Arquitetura Associativismo Atividade cívica

Memórias inacabadas 5 – o associativismo também na massa do sangue

Cartão de sócio do Nuno, de instituição não identificada (1944)

1. A herança paterna

Sempre recordo meu Pai ligado a actividades associativas. Primeiro, era eu miúdo, no campo desportivo. Depois de ter sido sócio do CIF/Clube Internacional de Futebol, que introduziu esta prática em Portugal, foi dirigente da Associação Naval de Lisboa, que acaba de fazer 100 anos, pois teve na juventude um iate à vela. Na idade madura, foi fundador e presidente, no quadro da Organização Corporativa, do Grémio do Comércio de Exportação de Vinhos, a sua principal profissão. Mais tarde, presidiu à Associação Comercial de Lisboa e, quando Presidente da Câmara de Almada, desempenhou o lugar com espírito associativo, sem ganhar um centavo, apenas com direito a carro pela primeira vez na vida, procurando sempre congregar vontades e recursos. Foi assim que foi proclamado sócio honorário da centenária Sociedade Incrível Almadense.

2. Do Sindicato Nacional à Associação dos Arquitectos

Desde cedo que militei com gosto em grupos organizados, tendo começado pelos escuteiros e pelas Conferências de S. Vicente de S. Paulo. Aprendi que, para levar avante certos ideais, as pessoas tinham que associar-se e trabalhar em conjunto. Foi assim que, como profissional, desde cedo me liguei ao então Sindicato Nacional dos Arquitectos, tendo participado activamente, ainda como estagiário, no histórico Congresso Nacional de Arquitectura e também no I Congresso da União Internacional dos Arquitectos em Lausana – ambos em 1948.

Foi no primeiro que conheci Francisco Keil do Amaral, que tinha sido eleito havia pouco para Presidente da Direcção, cargo a que foi obrigado a renunciar por a eleição não ter sido “homologada” pelo governo – direito a que este se arrogava pela legislação do chamado “Estado Corporativo”. E isso, é claro, por razões políticas baseadas em informações da Pide, o que me veio também a acontecer mais tarde, quando convidado pelo saudoso Inácio Peres Fernandes para vogal da Direcção.

Keil foi Mestre, em todo o sentido da palavra: como profissional, como pedagogo, como pessoa. Impulsionador do também histórico “Inquérito à Arquitectura Popular”, organizado pelo Sindicato nos anos 50, por ele fui convidado para responsável pela região da Estremadura/Ribatejo – tarefa que desempenhei com o maior entusiasmo, juntamente com os jovens colegas António Freitas e José Galhoz, depois substituído por Francisco Silva Dias. O esquema resultou em cheio nas diferentes regiões em que o país foi dividido: enquanto o arquitecto sénior se juntava à equipa aos fins-de-semana, com o seu carro, nos restantes dias os juniores desbravavam o território montados nas Vespas compradas pelo Sindicato, coligindo apontamentos e fazendo desenhos e fotografias – tudo depois reunido em livro que já vai na 4ª edição e que retrata aquilo a que tenho chamado “O Portugal desaparecido”.

Aberta com o 25 de Abril a possibilidade de uma organização de classe mais consentânea com a importância que a profissão tinha entretanto conquistado no seio da nossa sociedade, foi dissolvido o Sindicato e criada a Associação dos Arquitectos Portugueses. Mas o processo não foi fácil, nem a solução imediata, tendo exigido uma acção esforçada da parte de um grupo de colegas que ao problema se dedicaram de corpo inteiro: Olga Quintanilha, Manuel Moreira, Silva Dias e Pedro Brandão. No meio de um movimentado Congresso em que, finalmente, o seu trabalho se traduziu em resultados, vieram perguntar-me se eu aceitava juntar-me a eles. Respondi que sim, empolgado com a tarefa, e logo fui eleito Presidente – cargo que desempenhei durante dois mandatos, num trabalho de equipa em que quase todos aqueles me vieram a suceder no cargo e que conduziu à Associação de Direito Público e mais tarde à Ordem. Foram anos de dedicação exigente, com congressos e reuniões, aqui e no estrangeiro, que me alargaram os horizontes da profissão e de que conservo gratas recordações.

3. Da arte moderna na Igreja ao Cooperativismo e ao Centro Nacional de Cultura

Logo no início da carreira, em 1948, encomendaram-me o projecto de uma igreja para uma aldeia da Beira-Baixa: Águas, no concelho de Penamacor. A tarefa empolgou-me: queria demonstrar, na prática, que em Portugal, a arte das igrejas podia ser moderna e ao mesmo tempo portuguesa, desmascarando as caricaturas que a ditadura salazarista impunha então à nossa arquitectura, rotulando-a de “nacional”. Isto com a conivência do Cardeal Cerejeira que, tendo declarado enfaticamente poucos anos antes que “a arte de cada época sempre foi moderna no seu tempo” havia entretanto mandado construir em Lisboa três grandes igrejas da pior traça “tradicionalista”.

Foi neste quadro que me juntei a um grupo de jovens arquitectos, artistas e historiadores de arte, formando o Movimento de Renovação da Arte Religiosa. Fizemos exposições, organizámos colóquios, relacionámo-nos com movimentos congéneres estrangeiros, num labor persistente ao longo dos anos cinquenta, que deu os seus frutos: em 1962 o MRAR foi encarregado de organizar um concurso público para uma nova igreja em Lisboa, nomeando um júri idóneo que decidisse sem falsos preconceitos. Foi assim que se construiu a igreja do Coração de Jesus, recentemente declarada monumento nacional, com projecto meu e do Nuno Portas, em que este revelou exuberantemente o seu talento de arquitecto. Lembro-me com emoção das vibrantes reuniões que fazíamos para discutir os projectos que tínhamos entre mãos, o que aconteceu, por exemplo, com a nova igreja paroquial de Almada.

Aprofundava-se entretanto o meu envolvimento com o problema da habitação. Desde o final do curso, em 1948, funcionário das Caixas de Previdência/Habitações Económicas, com responsabilidades, não só como projectista mas também na programação e na orientação de colegas, estabeleci contactos com o movimento Cooperativo na habitação, dinamizado pela Associação dos Inquilinos Lisbonenses, cuja alma era Emídio Santana. Foi nesse quadro que colaborei na montagem de uma grande exposição sobre o Cooperativismo Habitacional no Mundo e participei em várias reuniões, especialmente aquando do Dia Mundial da Cooperação. E também apoiei o meu grande amigo Francisco Lino Neto no lançamento da Cooperativa de Habitação e Construção, para a qual eu e o Bartolomeu Costa Cabral realizámos estudos que não puderam ser concretizados pelo facto de a Câmara de Lisboa ter recusado a cedência de terreno que tinha prometido. Datam desse período a ligação que estabelecemos com António Sérgio e alguns dos seus discípulos, como os primos João Sá da Costa e Fernando Ferreira da Costa. E ainda a colaboração no Boletim Cooperativista.

Esta ligação ao Movimento Cooperativo manteve-se ao longo dos anos e ainda há pouco fui convidado a participar no Congresso da FENACHE realizado em Sintra sob a direcção sempre empenhada de Guilherme Vilaverde. Na mesma linha se situa o meu envolvimento com a “Diferença”, cooperativa de artistas, de que a Irene é sócia fundadora e dirigente, tendo elaborado o projecto da Galeria de Exposições com o colega e amigo Artur Rosa.

Antes do 25 de Abril, durante o governo marcelista, presidi ao Centro Nacional de Cultura, cuja fundação, devida a um grupo de monárquicos, havia acompanhado muitos anos antes. Foi no tempo da Associação Portuguesa para Liberdade da Cultura, emanação do grupo da Livraria Morais, onde convivi com a Sophia, o João Bernard, o Francisco Sousa Tavares, o António Alçada Baptista e ainda Joel Serrão, Rui Grácio, João de Freitas Branco, Miller Guerra, Nuno de Bragança e outros. Durante esses anos beneficiei ainda de uma regalia que me ajudou a abrir horizontes: a assinatura diária do “Le Monde”.

Haveria ainda que falar da cooperativa “PRAGMA” e da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos – movimentos associativos mas que tiveram motivações e intervenções políticas relevantes e que, por isso, ficam para outro capítulo.

4. Depois do PREC, de novo o associativismo

Passados os anos da turbulência política em que estive ligado ao MES/Movimento de Esquerda Socialista, o associativismo ganhou novo fôlego. Foi nesse quadro que se constituíram, um pouco por todo o país, muitas associações de defesa do património, movimento em que participei, juntamente com a Irene, na fundação da Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial. Jorge Custódio e um conjunto de historiadores lançaram-se à iniciativa, destinada a salvaguardar, mediante a atribuição de novos usos, o importante património industrial do país, em processo de desactivação acelerada, e, em alguns casos, até já de ruína. Com melhor ou pior sucesso, a chamada de atenção para esse património socialmente e culturalmente desconsiderado, veio a dar alguns frutos, dos quais o mais notável é o da industria de lanifícios da Covilhã. Mercê da dedicação e competência da prof.ª Elisa Pinheiro, uma grande parte das fabricas desactivadas foi reabilitada e reconvertida pela Universidade da Beira Interior.

Ao longo dos últimos anos tenho procurado manter a ligação a temas ou lugares que julgo importantes e me tocam de perto – e isso por via associativa. É o caso da Liga dos Amigos de Castelo de Vide, do Fórum Abel Varzim, da Associação dos Amigos do “Monde Diplomatique”, da Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelos, da Associação Nacional do Microcrédito e até dos Bombeiros Voluntários de Almoçageme. E, mais recentemente, do movimento cívico “Não Apaguem a Memória”.

Documento impresso, 2008, inédito.