticos e a denúncia da repressão
Em 1969, também uma lacuna na legislação salazarista foi aproveitada para criar uma organização legal escapando à apertada malha repressiva do regime: a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. E “de Socorro” porquê? Porque o Código Civil, que regia as associações, obrigando estas a uma aprovação prévia dos estatutos e à homologação pelo governo dos respectivos corpos sociais, admitia uma excepção: a da ocorrência de calamidades, permitindo a constituição de Comissões de Socorro para ajuda rápida aos sinistrados. Foi portanto com base no artigo 199 do Código Civil que a Comissão foi constituída, argumentando-se, em carta enviada a Marcelo Caetano, que a existência de presos políticos era uma calamidade nacional.
Esta iniciativa teve origem numa carta com data de Janeiro de 1968, assinada pela Natália mas redigida por nós os dois, em que se propunha a criação de um serviço que permitisse organizar o apoio aos presos e exilados políticos e suas famílias. Invocando uma epístola de S. Paulo aos cristãos de Roma, exortando à ajuda aos necessitados, o teor da carta foi ganhando aderentes de proveniências diferentes, já que distribuída não só a católicos, como também a militantes de vários partidos. Obtida a participação de advogados experimentados na defesa de presos políticos, como Abranches Ferrão, Manuel João da Palma Carlos, Mário Brochado Coelho e José Augusto Rocha, ligados a diferentes correntes políticas da oposição, coube a eles a orientação jurídica das actividades da Comissão.
Constituída por várias dezenas de personalidades do mundo da cultura e ainda outras, incluindo nove padres católicos e um pastor evangélico, o governo nunca ousou reprimi-la, apesar das inúmeras actividades que desenvolveu. Essas actividades iam desde a divulgação de circulares mencionando as prisões efectuadas, as violências praticadas pela Pide e as arbitrariedades dos Tribunais Plenários, até ajudas concretas aos presos e respectivas famílias, que eram igualmente noticiadas. Tínhamos uma lista completa acerca de todos os presos e da respectiva situação, com dados sempre actualizados fornecidos por familiares ou correligionários: libertações, novas prisões, torturas infligidas, estado de saúde, dificuldades económicas, etc. As reuniões semanais de trabalho eram realizadas no escritório da advogada Maria Lucília Miranda dos Santos e os plenários, com aderentes de todo o país, no Centro Nacional de Cultura, mesmo ao lado da Pide, na sinistra rua António Maria Cardoso, mas local relativamente seguro por ter sido fundado por um grupo de monárquicos trinta anos atrás.
Dois volumes foram publicados reunindo todas as circulares, cartas de protesto às autoridades, registos dos presos e outros documentos, o primeiro dos quais em 1972, ainda em plena ditadura. Editado pela Afrontamento e sob a responsabilidade de Armando de Castro, Francisco Pereira de Moura e Luís Filipe Lindley Cintra, foi vendido clandestinamente, pois nas livrarias seria apreendido pela Pide. A Comissão desenvolveu um trabalho muito eficaz de denúncia e de consciencialização política, no qual tivemos a oportunidade de participar activamente desde a primeira hora. E foi aí que conheci e ganhei amizade com pessoas de elevada craveira cultural e cívica, com cujo convívio muito fiquei a ganhar. Lembro, como figura central de todo esse processo, a grande Mulher que é Maria Eugénia Varela Gomes.
Documento impresso, 2008, inédito.