Assuntos pessoais Atividade política

Pequeno diário de Caxias

Primeira página do manuscrito “Pequeno diário de Caxias” (1967)

6 Abril

A meio da tarde telefonou-me o António Costa: a Pide estava na sede e queria a comparência de alguém da Direcção. Depois de ter tomado algumas providências, corri para lá. Já lá estavam o Tó e a Natália, que tinha ido trabalhar na preparação de circulares. O sub-inspector Abílio Augusto Pires, com cerca de 6 agentes, esperava por nós para início da busca. A certa altura apareceu o sub-director Sachetti, que apontando indignado para uma parede onde estavam afixados jornais editados para os emigrantes portugueses em França (desde comunistas a católicos), se referiu à obra criminosa que a Pragma tem estado a fazer. Saiu rapidamente e a busca prosseguiu. Ao fim da tarde comunicaram-me que a busca não poderia terminar naquele dia e que continuaria no seguinte, devendo eu acompanhá-los à sede da Polícia. Apostos os selos nas portas, despedimo-nos na rua e segui com os agentes, sempre tratado com correcção. Foi um bom começo ter-me podido despedir calmamente da Natália e dar algumas indicações importantes.

Na Pide impingiram-me um auto de busca em que se dizia que tinha sido encontrada propaganda subversiva. Recusei-me a assinar , e então o tom mudou imediatamente. Trataram-me de comunista (só os comunistas é que se recusam a assinar) , declararam-me preso (vai passar a noite a Caxias e amanhã já estará mais colaborante), mas tiveram que redigir novo auto, que assinei, dizendo que “tinham sido encontrados documentos que interessavam à matéria dos autos”.

Tiraram-me a carteira e todos os papéis, lápis e canetas e segui num carro celular, depois de ter jantado bem. À entrada da cadeia, tiraram-me mais os óculos, cinto, atacadores, relógio, porta-moedas; ficaram intrigados com uma dezena do terço e tive de explicar-lhes o que era. A caminho da cela, tive uma conversa com o guarda, iniciada com uma pergunta minha: “Tem havido muito movimento?” – “Não, pouco; isto está muito parado e muitas celas estão vazias. E o que dá ainda alguma coisa é a emigração (engajadores e passadores); políticos, são agora raros. O senhor é da emigração ou dos políticos?” – “Sou dos políticos.” – “Pois é, disso tem havido pouco, compreende: cada um trata mas é da sua vida.”

Este rápido diálogo serviu-me de meditação para os dias seguintes. Cada um trata da sua vida – é por isso que as celas estão vazias, à espera de quem se disponha a tratar também dos outros. Com o PC esfrangalhado e a oposição clássica cansada e gasta, eis que chega (e já não é sem tempo) a nossa vez.

A cela, moderna e limpa, com banho anexo, era quase agradável. Uma vez só, quis voltar-me para Deus, mas tive dificuldade em encontrá-lo, um tanto aturdido pelos acontecimentos. E encontrei-O na presença quase física de Jesus, naquele lugar onde tanto tem sofrido, nas pessoas daqueles milhares que por ali têm passado porque têm fome e sede de justiça, ou porque são obreiros da paz. Esta presença acompanhou-me nos 4 dias que passei ali e com ela foi possível construir e encontrar uma paz cada dia mais profunda.
Apesar da dureza do colchão, dormi razoavelmente (e muito mais tempo do que habitualmente!).

7 Abril

A meio da manhã, levaram-me para a Pide, onde me mediram, sinalizaram e retrataram. Às 3 horas, fomos para a Pragma continuar a busca. O sub-inspector começou a fazer o arrolamento dos jornais comunistas que estavam afixados. Declarei que só assinaria o auto em que figurassem todos os jornais afixados no painel sobre a Emigração e não apenas aqueles. Começaram os insultos, no meio dos quais me disseram que a Polícia é que sabia o que lhe interessava ou não apreender: “Se estiver ali uma Bíblia, é claro que não a vamos apreender”. Disse-lhes que, se precisavam da minha assinatura, teriam de acordar comigo os termos do auto e que, embora sem os apreender, teriam de enumerar todas as publicações encontradas no painel. Redobraram os insultos e começaram as ameaças: comunista (epíteto que eu, evidentemente, recebi com alegria), criança (lembrei-me do Evangelho), burro, nojento: “tenho nojo de si, nem sequer é homem!”. Invertendo a situação, dizia o sub-inspector: “E se continua nessa atitude, insultando a autoridade, enfio-lhe uma cadeira pela cabeça abaixo”. Invoquei a presença de testemunhas, para provar que ele é que me estava a insultar. Deu-me uma gargalhada na cara, dizendo: “Então o sr. é tão parvo, tão imbecil, que pensa que estes homens poderiam alguma vez testemunhar contra mim? Não vê que são meus subordinados?”. Respondi que acreditava haver apesar de tudo homens honestos naquela sala.

Passeava eu de um lado para o outro na sala e mandou-me sentar. Disse que estava em minha casa. “O Sr. está mas é preso, e por isso tem de obedecer-me. Além disso, a Pragma acabou de vez. Sente-se imediatamente.” Continuei a passear; o sub-inspector levanta-se, agarra-me nos ombros, mete-me um joelho ao peito e obriga-me a sentar. Num ápice, os agentes que estavam espalhados pela sala fazendo a busca, levantam-se e cercam-me. Percebi a técnica: ou esmagar-me pelo medo ou provocar uma reacção que seria imediatamente castigada com uma dose de pancadaria. Imobilizado a partir desse momento, fiquei sem o controlo do que se passava nas outras salas e assisti calmamente à continuação da busca e da redacção do auto. Uma ou outra vez havia insultos e o sub-inspector levantava-se, brandindo ameaçadoramente os braços simulando bater-me, mas sem nunca me tocar na cabeça. Já antes, quando da ameaça da cadeira pela cabeça abaixo, tendo eu retorquido que então “sempre era verdade o que se dizia lá fora sobre os processos da Polícia”, ele tinha avançado para mim como para me esmagar.

Ao fim da tarde, o sub-inspector, fechando a porta da sala, vai telefonar. Volta diferente, conciliador: “Já que o Sr. insiste em pôr mais aqueles papéis, seja.” E assim, recebidas ordens superiores, o auto ficou como eu queria e assinei.

Trancadas as portas e apostos os selos, embalado o material apreendido (cartazes, gráficos, fotografias, jornais, ficheiros, dossiers, etc.), volto à Pide e há um curto interrogatório, sobre as actividades da cooperativa, a finalidade dos jornais subversivos e a sua origem. Nada mais. Entretanto, durante a busca, tinha reparado na predilecção dos agentes pelas máquinas de escrever (de que tiraram, às minhas escondidas, provas da escrita) e pelas ceras de duplicador, que observaram com atenção. No interrogatório, alusões à obra criminosa que a Pragma estava a fazer junto dos nossos soldados, pois “um desgraçado que em África traiu os camaradas foi preso e confessou que tinha aprendido tudo na Pragma.”

Regresso a Caxias à noite.

8 de Abril

1º dia passado todo na cela, muito penoso. Ignorando tudo o que se passava fora e obcecado pelas respostas que tinha dado e atitudes que tinha tomado. Obcecado ainda pelas respostas que iria dar em novos interrogatórios, preparava-me para tudo e punha todas as hipóteses.

Escrevi uma carta ao director da Pide pedindo óculos, papel e caneta, a Bíblia e a Populorum Progressio e assistência espirirual (P. Manuel Antunes ou, se este não pudesse, o D. Manuel Falcão). Lavrei na mesma carta um protesto contra a forma como fora tratado na sede da Pragma, brutal e grosseira, descrevendo pormenores e aludindo à linguagem insultuosa “indigna de um funcionário do Estado.”

Comecei a conhecer o horário, a disciplina, os costumes; a controlar as horas. Recebi, de manhã, as primeiras encomendas da Natália: uma mala com roupas e guloseimas. Os livros ficaram retidos. Tive muita dificuldade em rezar. Dormi com menos facilidade, mas na esperança de que o dia seguinte fosse melhor.

9 de Abril

Domingo. Festa do Bom Pastor. Óptima disposição.

Procuro ir fixando algumas regras e um horário. Primeiro, o café, trazido pelas 8 e meia, desta vez acompanhado com o belo pão escuro. A seguir, um pouco de ginástica. Depois, a higiene (entretanto, atinge-se o meio da manhã – e um dos grandes problemas aqui é encher o tempo). Finalmente, o fazer da cama, com um cuidado e uma minúcia muito superiores aos da Helena, e a arrumação do quarto.

Fica, então, tudo pronto, e procuro juntar-me à Natália e aos filhos, à família, aos inúmeros amigos, a toda a comunidade cristã, no dia do Senhor. Tento fazer um arremedo da Missa: a liturgia da família e o ofertório. Relembro com dificuldade as orações da entrada, o Kyrie, o Glória. Componho uma oração do próprio, verifico não fazer nenhuma ideia da epístola do dia, mas sei quase de cor o Evangelho. Faço, até, uma homilia, dirigida a mim próprio, evidentemente, com a cabeça encostada às grades da janela. Na oração dos fiéis, procuro lembrar-me de todos, especialmente dos companheiros desconhecidos, dos amigos que estão longe e daqueles que se sentem isolados; não esqueço, mesmo, a habitual prece pelos governantes. Sinto uma grande paz, que exclui qualquer possibilidade de rancor e que é, sem dúvida, obra do Espírito do Senhor. Ao ofertório, parece-me pouco e bem simples aquilo que tenho para oferecer: nem angústia, nem dor, nem doença, nem privação, nem desentendimento. Comungo, em espírito, e dou graças. Olho para o relógio de sol que estou a organizar, constituído por um candeeiro de coluna, cuja sombra vai girando ao longo do dia: a missa deve ter durado 1 hora. Entra o almoço, com canja de galinha, mas ainda sem vinho, nem sequer aos domingos.

Documento manuscrito, abril de 1967, inédito.