1. A paixão por Lisboa
Aqui nascido, sempre aqui vivi – o que é um fenómeno não tão usual como se pode pensar. Quantos amigos e conhecidos tenho que não podem dizer o mesmo. Eis o que me parece ser uma primeira razão para essa paixão. Nascido e vivido na rua Borges Carneiro, à Estrela até aos 29 anos, e tendo estudado no Pedro Nunes, e depois nas Belas Artes, ao Chiado, mudei-me para a nova Lisboa, em Alvalade, quando constitui família.
O gosto por conhecer a cidade, herdei-o de meu Pai. Muitas vezes, só aos domingos – porque o sábado ainda era dia de trabalho – ele levava-me a conhecer Lisboa. Íamos de eléctrico – pois ele não tinha carro, nem havia autocarros, que só apareceram em 1940 – muitas vezes até ao fim da linha: Algés, Poço do Bispo, Benfica, ou Lumiar. Aí dávamos uma volta, para conhecer o bairro e os arredores, e voltávamos à Estrela. Uma vez, apeámo-nos em Belém e subimos toda a serra de Monsanto – ainda pelada, pois só com Duarte Pacheco se iniciou a arborização – e fomos apanhar o eléctrico do outro lado, em Benfica.
No entanto, estes passeios não eram só para conhecer a cidade: eram, também, para ver os melhoramentos, iniciados havia pouco, também pela mão de Duarte Pacheco, mercê do equilíbrio financeiro conseguido por Salazar. Grandes edifícios públicos (ainda por cima com arquitectura modernista), eram uma novidade em Portugal, onde, havia pelo menos meio século, o défice crónico das finanças públicas não dava para tal. Lembro-me bem a emoção que sentimos quando, num desses passeios, fomos ver as obras do Instituto Superior Técnico, ainda sem estar acabada a Alameda Afonso Henriques. Lá do alto, junto às obras, via-se um eléctrico serpenteando por entre hortas no fundo do vale a caminho do Areeiro, pois ainda não estava completa a avenida Almirante Reis.
Nestes passeios, meu Pai indicava-me edifícios de especial interesse, como a casa em que morava Salazar – um prédio vulgar no Bairro dos Açores, à Estefânia. Ou o novo edifício da Escola de Medicina Veterinária, ao lado do liceu Camões, onde tinha sido aposta uma placa igual a outras que recordo ter visto em vários lugares: acabado de construir pela Ditadura Nacional. Foi isso que aconteceu com os dois primeiros bairros sociais de Lisboa, no Arco-do-Cego e na Ajuda. Iniciados por Sidónio Pais, em 1918, o défice crónico das Finanças manteve a construção parada até que chegou Salazar, que as concluiu.
Na infância, conheci intimamente a Estrela e a Lapa, onde moravam familiares e amigos. No alto da Calçada da Estrela, meus Tios e Avós Bettencourt. Com o Avô Severiano dava passeios pelo magnífico Jardim, aos domingos íamos à missa à basílica ou à pequena capela dos Navegantes, mas a catequese já foi em Santa Isabel, porque aí o prior era mais aberto. E, mais tarde, minha Mãe mandou-me à residência dos jesuítas, no final da rua da Lapa, que mais tarde se mudou para a rua Maestro António Taborda, mais abaixo. Isso, para ter um bom “director espiritual”, que era o Padre João Cabral, duma famosa família portuense, onde tenho amigos, especializado em domesticar os ímpetos sexuais dos adolescentes.
Anos mais tarde, lembro-me de como “descobri” as Avenidas Novas, onde morava o meu grande amigo dos tempos de liceu, Rui Oliveira da Silva. Avenidas com nomes para mim desconhecidos e que vim a saber depois que se referiam a políticos do liberalismo: Duque de Loulé, Visconde de Valmor, Fontes Pereira de Melo, Miguel Bombarda, Joaquim António de Aguiar. Este último, conhecido pelo “Mata frades”; por ter sido o autor do decreto de extinção das ordens religiosas. E “Defensores de Chaves”, quem seriam? Pois foram os militares e civis que resistiram ao ataque das milícias de Paiva Couceiro nas chamadas incursões monárquicas nos primeiros anos da República.
Gostava de fazer então caminhadas a pé, para poupar uns tostões no bilhete do eléctrico. Como ir de casa até à Rotunda (hoje Praça Marquês de Pombal), ou até aos Restauradores, descendo da Estrela a S. Bento para subir ao Príncipe Real (então Rio de Janeiro) e descer até à Avenida (não era preciso dizer o nome, pois Avenida só era aquela, embora já houvesse outras). Ou ainda, a caminho das Belas Artes, descendo a Calçada da Estrela, atravessar S. Bento e subir penosamente a Calçada do Combro, até ao Chiado.
Já estudante de arquitectura, comprei em fascículos mensais as preciosas “Peregrinações em Lisboa”, do grande historiador olisiponense Norberto de Araújo. Depois, com o fascículo na mão referente à zona que ia visitar, percorre-la com vagar, ficando a conhecer a história de cada rua, de cada igreja ou capela, de cada palácio ou convento. Foi por isso que, no final da publicação, não mandei encadernar os fascículos em 3 ou 4 grandes volumes, como estava previsto. Muito mais tarde voltei a usá-los, nos princípios de oitenta, quando, com a Irene a fotografar, calcorreámos todos os bairros antigos de Lisboa para fazer o estudo, com uma bolsa da Gulbenkian, da “Evolução das Formas de habitação Pluri-familiar em Lisboa”, cujo resumo foi depois editado no livro “Prédios e Vilas de Lisboa”.
2. E, também, pelos navios
Sempre que podia, descia a rua de S. Domingos para ver, atracados à Rocha do Conde de Óbidos, grandes transatlânticos e esquadras estrangeiras de navios de guerra – pois os navios eram uma das minhas outras paixões.
Foi aí que visitei o primeiro porta-aviões que atracou em Lisboa, o gigante inglês Courageous. E também onde fui ver o desembarque de milhares de operários alemães, em excursões organizadas no tempo de Hitler pela “Força pela Alegria”, que serviu de inspiração à nossa FNAT (hoje INATEL), do mesmo modo que o “Dopolavoro”, organização similar do fascismo italiano.
Curiosamente, nesse tempo (antes da 2ª guerra mundial) qualquer curioso, como eu, podia visitar os paquetes de passageiros que escalavam Lisboa. E eu deliciava-me a percorrer os seus magníficos salões e espaçosos decks. Foi um acontecimento a visita – a que não faltei – do enorme paquete francês Normandie.
Foi assim que conheci as grandes companhias de navegação que escalavam Lisboa e que eram identificadas pela pintura das chaminés: as inglesas Mala Real, Blue Star Line e Booth Line (cujos navios subiam o Amazonas até Manaus). E ainda francesas, alemãs e italianas – cujos nomes já não me recordo – e o Lloyd Brasileiro.
Deste gosto pelos navios são testemunho os inúmeros desenhos que ainda tenho, feitos com menos de dez anos, e que oferecia a familiares.
Aconteceu, porém, mais tarde, que este gosto pelos navios não se traduziu em gosto pelo velejar. Meu Pai, sócio devoto da Associação Naval de Lisboa, possuíra um iate à vela antes de casar e meus tios Alberto e Pedro tiveram vários, ao longo de anos, um dos quais, muito conhecido no meio, o “Jolie Brise”, que veio depois a pertencer a um grande amador da vela, o engenheiro Guimarães Lobato. Na minha juventude, convidaram-me várias vezes para passeios no Tejo, saindo por vezes a barra. Verifiquei então que não tinha vocação para andar à vela. Por um lado, faltava-me o jeito para as manobras: várias vezes ia apanhando com a retranca no lombo, numa rápida viragem de bordo. Por outro, por causa da timidez, não sabia entrar nas conversas com que os tripulantes se entretinham durante as longas horas de passeio. Foi assim que a única navegação que fiz, de longo curso, e já depois de casado, foi no veleiro do Francisco Lino Neto, desde Lisboa a S. Martinho do Porto, escalando a Berlenga. Mesmo no Ginjal, onde passei férias vários anos, tínhamos um pequeno barco, mas cujos tripulantes eram os meus irmãos mais novos.
Só muitos anos mais tarde é que descobri a navegação de que realmente gostava: descer os rios, tripulando um kayak a remos, de duas pessoas. No verão de 1972 o Mário Brochado Coelho telefonou-me do Porto a dizer que ia descer o Douro com alguns amigos e, havendo ainda um barco disponível, perguntou-me se alguns dos meus filhos queriam alinhar na aventura. Respondi-lhe logo que era eu que também queria ir. E assim foi. Passados uns dias, eu e o Miguel seguimos para o Porto, cheios de expectativas para uma nova experiência.
Os barcos eram três, comprados na Alemanha pelo nosso amigo José Maria Bustorff, sendo um dos tripulantes o arquitecto Alfredo Matos Ferreira. Nada caros e de lona, fabricados na então RDA. Mas o grupo era grande, incluindo amigos como o Júlio e a Maria Alice Pereira e o Rui e Guida Vieira, porque, além dos embarcadiços, outros seguiam de carro ao longo das margens, levando as tendas e outro material com que se armavam os acampamentos onde passávamos as noites.
Subimos o Douro por caminho de ferro até Barca d’Alva, na fronteira com a Espanha, e aí iniciámos a descida com as canoas. Foi um deslumbramento: a paisagem, os rápidos, que ainda havia, antes de completado o sistema de barragens no Douro. Estava em construção uma destas, a da Valeira. Aí carregámos com as canoas às costas, atravessando o estaleiro. Mais a juzante, encontrámos a de Bagaúste e a do Carrapatelo e aproveitámos as comportas que tinham sido feitas para permitir a navegação no rio. Comportas que se revelaram cruciais para agora viabilizar o turismo fluvial, mas que foram construídas com vista ao escoamento pelo Douro dos ricos minérios de Moncorvo, que nunca vieram a ser explorados.
Os acampamentos diários eram uma festa, quando nos juntávamos aos amigos que vinham de carro. Chegados ao Porto, fizemos o derradeiro no Areeinho, na margem esquerda, onde hoje estão os pilares da última ponte de Edgar Cardoso. No dia seguinte, bordejámos a Ribeira e desembarcámos na Cantareira, perto da Foz, com direito a reportagem fotográfica nos jornais portuenses.
No ano seguinte foi a vez do Guadiana, desde Monsaraz até Vila Real de S. António, passando pelo famoso Pulo do Lobo e ouvindo, perto de Baleizão, um grupo de cante alentejano, com homenagem a Catarina Eufémia. Desta vez, com a Helena e mais um grupo de amigos, seguindo o mesmo sistema. Os troços do rio a percorrer cada dia eram estudados previamente pelo Mário Brochado, com indicação do local para o acampamento.
O Guadiana foi em 1973 e, no ano seguinte, seria a vez do Tejo. Só que veio o 25 de Abril, e a viagem foi adiada sine-die. Mas ainda gozei alguns passeios na nossa canoa com a Irene, em albufeiras e no Tejo, nas Portas de Ródão. O barco montava-se com muita facilidade, seguindo as instruções, e depois era transportado no tejadilho do nosso Renault R4. Há anos que jaz na cave da casa de Marvão, onde ninguém o usa, para tristeza minha.
Documento impresso, 2008, inédito.