Assuntos pessoais

Quadras de um meio ilhéu

Fotografia da sua Mãe Alice, nascida na ilha Terceira, Açores, tirada pelo Nuno (1947)

 

Veio um fidalgo francês
das bandas da Normandia
Bettencourt era o seu nome
da cidade onde vivia

Pra rei das Canárias veio
pra governar essas ilhas
e pra povoar outras terras
bem antes de Tordesilhas

E bem cumpriu tal encargo
pois Bettencourts há aos centos
nas ilhas e nos Brasis
já nos anos de Seiscentos

E hoje há deles milhões
há milhares em cada ilha
no Continente e n’América
em terras de maravilha

Com Nicolau Anastácio (1)
oriundo da Madeira
o Batalhão Académico
veio parar à Terceira

Foi homem grande no tempo
este herói da Liberdade
d’Angra, Horta e Portalegre
e d’Aveiro autoridade

Na Terceira achou mulher
(à qual se deu com amor)
que foi ao Faial ter um filho
do senhor governador

Filho de comendador
Severiano Moniz (2)
tinha loja na Terceira
era folgazão e feliz

Casou com Maria Gomes (3)
que do Pico veio à vela
pra responder ao apelo
de quem chamava por ela

Dest’amor nasceram filhos
todos nados na Terceira
entre os quais Gilda e Alice (4)
raparigas de primeira

Meninas de formosura
e das mais variadas prendas
que sabiam muito mais
que fazer crochet e rendas

Num dia de grande bruma
todos partem no vapor
foram para o Continente
dizendo adeus ao Açor

E lá no bairro da Estela
na festa do Espírito Santo
no meio de muita alegria
lá vinham saudades e pranto

Alice amou Luís Teotónio (5)
e Gilda amou José Tristão (6)
aquele filho de João
e Virgínia, de pai alemão

Pois também Hermann viera (7)
combater pla Liberdade
ao lado do rei D. Pedro
para o Povo ter cidade

(Não tenho sangue espanhol,
nem flamengo nem bretão,
só tenho sangue francês,
português e alemão)

Depois de ter tido seis filhos
Alice voltou à ilha
Carvalho Araújo era novo (8)
viagem de maravilha

À vista do Monte Brasil
largara ferro o navio
vieram grandes saudades
lágrimas, lágrimas a fio

Ainda na força da vida
Alice morreu de repente
em Angra choraram as pedras
em Lisboa muita gente

Na Ilha já não há primos
mas quando à Terceira vêm
os filhos e netos de Alice
sabem os amigos que têm

Maria Alice, a mais velha
morreu sem vir aos Açores
todos choramos por ela
cheia de vida e de dores

Lembro Avô Severiano
mais a boa Avó Maria
Tia Gilda e Zé Tristão
general de infantaria

Lembro a prima Angelina
que nas horas d’aflição
aparecia a primeira
enfrentando a situação

O primo D. João Paulino (9)
fui em Macau encontrar
que d’almirantes e bispos
o Pico tem a fartar

Saúdo o primo Nemésio
e sua mulher Gabriela
ele da Vila da Praia
das Ilhas também era ela

Zé Bettencourt lá da Horta
e prima Maria Albina (10)
parentes das ilhas de Baixo
de mistério e bagacina

Mercês Silveira inda é viva
de S. Jorge veio para casar
lembro os Azevedo Gomes
valentes homens do mar (11)

Há vinte e um anos atrás
eu corri plas nove ilhas
vinha comigo a Natália (12)
na mente nossos filho e filhas

Saltando de ilha em ilha
em grande navegação
Sto. Amaro, Ponta Delgada
e lanchas com mar muito chão

Alguns poucos anos antes
surgira um novo vulcão
no Faial, os Capelinhos
cobriram de cinza o chão

Veio de Abril o vinte e cinco
o povo não esquece esse dia
encheu as ruas e praças
conquistava a autonomia

Volto agora à Terceira
depois de um grande abanão
ver com os meus próprios olhos
o esforço de reconstrução

Abraço novos amigos
gente de olhar já maduro
venham abalos e sismos
deles será o futuro

Vem o Sérgio, sindical (13)
mais a Maria José
militantes, construtores
puseram a casa de pé

Gilberto e sua Mulher
com o coração na mão
à casa meteu ele o ombro
em sábia reconstrução

José Noronha Bretão
da antiga fidalguia
mas que do povo é irmão
pois ele é quem mais porfia

Seja embora da Madeira
Mafalda é também das Ilhas
vão todos na mesma festa
correndo às mil maravilhas

E vem Emanuel Félix
põe no nosso ombro a mão
quando algo há que saber
tem pronta a informação

Lá vem amigo Jorginho
mais a querida Marina
e trazem novos amigos
e Maria, a pequenina

E vem Filipe mais Mena
vamos todos à Feteira
com torresmos e morcelas
bem à moda da Terceira

Amigo Francisco Ernesto
de Oliveira Martins
tem um museu lá em casa
entre pratas vive e marfins

Vamos pró Continente
relembrando os que lá estão
Zé Dias e Luísa Ivo
dos açores por adopção

Coriscos também os há bons
Eduardo não é da Terceira (14)
mas fez entre as ilhas Pontes
muito à sua maneira

Avelino está bem lá longe (15)
das Ilhas um dos valores
pró Continente afastado
vive a pensar nos Açores

Maria Natália Arruda
e João Correia Rebelo
no Canadá tão distante
das Ilhas guardam desvelo

António Borges Coutinho
e Maria da Conceição
amigos que muito prezo
e tenho no coração

Quero ainda homenagear
o escritor João de Melo
pois mesmo que com agruras
ele mostra que o mundo é belo

Outros havia a lembrar
como do Porto Rui Vieira
(pintando, ele usa Aguiar)
e Guida, também cantadeira

Agora não há mais vapor
ao fundo da Rua Direita
nem o Lima, nem Carvalho,
nem o Funchal lá espreita

Agora há só o roncar
dos reactores d’avião
vêm lestos pelo ar
e poisam suaves no chão

Lapas, cracas e goraz
venho aqui saborear
e abrótea e a garoupa
não me cansam de provar

Com verdelho dos Biscoitos
alcatra tão afamada
à sobremesa alfenim
e também a massa sovada

Biscoitos da Terra Chã
dizem-me que já não os há
só covilhetes de leite
licor de maracujá

Não há jejuns e lamentos
nas festas do Espírito Santo
solidariedade, alegria
em vez de rezas e pranto

Santos Barros, da Terceira,
alegre Ivone Chinita
veio a notícia da morte
e a gente nem acredita

Lá nas estradas de Espanha
cessou brutal o seu canto
da terra sobem as dores
nós todos em grande pranto

Na hora da despedida
já não apita o vapor
só abraços comovidos
para aquecer o motor

Não é mais no cais de Santos
a chegada ao Continente
atravessado o mar bravo
lenços acenando prá gente

Promessas de voltar a vir
desejos de por cá ficar
mas há outros continentes
e ilhas por explorar

Lembraremos os Açores
na confusão da Portela
é bem difícil saber
qual das ilhas a mais bela

Vamos mandar uns clichés
de volta ao Continente
já toda a gente conhece
mas espero fique contente

Cantigas ao desafio
quisera fazer eu na altura
por falta d´improvisação
agora vão em escritura

Assina esta cantoria
O Nuno Teotónio Pereira
com Irene Gusmão Buarque (16)
bem-amada companheira

Por gratidão peço ao Sérgio
d’esta fotocopiar
e a cada um nomeado
um exemplar entregar

Feita na cidade d’Angra
em Maio dia vinte e três
na Festa do Espírito Santo
do ano de oitenta e três

 

(1)   Nicolau Anastácio de Bettencourt, que desembarcou no Mindelo e foi depois governador civil de vários distritos
(2)   Meu avô materno, Severiano Moniz de Bettencourt
(3)   Da família dos Azevedos, das Lajes do Pico
(4)   Minha mãe, Alice Gomes de Bettencourt, prima e Gabriela Nemésio
(5)   Meu pai, Luís Teotónio Pereira
(6)   General, governador.geral de Moçambique durante a II Guerra (de Bettencourt), que casou com minha tia Gilda, da qual era primo
(7)   Militar prussiano que veio para Portugal para combater nas hostes liberais , meu trisavô paterno
(8)   Viagem inaugural do Carvalho Araújo, cerca de 1930, com o casal Bensaúde
(9)   D. João Paulino de Azevedo e Castro, bispo de Macau, onde tem rua com o seu nome
(10) Proprietário do primeiro cinema da Horta
(11) Os almirantes Manuel e Amaro Azevedo Gomes, este ministro do Governo Provisório da República
(12) Minha Mulher, falecida em 1971
(13) Daqui para baixo, amigos da Terceira
(14) Eduardo Pontes, micaelense, responsável, com sua Mulher, do Centro inter-étnico da Cova da Moura – Amadora
(15) Avelino Soares, director da Fototeca do palácio Foz
(16) Minha actual Mulher, artista plástica, prima do Chico Buarque

 

[Publicado em MARTINS, Francisco Ernesto de Oliveira. Festas Populares dos Açores. Lisboa: Ed. Região Autónoma dos Açores / Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, pp. 287-290 e republicado em TOSTÕES, Ana (Coord.). Arquitectura e Cidadania: atelier Nuno Teotónio Pereira. Lisboa: Quimera Editores, 2004, pp. 311-315]