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O arquitecto das causas sociais

Capa da revista do jornal Público na qual foi publicada a entrevista de Ana Sousa Dias ao Nuno (1993)

 

Entrevista de Ana Sousa Dias

Ganhou a tranquilidade como resultado de uma vida intensa e pesada. Deu asas à imaginação, à rebeldia, à indignação, passou momentos do desgosto mais fundo, esteve na frente das batalhas porque, simplesmente, não há outro lugar para lutar. E mesmo assim ainda diz que é um pouco conformista, uma pessoa a fixar rotinas e a sonhar sossegos. Fez ontem 71 anos e tem o “atelier” cheio de trabalho.

Alguém lhe chamou o patriarca dos arquitectos portugueses e a designação assenta-lhe bem. Não são só as barbas – interrompidas em tempos pela PIDE – nem a idade. É um modo de estar.

Nunca deixa de atribuir os louros das obras que projectou aos outros arquitectos que com ele as assinaram: o projecto do bairro cor-de-rosa do Alto do Restelo, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, o edifício “Franjinhas”, o Quarteirão do Anjo guardado na gaveta, e muitas mais espalhadas pelo país.

Neste preciso momento, tem em mãos, com Nuno Portas, o estudo da recuperação do Convento de Mafra, “uma obra belíssima e fascinante, onde D. João V afirmou o seu poder”. Prepara a estação de Metro do Cais do Sodré, com o interface dos transportes fluviais – até os barcos do Barreiro vão passar a atracar ali -, dos comboios da Linha do Estoril e das dezenas de carreiras de autocarros que ali afluem. Na Avenida da Liberdade, tem o enorme projecto do Tivoli, e a reconstrução, mantendo as fachadas, de um edifício cor-de rosa cujo miolo já foi demolido. No Chiado, tem em construção dois edifícios destruídos pelo incêndio de Agosto de 1988. Na Covilhã, está a erguer um bairro de habitação social idêntico ao construído em Oeiras, premiado no ano passado. Destas obras, apenas o edifício cor-de-rosa da Avenida é projecto que só tem a sua assinatura, e em todos os outros tem ao lado Pedro Botelho.

É uma entrevista falada pausadamente e muito pensada, difícil no remexer do passado, feliz no acerto de contas com a vida. Muitos risos pelo meio, alguns silêncios e momentos de sombra. Comecemos pela habitação social, por ser o tema que faz a ponte entre o arquitecto e o militante das causas cívicas.

NUNO TEOTÓNIO PEREIRA – O problema da habitação é um problema que me toca muito e que se arrasta há décadas e décadas, sem se ter encontrado uma solução ainda. Devo uma parte da minha tomada de consciência política a esse aspecto da habitação, e foi aliás na Federação das Caixas de Previdência que comecei esse caminho. Indignava-me ver as condições deploráveis em que vivia grande parte dos portugueses, sem haver soluções do Governo. Não há uma política consistente, ainda hoje, para resolver o problema da habitação. Os défices acumulam-se e isso é um estigma excepcionalmente penoso da nossa sociedade.

PÚBLICO – Nos últimos 30 anos, duas grandes zonas de Lisboa foram transformadas em bairros sociais com características diferentes: os Olivais e Chelas. No primeiro projecto, participou activamente, no segundo já não. Que diferenças principais há entre os dois?

R. – Os Olivais foram obras exemplares, muito bem programadas, foram executadas num período muito curto de tempo, houve uma grande preocupação de diversidade nos estratos populacionais que foram ocupar aqueles bairros. Em Chelas, tem sido habitação social para habitantes de barracas e com poucos equipamentos sociais. É pena que a experiência que se teve nos Olivais não tenha sido continuada.
Em parte, Chelas era para ser uma continuação dos Olivais. Mas foi apanhada pelo 25 de Abril, grandes perturbações, falta de dinheiro, governos a mudar continuamente, ausência de uma política clara de habitação. No período a seguir, houve o projecto SAAL, que poderia ter dado óptimos resultados se não tivesse sido travado.

P. – Agora que se chegou a uma fase de estabilidade…

R. – … era de esperar que se fizesse um plano nacional de habitação, que é uma coisa desejada há tantos anos, um plano coerente, que pudesse pelo menos ajudar a resolver o problema. Porque não basta fazer bairros, como agora se está a fazer, em certo número de localidades. Mesmo em Lisboa, há uma actividade importante na construção de habitação social. Mas era preciso que fosse a nível nacional e que fosse o resultado de medidas de vários ministérios.

P. – E o que pensa das modificações da cidade de Lisboa, onde nasceu e viveu toda a sua vida?

R. – Depois de 20 ou 30 anos sem obras de infra-estruturas, é indispensável fazer muitas obras ao mesmo tempo. As opções da câmara, ao não deixar demolir fachadas em alguns pontos fundamentais para preservar a memória da cidade, são correctas – embora eu tenha projectos em situações dessas e isso dê muitíssimo trabalho.

P. – E o que pensa dos edifícios “pós-modernos” que surgiram na cidade nos últimos dez anos?

R. – O pós-modernismo é a “revanche” dos academismos do princípio do século, que foram destronados pelo movimento moderno. Acho que a arquitectura actual não pode dispensar as aquisições históricas do movimento moderno. Tem que ir mais além, mas não abandonar princípios de racionalidade.

P. – Até ao 25 de Abril teve muita actividade política e depois teve mesmo actividade partidária. Disse que grande parte das suas preocupações sociais nasceram do contacto com os problemas de habitação. Pode falar disso, das suas preocupações sociais, apesar de vir de uma família que as não tinha?

R. – A minha família tinha preocupações sociais, e o meu tio Pedro Teotónio Pereira e o meu pai, Luís Teotónio Pereira, canalizaram isso para a solução corporativa. Queriam justiça social através do entendimento entre os operários e os patrões. No fundo ficavam sempre os patrões a dominar, no meu entender, porque tinham o poder político a seu favor.

P. – Como é que rompeu?

R. – Comecei a tornar-me um bocado independente, tinha contactos na escola de Belas-Artes, no meio universitário, comecei a fazer certas leituras. Tenho um lado bastante conformista, bastante obediente às regras, às circunstâncias. Por outro lado, sou rebelde. Sinto esse conflito em mim. No dia-a-dia sou muito regrado. Fui um jovem apontado como exemplo da família até certa altura, muito bem comportado, com boas notas no liceu, muito certinho.
Mas era católico militante, portanto achava que se deviam fazer coisas.
Comecei a fazer um processo de independência em relação à família, tinha ideias próprias. Uma das primeiras coisas que fiz, aos 18 anos, penso eu, foi tirar o H de Theotónio. Os meus pais, toda a minha família, escreveram sempre Theotónio. Era o Theos…

P. – Isso chocou a família?

R. – Chocou bastante.

P. – A partir do momento em que tirou o H as coisas foram mudando?

R. – Foram mudando. Depois também comecei a ver muito a sério os aspectos sociais do catolicismo, e procurei contactos com o padre Abel Varzim, que era um homem do Movimento Operário Católico que depois foi desterrado de Lisboa pelo cardeal Cerejeira. Tive contactos, leituras, comecei a ler os jornais da esquerda católica europeia, e assim fui-me definindo nessa direcção. Mas o que me interessava eram os acontecimentos, não era a teoria.

P. – Qual era o papel do cardeal Cerejeira?

R. – O meu amigo António Alçada Baptista disse uma vez que o Cerejeira governava a Igreja exactamente da mesma maneira como o Salazar governava o país. E era isso. O cardeal Cerejeira tinha a incumbência de manter na ordem os católicos, dentro do regime do Estado Novo. E de facto foi muito contundente a acção dele nesse campo. Mandou padres para o estrangeiro, mandou vários amigos meus para o Brasil, membros e dirigentes da Acção Católica.

P. – Isso não afastou muita gente da Igreja?

R. – Penso que sim, que afastou.

P. – Não foi assim que aconteceu consigo, porque na altura em que se afastou do catolicismo já não havia cardeal Cerejeira…

R. – O cardeal Cerejeira durou até muito tarde e depois não houve alterações muito sensíveis. Pelo menos eu não notei.

P. – As pessoas normalmente afastam-se da Igreja na adolescência, quando têm aquelas crises de consciência, e há muitas que acabam por voltar quando atingem uma certa idade. Consigo não aconteceu assim. Foi muito activo, muito empenhado, até aos 55 anos e depois é que se afastou. Como é que isso aconteceu?

R. – Fui assumindo responsabilidades como católico militante e portanto não havia apelo nenhum para que eu saltasse fora. Assumia todas as contradições, todos os problemas. A certa altura, não aguentei mais. Foi num período de mais reflexão pessoal, depois da turbulência dos acontecimentos políticos pós-25 de Abril. O ambiente exterior estava mais apaziguado e comecei a sentir-me fora da Igreja. O primeiro elemento que me levou a isso foi sentir-me incapaz de estar em comunhão, como se diz na Igreja, com os bispos, com os dirigentes. Não podíamos estar no mesmo barco. Depois vieram todos os outros problemas metafísicos, religiosos, tudo isso foi desaparecendo, pouco a pouco e sem sofrimento.

P. – E hoje, o que sente em relação à Igreja?

R. – Tenho muito respeito pelas pessoas que estão lá, pelas pessoas que se mantêm fiéis. Tenho grandes amigos nessas condições, como tenho grandes amigos na situação oposta. Mas de facto sinto-me exterior a tudo isso. Tenho uma visão do mundo já diferente. A vida eterna, aqueles dogmas da Igreja já não me dizem nada.

P. – O seu afastamento da Igreja poderia não ter acontecido se vivesse numa situação como a da América Latina?

R. – Poderia ter sido, sim, admito isso perfeitamente. As circunstâncias é que me levaram a afastar.

P. – Disse que teve desde jovem preocupações sociais, e na verdade não ficou quietinho em casa, sentado num sofá a pensar “coitadinhos dos pobrezinhos”.

R. – Tive uma ajuda muito grande nesse aspecto, que foi a minha mulher. Ela era muito exigente, não se resignava com a injustiça e a opressão. Era uma pessoa de uma exigência interior enorme e não podia ficar quieta e calada perante acontecimentos graves que aconteciam à nossa volta. Ela morreu três anos antes do 25 de Abril.

P. – Participou, deu a cara, em situações muito difíceis. Foi preso várias vezes, e enquanto foi preso pelas actividades como católico foi sempre – já o escreveu – bem tratado pela PIDE. Sabia que outras pessoas não eram nada bem tratadas na prisão?

R. – Sabia perfeitamente. Participei num abaixo-assinado ao Salazar, em 1959, com um certo número de católicos, entre eles alguns padres – e esses padres foram perseguidos pela Igreja depois por causa disso e de outras atitudes -, a denunciar de uma forma muito concreta os maus tratos e assassínios da polícia política, da PIDE.

P. – Não tinha medo de ser torturado quando era preso?

R. – Logo na primeira vez que fui preso não fui maltratado. Eles tinham essa precaução, não maltratavam porque sabiam que os católicos, apesar de tudo, estavam um bocado dentro do regime, pertenciam ao mesmo sector da sociedade e por isso não queriam reprimi-los muito.

P. – Entregaram o tal abaixo-assinado a quem?

R. – Entregámos ao cardeal Cerejeira e ele falou de muitas coisas, como era costume dele, e no fim fez um apelo para que nós não deitássemos “mais achas para a fogueira”. E depois também nos avisou: “Vocês têm que ter cuidado porque têm famílias a cargo, têm carreiras, têm que defender essas coisas, não se metam em complicações.” Quer dizer: em vez de nos estimular, deu-nos para trás. Isso indignou-me muito, sofri muito com isso.

P. – E nunca seguiu esses ensinamentos do cardeal Cerejeira, nunca se portou bem?

R. – Não, felizmente não segui esses ensinamentos.

P. – E ressentiu-se dessa opção na sua actividade profissional e na sua vida do dia-a-dia?

R. – Poucas vezes. Por exemplo, aqui no “atelier”, a certa altura, especializámo-nos na construção de igrejas. E tivemos uma encomenda para uma grande igreja em São Sebastião, onde vai ser construído o Hotel Hilton, no Alto do Parque. Era a nova igreja de São Sebastião da Pedreira. Fizemos um primeiro estudo, aquilo ia seguir para a frente, e nessa altura fui preso. Quando voltei da prisão, soube que tinham encomendado o projecto a outro colega. Rescindiram o contrato connosco. Para minha satisfação, aquela igreja nunca se fez.

P. – Mas fez várias igrejas. Houve mesmo um movimento de renovação da arquitectura religiosa.

R. – Houve uma época em que se construíram três importantes igrejas em Lisboa, em poucos anos: o Santo Condestável, em Campo de Ourique, São João de Deus, na Praça de Londres, e São João de Brito, em Alvalade. Eram igrejas muito tradicionalistas, muito académicas, dentro do estilo que depois veio a chamar-se do Estado Novo. Então formámos um grupo de jovens artistas e arquitectos, o Movimento de Modernização da Arte Religiosa, de que faziam parte o José Escada, o Cargaleiro, os arquitectos Diogo Pimentel, Maia Santos, o António Freitas Leal, o pintor António Lino. O Nuno Portas também fez parte, a certa altura, e a Madalena Cabral, que está hoje no Museu de Arte Antiga…
Fizemos abaixo-assinados em relação à construção desse tipo de arquitectura e conseguimos que o nosso movimento vencesse, finalmente. Uma das primeiras conquistas foi a abertura do concurso para a Igreja do Sagrado Coração de Jesus.

P. – Que lhe tinham encomendado a si?

R. – Tinham-me falado nisso, convidaram-me. E eu respondi que tinha de ser um concurso, e teve graça que fomos nós que ganhámos – eu com o Nuno Portas, o Vasco Lobo e o Vítor Figueiredo. O Pedro Vieira de Almeida, o Duarte Cabral de Melo, o Miguel Aragão também participaram. Mas a contribuição fundamental para aquela igreja é do Nuno Portas. E gostaria de dizer que ele, nesse aspecto, tem sido um bocado injustamente compreendido. É uma pessoa muito conhecida como teórico, como professor, como urbanista, agora como autarca, mas têm dado pouco valor à obra dele como arquitecto, no sentido de conceber os grandes espaços. E ele de facto é um arquitecto de grande talento.

P. – Por que é que põe sempre a participação de outros arquitectos nos seus projectos como tão ou mais importantes que a sua? Até diz que tem tido muita sorte por trabalhar com arquitectos como os que já aqui passaram por este “atelier”…

R. – É verdade, tive aqui sócios e colaboradores excelentes. O Bartolomeu da Costa Cabral, o Pedro Vieira de Almeida, o João Paciência, o Gonçalo Byrne, o Duarte Nuno Simões, e agora o Pedro Botelho, todos eles grandes arquitectos.

P. – E eles não tiveram também muita sorte de trabalhar consigo?

R. – Acho que as vantagens foram mútuas. É capaz de ser uma insuficiência minha. Tenho mais dificuldade em afirmar-me sozinho. Gosto de trabalhar em grupo, acompanhado, rende-me mais.

P. – Mas parece ser um arquitecto muito criativo. Os seus projectos têm sempre qualquer coisa de novo, de diferente, desde o “Franjinhas” até ao Restelo, passando pelo projecto que tinha feito para o Quarteirão do Anjo, no Saldanha. Atribui essa criatividade aos outros ou a si mesmo?

R. – Em parte aos outros, em parte a mim. Também tenho a minha parte, evidentemente. Sabe como é que era conhecido o meu “atelier” no meio dos arquitectos? Era conhecido pela “sacristia”, porque eu e o Nuno Portas éramos católicos militantes.

P. – As pessoas falam de si com respeito, até com carinho. Fez muitos amigos, mesmo entre os arquitectos, que em geral dizem muito mal uns dos outros.

R. – Tenho, fui fazendo amigos ao longo da vida e hoje tenho um problema que é ter dificuldade em manter essas amizades, em geri-las, em mantê-las vivas. São de facto tantas pessoas, e eu sou um bocado preguiçoso, há amigos que se passam anos e anos sem ver.

P. – Não faz vida social, é muito recatado. Vai aos fins-de-semana para a sua casa ao pé do Cabo da Roca, fica lá sossegado. Foi o arquitecto que projectou a casa?

R. – Não, foi uma casinha saloia que comprei e depois foi ampliada. Tem uma parte que é a ampliação da própria casa, outra que é o “atelier” da minha mulher, a pintora Irene Buarque, que trabalha lá.

P. – Gostava de ter projectado uma casa para si?

R. – Não, não gostava. Tinha medo de não ser capaz. Foi uma coisa que nunca me seduziu. Gosto muito de fazer casas para os outros. Agora ter-me a mim próprio como cliente não me seduz nada.

P. – Queria falar da fase antes do 25 de Abril. Disse que foi bem tratado na prisão, mas não foi sempre.

R. – Não. Da última vez que fui preso fui muito maltratado.

P. – Já não era católico?

R. – Ainda era católico, mas fui preso porque participei numa acção ligada à luta armada. Não foi deliberado. Uma pessoa muito amiga, ligada à LUAR, pediu-me para dar uma ajuda, para armazenar material, e eu lá arranjei uma casa para se colocar esse material. Passado um ano, foi tudo descoberto pela PIDE e fui parar à cadeia. E aí não perdoaram.

P. – Esteve preso quanto tempo?

R. – Estive preso cinco meses. Deram-me muita pancada, fizeram-me a tortura do sono durante quatro ou cinco dias. Tive alucinações tremendas, já não sabia a quantas andava, confusões mentais muito grandes.

P. – Como é que foi?

R. – Na tortura do sono há um agente sentado a uma mesa à nossa frente e quando nós cabeceamos dá uma pancada na mesa, não nos deixa dormir. E no meio disso há interrogatórios. Estava de tal maneira alucinado, a certa altura, que entrou um agente com ares muito sorrateiros, fingiu-se meu amigo, disse-me que me podia ajudar a sair daquela situação e eu confiei nele, acreditei nisso. Faz parte das técnicas habituais deles. Na mesma altura e durante mais dias, de vez em quando era chamado à zona sul do Forte de Caxias e era espancado.

P. – Foram os piores momentos da sua vida?

R. – Foram os piores porque eu fraquejei. A certa altura não consegui aguentar e tive mesmo que dizer nomes de pessoas que eles queriam que eu dissesse. Essas pessoas foram presas depois e foram presas outras, e assim sucessivamente.

P. – E sente isso como uma culpa, ainda hoje?

R. – Sinto muito isso, sim. Mas aconteceu porque eu não estava vocacionado para aquele tipo de actividade. Foi uma coisa acidental. A minha actividade principal não era essa. Muitas vezes tentaram aliciar-me para esse tipo de acções e eu sempre recusei, porque não era essa a minha vocação.

P. – Quem é que estava na cela consigo?

R. – O Joaquim Osório, o Fernando Pereira, o José Oliveira, o Luís Guerra, mais um ou dois de que não me estou a lembrar. São dos tais amigos que eu só vejo muito raramente, à excepção do José Oliveira, que resolveu tirar o curso de Arquitectura por me ver lá a fazer desenhos e hoje é meu colega. Do “atelier” mandaram-me coisas para trabalhar, mandaram-me até uma prancheta. E comecei a fazer desenhos aqui para o “atelier”, estávamos a trabalhar intensamente no projecto do Restelo e os espaços públicos, as travessas, as escadinhas estavam a preocupar-me, e fiz uns desenhos disso.

P. – Foi libertado no 25 de Abril. Como é que souberam, dentro de Caxias, do que se passava cá fora?

R. – O primeiro sinal foi os guardas terem desaparecido. Só os víamos através do postigo, deixavam-nos a comida à porta. Começámos a achar estranho. Um silêncio muito grande. Os horários começaram a ficar transtornados e depois, a certa altura, veio a Guarda Republicana em força tomar posições defensivas à roda do forte. Víamos pelas janelas, não tínhamos nenhuma informação. Depois viemos a saber que a GNR estava lá para defender aquela cadeia dos ataques do MFA. Na manhã de 26, vieram os fuzileiros navais, os nossos libertadores. Os GNR foram-se embora pacificamente e os fuzileiros vieram, com um ar muito satisfeito, e então já houve trocas de mensagens pelas janelas e soubemos o que tinha acontecido.

P. – Ficaram lá dentro guardados pelas forças do MFA?

R. – Só saímos na noite de 26. Havia uma grande discussão com o Spínola, que dizia que só se deviam libertar os presos de consciência e não os que estavam envolvidos em actos revolucionários. Mas nós lá na cadeia dissemos “ou saem todos ou não sai nenhum”. Foi uma festa enorme. A primeira pessoa amiga que eu vi foi o Francisco Sousa Tavares, depois também lá estava a Sophia de Melo Breyner, comecei a ver pessoas amigas que entraram na cadeia.

P. – Teve muitas visitas enquanto esteve preso?

R. – Sim, as visitas eram muito frequentes. Os meus filhos iam lá quase todos os dias. E no dia em que fiz anos fui visitado pelo meu pai e pela minha irmã mais velha.

P. – Esse foi um momento muito emocionante, o da visita do seu pai?

R. – Foi emocionante porque a ele deve ter-lhe custado muito. Ele não gostava nada das minhas actividades. Estava muito contrariado.

P. – Tentou alguma vez demovê-lo?

R. – Sim, sim, fazia sentir o seu desagrado. Foi bastante difícil esse tempo nas relações com a minha família – com o meu pai e os meus irmãos.

P. – Os seus filhos tinham uma grande cumplicidade consigo?

R. – Eles viviam muito estes acontecimentos, toda a actividade conspirativa, as reuniões, os trabalhos que nós tínhamos de fazer em casa. Quando foi da Capela do Rato, o meu filho Miguel estava lá e fomos presos os dois, pai e filho para o Forte de Caxias. Soube que ele ainda estava preso através do barbeiro, que me disse: “Hoje cortei o cabelo ao seu filho.” Ele tinha uma cabeleira muito grande, como os jovens usavam naquela época, e cortaram-lhe rente o cabelo. E a mim cortaram-me a barba, deixaram-me só ficar o bigode. Para humilhar. E depois, mais tarde, estava eu outra vez preso em Caxias, soube pela filha mais velha, a Luísa, que a mais nova, a Helena, tinha sido presa por causa do movimento estudantil. Era aluna do liceu, foi presa numa manifestação.

P. – Do regime fascista, de tudo o que viveu, o que é que acha que foi mais mais negativo, o que marcou mais?

R. – O mais negativo de tudo foi a cumplicidade que o regime encontrou nos vários sectores da sociedade portuguesa, a começar pela Igreja. A apatia das pessoas, o conformismo, o não quererem ver, deixarem-se dominar pela censura, pelo medo da polícia, foi extremamente negativo.

P. – Foi muito activo na luta contra a guerra colonial. Porquê?

R. – Fui muito alertado para o problema colonial através das publicações católicas, nomeadamente quando foi a guerra da Argélia, nos anos imediatamente antes da nossa guerra. Também me influenciaram muito os padres angolanos que foram desterrados para cá, colocados em casas religiosas e seminários sob a vigilância dos superiores dessas casas. Não podiam sair, a não ser para ir à polícia uma vez por semana. Nós procurámos visitá-los, contactar com eles. Nessa altura fiquei muito amigo do Joaquim Pinto de Andrade, que é até meu compadre. Um deles era o hoje cardeal de Luanda, Alexandre Nascimento. Outro, o Franklin da Costa, é hoje o arcebispo de Lubango. Também muito importante era o Joaquim das Neves, que estava num seminário em Braga e morreu lá. A PIDE só autorizou que o enterro fosse feito durante a noite, às escondidas. Havia episódios macabros no meio disto tudo.
Quando o Papa Paulo VI veio a Portugal, em 1967, organizámos uma acção que podia ter sido espectacular. A ideia era levar os padres angolanos a refugiar-se na Nunciatura e declarar que não saíam de lá, à espera que houvesse uma solução para tirá-los de Portugal. Estava tudo muito bem organizado, já havia os carros distribuídos que iam buscar cada um ao seu sítio, mas depois houve um que à última hora disse que não estava de acordo e não se fez a operação.

P. – Hoje sente saudades desse tempo de clandestinidade?

R. – Foi um período apaixonante da minha vida. Vivia-se muito intensamente. O facto de se furar a censura, de se distribuir um folheto, um jornal com notícias proibidas dava um gozo enorme. Não chegava a muita gente, nós não tínhamos grandes possibilidades materiais pois o que queríamos era que a opinião católica tomasse consciência da situação e da contradição entre a guerra colonial e os apelos de paz que o Papa fazia com frequência, sobretudo o João XXIII.

P. – Nunca teve a sensação daquilo que o cardeal Cerejeira tinha aconselhado, de que podia ter tido uma vida mais tranquila se não se tivesse metido nisto tudo?

R. – Não buscava a tranquilidade, isso era o resultado de uma insatisfação muito profunda.

P. – E agora, está quieto?

R. – Agora estou mais quieto, estamos em democracia.

P. – Sente-se bem nesta situação?

R. – É uma democracia um bocado insossa, sem sal, que não me diz nada de especial, mas enfim, é uma democracia. É uma situação completamente diferente daquela que vivíamos debaixo de uma ditadura. Não há censura, as coisas podem ser noticiadas, pode haver protestos, não há polícia política, é completamente diferente. Mas não sinto nenhum apelo pela política.

P. – Aquela sua passagem por dirigente partidário…

R. – Já não foi muito bem sucedida, não me sentia muito bem nessa pele. Gostava muito do contacto com os militantes, mas nas discussões das cúpulas partidárias sentia-me um bocado mal. E depois que acabou o MES não voltei à política activa. Hoje posso dizer que sou simpatizante do PS, mas não me inscrevi nunca mais em nenhum partido.

P. – Continua a indignar-se com coisas que acontecem?

R. – Claro, estas coisas ligadas ao problema da habitação, à corrupção, a falta de escrúpulos de alguns políticos, o exibicionismo, as vaidades, as intrigas são coisas que me enfurecem muito. Mas enfim, fazem parte do sistema.

P. – Continua a assinar documentos de protesto?

R. – Ainda há uns dias umas pessoas minhas amigas mandaram-me um impresso para assinar por causa das pessoas do Prior Velho. Há ali uma data de barracas e vão-se fazer obras de estradas. Estão a expulsar as pessoas dessas zonas e elas depois que se arranjem. É uma situação que tem um paralelo com a das pessoas que viviam no Vale de Alcântara, nos anos 60, quando foi construída a Ponte sobre o Tejo. Nessa altura até ajudei a escrever o documento de protesto, que foi espalhado clandestinamente, porque foi um tratamento desumano. Quase sem aviso prévio nenhum, chegaram camionetas com a polícia junto das barracas, demoliram-nas, transportaram os materiais todos para a Musgueira, que é num ponto oposto da cidade, para as pessoas aí reconstruírem as suas barracas. Isso foi feito com a maior desumanidade possível. E a situação no Prior Velho é muito parecida.

P. – Aos 71 anos, depois de ter vivido tantas mudanças no mundo, a situação actual é particularmente angustiante?

R. – É um bocado aflitiva. Há ideais que foram frustrados de uma maneira brutal, como os chamados países comunistas, que tinham uma forte componente de idealismo e de generosidade que foram destruídos pelo aspecto opressivo desses regimes. Também em África, tenho grandes problemas em relação ao que se está a passar nos novos países independentes.

P. – Hoje em dia, sente-se um homem tranquilo?

R. – Muito tranquilo. Às vezes acho até tranquilo de mais.

“Nuno Teotónio Pereira: o arquitecto das causas sociais”. Entrevista de Ana Sousa Dias. Público Magazine, 31 jan. 1993, pp. 14-21.