Arquitetura Habitação

Memórias inacabadas 7 – A habitação para todos

Livro publicado em 2013, com coordenação científica de Nuno Portas, dedicado a Nuno Teotónio Pereira

1. A primeira encomenda, ainda a meio do curso de Arquitectura

Em 1944, um amigo de meu Pai encomendou-me um projecto para um conjunto de habitação social, ainda sem local fixado, para a Caixa de Abono de Família dos Empregados de Escritório do Distrito de Lisboa. Já fascinado pelas leituras de Le Corbusier, com as suas propostas para a “unidade de habitação”, resolvi projectar um grande conjunto, não na vertical, mas na horizontal – o que me parecia mais adequado para o nosso país. Foi assim que estudei um enorme complexo, ocupando um grande quarteirão, onde se previam todas as funções e situações. Para além de grandes blocos multifamiliares de 4 pisos, todo um conjunto de equipamentos ligados ao abastecimento, ao ensino, à saúde, ao recreio, etc. – e ainda residências para trabalhadores solteiros. Uma verdadeira “unidade auto-suficiente de habitação e serviços”.

O caso não teve seguimento, mas ainda conservo esse estudo, que demonstra um grande cuidado na procura das melhores soluções funcionais para a habitação e um sentido de complementaridade entre a casa e os equipamentos que lhe são inerentes para a sua plena fruição – conceito tantas vezes ignorado nos empreendimentos da habitação social.

2. Na construção do bairro de Alvalade, como tarefeiro contratado pela Câmara Municipal de Lisboa

Em 1946, por intermédio do eng.º Jovito Tainha, irmão de Manuel Tainha e funcionário da CML, eu e o Costa Martins – ainda antes de terminado o curso! – fomos contratados para trabalhar no bairro de Alvalade como adjuntos do arquitecto Miguel Jacobetty, autor dos projectos dos primeiros conjuntos de Casas de Renda Económica aí em construção. Foi assim que tivemos oportunidade de assistir ao rasgamento da avenida de Roma e de todos os arruamentos do bairro e de acompanhar a construção dos edifícios, com a aplicação de processos inovadores trazidos da reconstrução das cidades inglesas pelo eng.º Guimarães Lobato, então director de Serviço na CML, e aplicados sob a direcção do competente empreiteiro que foi António Veiga.

Foi muito enriquecedora a experiência de Alvalade. Desde logo, por se tratar de um plano que ficou na História do Urbanismo em Portugal, da autoria de Faria da Costa, lançado sem peias sobre vastos terrenos que haviam sido expropriados ao preço da chuva por Duarte Pacheco. Dividido organicamente em células, delimitadas por vias de grande circulação, o plano criou a possibilidade de construir um dos melhores bairros de Lisboa, em que a tranquilidade no interior dessas células se conjuga com a centralidade das avenidas, dotadas de equipamentos de toda a espécie. Um dos aspectos interessantes da construção foi a adopção, para algumas células, de morfologias urbanas mais de acordo com os princípios da Carta de Atenas, que tanto nos empolgavam na época. Foi o caso, entre outros, do chamado Bairro das Estacas, de Rui Atouguia e Formosinho Sanches, com os seus blocos paralelos, não alinhados com os arruamentos. Apesar da sua excelência, o plano de Faria da Costa foi marcado por uma insuficiência curiosa. À época, dava-se grande importância ao chamado “zonamento”, para fixar a localização das diferentes actividades. Assim, foi definida uma grande “zona comercial”, abarcando a avenida da Igreja e ruas circundantes com centenas de lojas nos pisos térreos de todos os prédios. Mas não havia a noção da importância dos “eixos”. Daí que a avenida de Roma, que se tornou rapidamente uma das principais artérias comerciais de Lisboa, tivesse sido construída com habitações no r/chão dos edifícios – situação que se foi alterando gradualmente ao longo dos anos com o rasgamento de espaços para estabelecimentos comerciais.

Recordo que a fiscalização das obras estava instalada numa casa senhorial, a “Quinta da Brasileira”, no local onde depois foi construída a escola Eugénio dos Santos.

Foi também na construção de Alvalade, assessorando Miguel Jacobetty no acompanhamento técnico das obras, que testemunhámos a origem do nome do Bairro de S. Miguel. Acontecia que, não existindo ainda, à época, a expressão “Senhor arquitecto” (o tratamento equivalente só o mereciam os “Senhores engenheiros”), os construtores e encarregados tratavam Jacobetty por “Senhor Miguel” – expressão que, mais tarde, se transformou em “São Miguel”.

Tratando-se, neste caso, de Casas de Renda Limitada, o respectivo acesso, muito disputado, foi facilitado a funcionários da Câmara, como era o meu caso, o que aconteceu quando casei, em Outubro de 1951.

3. O regime das “Casas de Renda Económica”, em que trabalhei durante um quarto de século

A primeira aposta do Estado Novo na habitação social foi o modelo intitulado das chamadas Casas Económicas. Tratava-se de habitações unifamiliares, isoladas ou, quando muito geminadas, traduzindo o ideal manifestado por Salazar: casa própria, modesta e bem portuguesa.

Organizadas em conjuntos tendo ao centro a igreja e as duas escolas (masculina e feminina) e dispondo de mercado ou pequeno centro comercial, formavam verdadeiras “aldeias” construídas nas orlas das cidades e de algumas vilas mais importantes. Dispondo de um pequeno quintal, a linguagem arquitectónica, com beirados acentuados, torreões e pérgulas, tornou-se um paradigma do que veio a ser a arquitectura do regime. Um dos mais emblemáticos conjuntos é o Bairro da Encarnação, perto do aeroporto, projecto do arqtº Paulino Montez, que fora o autor, poucos anos antes, do bairro económico do Alvito, na encosta de Monsanto, chamado “Salazar” e ainda de traça modernista, quando esta ainda não fora proscrita.

Apesar de se terem espalhado pelo país, tornou-se a certa altura evidente que tal modelo nunca poderia solucionar o candente problema que se fazia sentir, já que o custo da construção e da urbanização por unidade de alojamento era demasiado elevado, dada a baixa densidade desses conjuntos.

Foi neste quadro que o governo decidiu criar um novo regime, admitindo a construção de blocos pluri-familiares (mas com o máximo de quatro pisos), abdicando assim da casa ideal de Salazar. Para a concretização desse programa, foi deliberado, por proposta de meu Pai na Assembleia Nacional(1), que a respectiva construção ficasse a cargo das Caixas de Previdência, as quais, criadas há pouco tempo, dispunham – ao contrário do que hoje sucede – de saldos avultados, pois as contribuições colectadas eram em valor muitíssimo superior às pensões a pagar.

Entretanto, em 1948, é organizado pelo Sindicato dos Arquitectos, presidido por Keil Amaral, o 1º Congresso Nacional de Arquitectura, onde também podiam participar os finalistas – como era o meu caso. Foi nesse histórico encontro que eu e o Costa Martins apresentámos uma tese na secção dedicada ao problema da Habitação, significativamente intitulada “Habitação económica e reajustamento social”, em que a expressão “reajustamento” significava para nós algo como uma revolução gradual.

Nesse mesmo ano, enquanto desenvolvia o projecto final do curso de Arquitectura, fui convidado para ingressar no organismo que havia sido criado para a promoção das Casas de Renda Económica, em cuja construção estava a participar, enquanto tarefeiro da CML. Tratava-se da Federação de Caixas de Previdência – Habitações Económicas, criada em 1946.

Na altura tinha já uma outra oportunidade de emprego, proporcionada por meu Tio, Pedro Teotónio Pereira, no Departamento de Turismo do Secretariado Nacional da Informação, dirigido pelo arqtº Leonardo Castro Freire. Mas logo preferi, entusiasmado, o trabalho na Federação, sector que me interessava muito mais, com a possibilidade que me era dada de acompanhar a construção de muitos conjuntos de habitação social por todo o país. Sediado esse organismo na rua da Sociedade Farmacêutica, eu era o único arquitecto entre o pessoal técnico, constituído por engenheiros e pelos então chamados agentes técnicos de Engenharia. Por isso, esses colegas me designavam, por ironia, como “o artista”. Recordo, com a saudade de muitos anos de camaradagem, o chefe de serviço eng. Marques Leite, o eng. Gastão Ricou e os agentes técnicos Costa Mota e Blanc de Sousa. Com eles e com o Presidente, Pedro Castro e Almeida e às vezes até com os ministros das Corporações Veiga de Macedo e Gonçalves Proença, percorri o país em múltiplas direcções, fosse para escolher terrenos a fornecer pelas Câmaras Municipais, fosse para averiguar das condições com a finalidade de serem elaborados os projectos, fosse ainda para contactar arquitectos locais ou para acompanhar depois as respectivas obras. Uma das preocupações nestas diligências era que os conjuntos de C.R.E. – de que se construíram dezenas por todo o país – não viessem a constituir “bairros” com tendência para a guetização, mas se inserissem na malha urbana dos aglomerados. Tinha ainda a meu cargo a redacção de informações para a Direcção, respeitantes aos arquitectos convidados e aos projectos e obras em curso.

Foi nesse organismo que conheci Natália Duarte Silva, funcionária dos Serviços Técnicos, que passou a bater os meus textos à máquina, e com quem viria a casar.

No final dos anos 50, com o constante aumento do número de empreendimentos, procedeu-se a uma reorganização dos serviços, aumentando o número de quadros técnicos. Não podendo continuar a sujeitar-me a um horário “full time”, devido às encomendas que chegavam ao atelier, indiquei um jovem colega para ficar à frente dos serviços, passando eu a consultor, com algumas horas diárias, à tarde. Tratava-se do João Braula Reis, sob cuja direcção a Federação deu passos gigantes, com a entrada de numerosos colegas, quer para os serviços centrais, como Vasco Lobo, Bartolomeu da Costa Cabral, Vasco Croft de Moura e João Rebelo, quer na qualidade de arquitectos regionais. Entre estes últimos, profissionais de grande valor, como Vítor Figueiredo, Alcino Soutinho, Manuel Bagulho e Octávio Filgueiras, ou ainda Pinto de Sousa, pai de José Sócrates, arquitecto regional da Beira Interior. A presidência, durante todo esse período, foi ocupada pelo eng.º Rafael dos Santos Costa, trazido da Covilhã por Veiga de Macedo, onde trabalhava nos Serviços Técnicos Municipais.

Um dos aspectos interessantes que desde o início defendi na Federação foi a possibilidade de os funcionários técnicos não se limitarem às tarefas burocráticas, podendo também elaborar projectos, quer no quadro do próprio organismo, quer até nos seus ateliers, como foi o meu caso. Este regime, que tenho defendido junto de serviços públicos e até de Câmaras Municipais, torna as carreiras do funcionalismo atractivas para os espíritos mais criativos e permite conjugar as tarefas de apreciação de projectos com a prática de os elaborar. Foi assim que, no atelier da rua da Alegria, se fizeram interessantes projectos para Braga, Barcelos, Vila do Conde, Elvas, Trancoso e Castelo Branco.

Outro aspecto importante que mantive na Federação foi a recusa dos chamados “projectos-tipo”, então muito em voga em vários organismos, e que daria origem, se tivesse sido adoptado, a soluções repetitivas e descontextualizadas. Pelo contrário, os diferentes projectos, entregues a arquitectos competentes e discutidos entre nós, foram sempre expressões muito ricas de abordagens diferenciadas e muito bem integradas localmente.

Foi já na qualidade de consultor que recebi a incumbência de dirigir um grupo de trabalho para a elaboração de uma proposta relativa à política de habitação, a incluir pela primeira vez nos Planos de Fomento. Foi uma tarefa fascinante, a que dediquei inteiramente vários meses, incluindo noitadas na nova sede da Federação, na avenida Duque d’Ávila. Reunindo meia dúzia de peritos, entre os quais Raul da Silva Pereira, secretário da revista “Análise Social” e que veio a ser o primeiro presidente do Instituto Nacional de Habitação após o 25 de Abril, produziu-se um volumoso relatório pluridisciplinar, abarcando desde o processo de expropriações até ao combate aos bairros clandestinos que começavam a implantar-se nos subúrbios de Lisboa, e incluindo pela primeira vez um estudo quantitativo das necessidades do país em matéria habitacional. Claro que o que foi incluído de todas essas propostas no Plano constituiu uma decepção, como tive ocasião de declarar na altura ao coordenador, João Salgueiro, então o jovem dirigente do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho.

Foi respeitante a 1965/67, aliás, esse então chamado Plano Intercalar do Fomento, que provocou um sobressalto no regime, já que o Parecer elaborado pela Câmara Corporativa assumiu aspectos críticos até então inéditos no interior do sistema.

Da autoria de um jovem professor de Economia que viria a ganhar grande protagonismo político na oposição à ditadura e após o 25 de Abril – Francisco Pereira de Moura – esse Parecer serviu de mote a uma exposição itinerante organizada pela Cooperativa PRAGMA, de que já se falou atrás, e que acabou apreendida pela Pide.

Por essa época, um outro acontecimento marcante na História do problema da Habitação em Portugal, e a que também estive ligado, teve lugar. Tratou-se de um invulgar trabalho de investigação jornalística desenvolvido em 1963 por quatro conceituados profissionais ligados ao jornal “Diário Popular”. Esse grupo, tendo estudado profundamente a situação habitacional em Portugal, com recurso a técnicos ligadas ao sector, nas quais eu estive incluído, produziu uma série de dezanove artigos abarcando os diversos aspectos do problema nas áreas mais criticas do país. A acutilância do texto pode ver-se pelo título, em grandes caracteres, do primeiro artigo: Mancha negra e triste de uma bela cidade como é Lisboa – as barracas elevaram-se de 10.000, em 1959, para mais de 50.000 no corrente ano.

Por estranho que pareça, esse primeiro artigo ainda passou na censura, mas o seguinte foi todo cortado, inviabilizando-se assim a publicação de um diagnóstico completo e por isso implacável sobre o problema da habitação no nosso país. Aconteceu entretanto que, por precaução, toda a série de artigos fora já composta na tipografia, o que tornou possível a respectiva impressão numa tiragem reduzida. Foi assim que me foi depois oferecida a série completa, cuidadosamente encadernada e que constitui um tesouro no meu espólio bibliográfico e um marco histórico para o estudo da habitação em Portugal.

Como nota curiosa, um pequeno detalhe administrativo constitui para mim uma característica importante no trabalho que desenvolvi na Federação. É que embora se tratasse de um sector fazendo parte do aparelho de Estado, a Previdência tinha um carácter autónomo relativamente à administração pública. Foi assim que, felizmente, nunca tive que fazer o juramento de lealdade ao regime e de repúdio por doutrinas subversivas, o qual era obrigatório para todos os funcionários.

4. Ainda no quadro da Federação, os congressos internacionais

Metido, pois, a fundo, na problemática da habitação, sucedeu que, em 1961, fui convidado por Carlos Ramos, então representante em Portugal da União Internacional dos Arquitectos, a participar no Congresso a realizar em Zagreb, na então Jugoslávia e hoje capital da Croácia. Isto, porque, no âmbito da UIA tinha sido criado o Comité do Habitat, constituído por especialistas nessa área.

Não era a minha estreia em congressos internacionais, pois já, em 1948, participara, com o Manuel Alzina de Meneses e outros colegas portugueses, no 1º Congresso da UIA, na Suiça. Mas, desta vez, ia incumbido, como das posteriores, de intervir nas reuniões do Comité, representando Portugal. Essas participações e as correspondentes deslocações eram suportadas financeiramente pela Federação, o que me permitiu, em poucos anos, interessantes viagens e o contacto directo com os protagonistas da política da habitação em vários países e continentes.

Desde logo, a deslocação à Jugoslávia com a Natália – em que o marechal Tito acabara de romper com Moscovo, reivindicando uma expressão nacional autónoma para o socialismo – impressionou-nos fortemente.

Para além de estadias em Zagreb e Belgrado, atravessámos o país, desde a fronteira de Trieste até ao Montenegro, onde embarcámos para o sul de Itália, passando por Serajevo, Mostar e a maravilhosa Dubrovnik – cidades sacrificadas, no final do século XX, às horrorosas guerras que se sucederam ao desmembramento da Jugoslávia. E testemunhámos como era possível, embora com um regime autoritário, construir um país com futuro, superando diferenças étnicas e religiosas.
Logo em 1963, outra inolvidável experiência, com o primeiro congresso internacional em Cuba realizado a seguir à revolução de Fidel Castro. Desta vez sozinho, resolvi aproveitar a viagem o mais possível, tendo começado por Nova-York – que não conhecia e onde não voltei. Tive a pouca sorte de encontrar o MOMA fechado – o célebre museu projectado por F. L. Wright. Passei a primeira noite numa modesta pensão perto de Times Square, onde comprei alguns discos que fizeram sucesso quando regressei a Lisboa. Eram dos primeiros da Joan Baez! A seguir, tomei um autocarro da Greyhound em direcção ao México, atravessando, de dia e noite, o continente americano, com rápidas paragens em áreas de serviço para se comer alguma coisa. Nos dois dias passados na capital mexicana tive ocasião de utilizar os táxis colectivos e fui ver algumas casas do Barragan.

Daí tomei o avião para Havana, escalando o Panamá e Costa-Rica.

Em Cuba, uma impressão fortíssima, de um país em plena revolução, ouvindo Che Guevara e Fidel Castro na abertura do Congresso. Do primeiro, consegui uma cópia dactilografada do discurso, que trouxe para Lisboa. Quanto a Fidel, depois de uma prelecção que parecia não ter fim, comentei isto mesmo com um colega cubano, que me respondeu: foi o discurso mais curto que já ouvi dele! Consegui, com algum custo, trazer uma gravação para Lisboa, tendo feito uma audição no antigo Sindicato dos Arquitectos e outras em minha casa – sempre com grande sucesso. Mais tarde, numa das rusgas que a Pide me fez em casa, lavaram-me a gravação.

Foi nesse congresso que conheci colegas brasileiros, entre os quais Vilanova Artigas e o Joaquim Guedes, de S. Paulo, de quem fiquei amigo. Fiz algumas fotografias, uma delas de uma cena de rua, mostrando uma fila de pessoas à porta de uma mercearia, uma vez que todos os mantimentos estavam racionados. Fui nessa altura interpelado por um cubano, que se me dirigiu numa atitude agressiva, acusando-me de querer denegrir o país no estrangeiro. Lá o convenci de que não faria isso, pois era até um entusiasta da revolução.

Tal como já fizera na cidade do México, fui visitar, em Havana, uma pequena comunidade religiosa cujos endereços levara de Lisboa. Tratava-se das Irmãzinhas de Jesus, com quem me relacionava em Lisboa. Não havia, depois da revolução, perseguição aos católicos, mas a Igreja estava atemorizada e muito confinada aos templos, sem possibilidade de se exprimir publicamente.

Como na ida, aproveitei o regresso de Cuba para conhecer mais países, fazendo paragens em Bogotá e Caracas, com uma escala final em Porto-Rico. Mas, no passaporte, levava um enorme carimbo, ocupando uma página inteira, dizendo que tinha estado em Cuba – aposto logo na primeira escala a seguir a Havana. Isso, creio eu, para alertar as polícias dos países visitados, de que havia estado num lugar suspeito.

Passados dois ou três anos, o congresso da UIA foi em Lisboa, tendo o governo, pela mão do eng.º Sá e Melo, tomado conta da organização, que correu normalmente. Lembro-me de ter servido de guia a colegas estrangeiros, que já conhecera antes.

A seguir, foi a vez de Helsínquia, onde fui com a Natália, aproveitando para conhecer os países nórdicos. Tendo começado pela Dinamarca, embarcámos em Aarhus, atravessando o Mar do Norte até Oslo. Passados uns dias na Noruega, voámos até Helsínquia, regressando depois, com o casal Guedes e atravessando a Suécia de comboio, passando por Estocolmo, onde fomos visitar algumas das new-towns. Na Finlândia visitámos as mais notáveis obras de Alvar Aalto, que nos guiou numa das visitas, do que tenho uma fotografia.

No final da década de 60, o Congresso foi em Bucareste, em plena época do ditador Ceausescu. Lá vimos o grandioso Palácio do Povo e fizemos uma excursão até ao porto de Constanza, na costa do Mar Negro. Foi a minha primeira visita a um país da chamada Cortina de Ferro. A esse congresso foi também o Nuno Portas, então técnico do LNEC.

Interrompida, com o 25 de Abril e o PREC, a participação em congressos internacionais, retomei essa prática na década de 80, quando presidente da Associação dos Arquitectos. Foi nessa altura que fui à Grécia, com a Irene, para um congresso da UIA em Atenas, concretizando a frustrada viagem de 1939, inviabilizada pelo início da 2ª guerra mundial.

5. A politização dos temas da habitação e do urbanismo na fase final da ditadura

Com o pendor tecnocrático reforçado ao nível do governo por Marcelo Caetano, ao mesmo tempo que uma certa abertura política, o problema da habitação foi contemplado em 1969 pela realização de um inédito colóquio, promovido pelo ministério das Obras Públicas. Tive oportunidade, nessa ocasião, de produzir nada menos do que três textos de características muito diferentes. A situação era bastante crítica, caracterizada pela proliferação desordenada de bairros clandestinos na periferia de Lisboa.

O primeiro foi uma intervenção, ao nível oficial, na qualidade de convidado para um dos painéis de discussão: “financiamento e execução da habitação”. Feita uma análise crítica da situação, detectei as falhas mais importantes da legislação e apontei os caminhos que deviam ser seguidos para a sua superação, demorando-me nas virtualidades da promoção cooperativa. E sublinhava: “ideias e propostas não têm faltado: o que tem faltado é acção concreta que as ponha em prática.”

Na sequência do colóquio, foi-me pedido um artigo de opinião, publicado na revista “Seara Nova”, cuja orientação política era conotada com a oposição e sujeita naturalmente a censura prévia. Aí, faço uma crítica cerrada à situação e manifesto as maiores dúvidas relativamente às intenções do governo expressas no relato final do encontro. Aliás, no número seguinte da mesma revista, retomo o tema com um comentário tendo por título “Habitação: colóquios para quê?”
Todavia, já antes, ainda em 1969, escrevera uma análise mais politizada na publicação clandestina editada no Porto “Cadernos Necessários”, que me foi pedida pelo Mário Brochado Coelho, colocando a pergunta: “Poderão as nossas estruturas sócio-económicas arcaizantes, que tentam ensaiar um neocapitalismo balbuciante, romper o círculo de limitações que estrangula o sector habitacional e fazer alguma coisa do que foi proposto no colóquio?”

Aliás, ao longo desses anos, foram numerosas as minhas intervenções sobre a problemática da habitação e do desenvolvimento urbano, quer em colóquios, como o do Funchal, também em 69, quer em entrevistas, quer em artigos, um dos quais, novamente na “Seara Nova”, teve o último parágrafo cortado pela censura.

Esta intensa actividade era, aliás, estimulada pela abundante informação que nos vinha de fora – muitas vezes por intermédio do Nuno Portas – relativa a movimentações populares e à politização dos temas ligados à habitação e ao urbanismo, tanto na Europa como noutros continentes. Em 1971, num colóquio promovido pela cooperativa Confronto, do Porto, tive ocasião de analisar detalhadamente esse fenómeno, numa intervenção com o título “O alvorecer das lutas urbanas(2)”. Aí chamei a atenção para o papel que os técnicos poderiam e deveriam ter no apoio a essas movimentações. O Maio de 68 francês não fez senão favorecer as condições para que elas alastrassem.

Entretanto, a par desta actividade intensa, cada vez mais conotada com a oposição ao regime, prosseguia, sem qualquer problema, o meu trabalho no organismo público que era a Federação, o que pode explicar-se por várias razões. Por um lado, a problemática em causa impunha-se com tanta evidência que não se podia impedir a sua discussão; por outro lado, a abertura consentida pelo marcelismo era, em certos domínios, um facto. Mas além de tudo, tinha conquistado um estatuto que levava os dirigentes a tratar-me com o maior respeito. Isso, em contraste com o que me sucedera na Escola de Belas Artes em 1967, em que fui impedido de leccionar, e no Sindicato Nacional dos Arquitectos no ano seguinte, em que o meu nome foi riscado do Conselho Disciplinar, para o qual havia sido eleito. Apesar de tudo, a minha crescente actividade contra o regime não deixava de provocar-me algum mal-estar ao trabalhar num serviço do Estado. Foi por isso, e também pelo avolumar no trabalho do atelier que decidi pedir a demissão da Federação em 1972.

6. O encontro Nacional de Arquitectos e o atelier da Rua da Alegria na pré-figuração do SAAL

É nesse contexto que o Sindicato Nacional de Arquitectos organiza em Dezembro de 1969 um encontro Nacional com uma série de temas a discutir e que contou com uma ampla participação, não só de profissionais, mas também de estudantes.

Entre esses temas, um deles, a cuja preparação estive ligado, tinha como título Participação Popular e Trabalho do Arquitecto no desenvolvimento urbano.

Na proposta apresentada à discussão propunha-se a imediata criação de um grupo multidisciplinar de intervenção e denúncia com o objectivo, entre outros, de estabelecer pólos de encontro com as populações, para debater as suas dificuldades, discutir os planos e suscitar a respectiva consciencialização.

Na sequência desta proposta foi criado, em Março de 1970, o GRIMU – Grupo de Intervenção no Meio Urbano, congregando um certo número de arquitectos e aberto à participação de outros profissionais. Entre os objectivos indicados no texto por mim redigido, apontava-se a preparação das populações para o exercício dos seus direitos, ao mesmo tempo que de quadros técnicos para o serviço dessas populações. E, para a orgânica a implementar, sugeria-se a criação de equipas de apoio local e de estudo, apoiadas por um secretariado.

Estava assim definida, com quatro anos de antecedência, a metodologia do SAAL, lançado logo após o 25 de Abril pela mão de Nuno Portas, secretário de Estado da Habitação do 1º Governo Provisório. Todo este processo é amplamente documentado por José António Bandeirinha no seu estudo sobre o processo SAAL

Logo após o lançamento do SAAL, fui encarregado, juntamente com o Pedro Botelho, admitido no atelier havia algum tempo, de fazer o levantamento das carências habitacionais na área metropolitana de Lisboa. Foi assim que visitámos os diferentes municípios, contactando com as recém-nomeadas Comissões Administrativas, e visitámos muitos bairros clandestinos. Com tudo isso elaborámos uma carta geográfica com vista ao lançamento de operações SAAL.

Entretanto, participávamos de intensas reuniões a nível central, por vezes no próprio gabinete do Secretário de Estado, no Terreiro do Paço. Numa delas, lembro-me de o Filipe Lopes ter feito uma proposta premonitória. Era que, perante as incertezas do processo revolucionário (o PREC), deveria ser dada prioridade às expropriações de terrenos, por que, se não houvesse condições para construir a curto prazo as casas programadas, pelos menos esses terrenos ficariam disponíveis para o futuro.

Uma das reuniões mais importantes realizou-se no Porto, em Julho de 74, onde, numa intervenção um tanto contundente, defini como devia ser estruturado o SAAL, não coincidindo exactamente com o que estava a ser feito a nível de governo.
Na sequência do levantamento que atrás referi, foi-nos atribuído o processo relativo ao Bairro do Chegadinho, na Cova da Piedade, em Almada. Foram algumas semanas de inquéritos à situação e animadas reuniões com os moradores para discutir as soluções a adoptar. Mas não chegámos à fase de projecto, pois, entretanto, encontrando-se na vizinhança alguns prédios em construção cujos proprietários tinham desaparecido, resolveu a população ocupá-los e acabar as obras.

Tendo ficado assim disponíveis, fomos logo nomeados para um empreendimento em regime de auto-construção a levar a efeito no quadro da Reforma Agrária, no concelho de Aviz. Voltámos assim às reuniões com moradores, tendo aí apresentado alguns esquiços da futura aldeia comunitária. Com a liquidação da Reforma Agrária, o processo foi interrompido, mas ficou-me na memória o diálogo com uma camponesa a propósito do desenho que mostrámos das casas a construir. Tratava-se de habitações térreas em que aproveitávamos a inclinação do telhado para ampliar e singularizar o espaço da sala comum – solução que foi asperamente criticada por uma das presentes. Procurámos justificar a nossa opção, mas sem convencermos a renitente, que nos disparou, a certa altura: “Mas vocês lá em Lisboa não moram em casas com o tecto direito? Porque é que, então, nos querem impingir essas com o tecto inclinado?” Tratava-se, nada menos, do que a rejeição por parte de pessoas com um passado de pobreza, de formas de construção que não deixavam de associar a essa pobreza. Fenómeno generalizado na geração de emigrantes dos anos 60 que, ao conquistar a possibilidade de construir uma casa na aldeia de origem, o fez com o recurso a formas empoladas, grosseiramente inspiradas em modelos estrangeirados.

7. Nas últimas décadas, poucos projectos, mas um olhar crítico permanente em artigos, entrevistas ou intervenções públicas

Liquidado o processo SAAL e passados os anos do PREC, em que a militância política e a falta de encomendas no atelier me fizeram reduzir a actividade profissional, voltei ao estirador, mas sem descurar o meu interesse pelos problemas da habitação, que, ora se agravam, ora adquirem novas formas. Foi assim que não deixei de escrever com frequência, nem de participar em debates sobre o assunto.

Perante o desinvestimento estatal na habitação social, entrevi com clareza uma nova problemática: um melhor aproveitamento do parque habitacional existente. Foi este o título duma intervenção, em 1985, num colóquio promovido conjuntamente pela Associação dos Inquilinos Lisbonenses e pela Associação dos Arquitectos, e ainda noutro organizado pelo Centro de Reflexão Cristã. Promulgada então, pelo governo da Aliança Democrática, uma nova lei do arrendamento, proclamei que o aumento das rendas, tal como estava previsto, não garantia a necessária e urgente recuperação do parque habitacional – constatação válida para a época, e, infelizmente, para as décadas que se seguiram, como foi provado com a lei de Sócrates passados mais de vinte anos. Foi nessa intervenção que falei no escândalo dos fogos devolutos – tema por mim recorrente ao longo de todo este tempo.

Em 1988, em artigo dos “Cadernos Municipais”, do Partido Socialista e dirigidos então pelo Nuno Portas, insistia na urgência da rentabilização do parque habitacional, através de incentivos e onerações fiscais, viabilizando intervenções no interior do casco urbano, para que a habitação social não continuasse a ser atirada para zonas marginais, agravando as situações existentes. Quanto às áreas suburbanas, que então proliferavam (e continuaram a proliferar), era necessário estruturar e consolidar tecidos esparsos e rarefeitos, mobilizando terrenos expectantes e preenchendo espaços residuais. No final, afirmava que a política dos solos era, assim, a pedra de toque de uma política da habitação.

No entanto, tudo isto foi clamar no deserto ao longo dos anos. Em 1992, na cerimónia da entrega do Prémio anual do Instituto Nacional de Habitação, pelo conjunto que eu e o Pedro Botelho construímos em Laveiras, Caxias, tive ocasião de dizer que a habitação social, ao contrário do que acontecera há anos, no domínio da arquitectura, não estava na ordem do dia. E que continuavam a ser construídos “bairros” – conjuntos segregados que constituíam um estigma para os moradores. Foi assim que uma presidência aberta de Mário Soares aos subúrbios de Lisboa, em 1993, obrigou o governo de Cavaco a lançar o PER. Logo avisei, num artigo no “Público”, que o realojamento programado não devia promover novos guetos. Infelizmente, foi o que se viu, tanto no Porto, como em Lisboa. Em novo artigo, passados dois anos, indicava como: fazer convergir, numa mesma zona, o PER e a promoção privada e cooperativa, como acontecera ainda no tempo da ditadura, com Alvalade e Olivais Norte.

Entretanto, a degradação do parque habitacional alastrava. Não eram só nos chamados centros históricos, mas nos tecidos consolidados das cidades, não apenas em Lisboa e Porto, mas por todo o país. Com o mote “Reabilitar em vez de Construir”, publiquei artigos em 2001 na revista “Pedra & Cal” e no “Le Monde Diplomatique”, chamando de novo a atenção para os devolutos, que continuavam a aumentar, perante a indiferença dos governos.

Em 2005, na celebração dos 20 anos dos prémios do INH, no auditório do LNEC, insistia que as carências de habitação deviam ser resolvidas no sentido de “fazer cidade”. Por um lado, reabilitando e repovoando os tecidos consolidados e, por outro, urbanizando e estruturando as expansões fragmentadas que continuavam a ser construídas desordenadamente. Foi neste quadro que participei na actividade do movimento lançado por Helena Roseta Plataforma Artigo 65, de protesto contra as demolições desumanas que algumas câmaras estavam a fazer, deixando ao relento famílias por não estarem inscritas no PER, e que tinha por tema os devolutos: gente sem casa e casas sem gente.

Em 2007, na campanha de apoio a António Costa nas eleições para a Câmara de Lisboa, defendi dois propósitos que vieram a ser consagrados nos diplomas que então se preparavam – o PNPOT e o Plano Estratégico da Habitação: que a utilização das casas devolutas dispersas no tecido urbano devia assumir um papel central na política de realojamento e que devia caber ao poder local a execução dessa política, criando uma estrutura participativa, congregando populações, cooperativas, ONG, etc.

Com o impulso inteligente e determinado do Secretário de Estado João Ferrão e do IHRU, aqueles dois novos instrumentos legislativos têm condições para um virar de página. Foi neste quadro que aceitei, em 2008, integrar o Conselho Consultivo daquele organismo.

Documento impresso, 2008, inédito.