Veio um fidalgo francês
das bandas da Normandia
Bettencourt era o seu nome
da cidade onde vivia
Pra rei das Canárias veio
pra governar essas ilhas
e pra povoar outras terras
bem antes de Tordesilhas
E bem cumpriu tal encargo
pois Bettencourts há aos centos
nas ilhas e nos Brasis
já nos anos de Seiscentos
E hoje há deles milhões
há milhares em cada ilha
no Continente e n’América
em terras de maravilha
Com Nicolau Anastácio (1)
oriundo da Madeira
o Batalhão Académico
veio parar à Terceira
Foi homem grande no tempo
este herói da Liberdade
d’Angra, Horta e Portalegre
e d’Aveiro autoridade
Na Terceira achou mulher
(à qual se deu com amor)
que foi ao Faial ter um filho
do senhor governador
Filho de comendador
Severiano Moniz (2)
tinha loja na Terceira
era folgazão e feliz
Casou com Maria Gomes (3)
que do Pico veio à vela
pra responder ao apelo
de quem chamava por ela
Dest’amor nasceram filhos
todos nados na Terceira
entre os quais Gilda e Alice (4)
raparigas de primeira
Meninas de formosura
e das mais variadas prendas
que sabiam muito mais
que fazer crochet e rendas
Num dia de grande bruma
todos partem no vapor
foram para o Continente
dizendo adeus ao Açor
E lá no bairro da Estela
na festa do Espírito Santo
no meio de muita alegria
lá vinham saudades e pranto
Alice amou Luís Teotónio (5)
e Gilda amou José Tristão (6)
aquele filho de João
e Virgínia, de pai alemão
Pois também Hermann viera (7)
combater pla Liberdade
ao lado do rei D. Pedro
para o Povo ter cidade
(Não tenho sangue espanhol,
nem flamengo nem bretão,
só tenho sangue francês,
português e alemão)
Depois de ter tido seis filhos
Alice voltou à ilha
Carvalho Araújo era novo (8)
viagem de maravilha
À vista do Monte Brasil
largara ferro o navio
vieram grandes saudades
lágrimas, lágrimas a fio
Ainda na força da vida
Alice morreu de repente
em Angra choraram as pedras
em Lisboa muita gente
Na Ilha já não há primos
mas quando à Terceira vêm
os filhos e netos de Alice
sabem os amigos que têm
Maria Alice, a mais velha
morreu sem vir aos Açores
todos choramos por ela
cheia de vida e de dores
Lembro Avô Severiano
mais a boa Avó Maria
Tia Gilda e Zé Tristão
general de infantaria
Lembro a prima Angelina
que nas horas d’aflição
aparecia a primeira
enfrentando a situação
O primo D. João Paulino (9)
fui em Macau encontrar
que d’almirantes e bispos
o Pico tem a fartar
Saúdo o primo Nemésio
e sua mulher Gabriela
ele da Vila da Praia
das Ilhas também era ela
Zé Bettencourt lá da Horta
e prima Maria Albina (10)
parentes das ilhas de Baixo
de mistério e bagacina
Mercês Silveira inda é viva
de S. Jorge veio para casar
lembro os Azevedo Gomes
valentes homens do mar (11)
Há vinte e um anos atrás
eu corri plas nove ilhas
vinha comigo a Natália (12)
na mente nossos filho e filhas
Saltando de ilha em ilha
em grande navegação
Sto. Amaro, Ponta Delgada
e lanchas com mar muito chão
Alguns poucos anos antes
surgira um novo vulcão
no Faial, os Capelinhos
cobriram de cinza o chão
Veio de Abril o vinte e cinco
o povo não esquece esse dia
encheu as ruas e praças
conquistava a autonomia
Volto agora à Terceira
depois de um grande abanão
ver com os meus próprios olhos
o esforço de reconstrução
Abraço novos amigos
gente de olhar já maduro
venham abalos e sismos
deles será o futuro
Vem o Sérgio, sindical (13)
mais a Maria José
militantes, construtores
puseram a casa de pé
Gilberto e sua Mulher
com o coração na mão
à casa meteu ele o ombro
em sábia reconstrução
José Noronha Bretão
da antiga fidalguia
mas que do povo é irmão
pois ele é quem mais porfia
Seja embora da Madeira
Mafalda é também das Ilhas
vão todos na mesma festa
correndo às mil maravilhas
E vem Emanuel Félix
põe no nosso ombro a mão
quando algo há que saber
tem pronta a informação
Lá vem amigo Jorginho
mais a querida Marina
e trazem novos amigos
e Maria, a pequenina
E vem Filipe mais Mena
vamos todos à Feteira
com torresmos e morcelas
bem à moda da Terceira
Amigo Francisco Ernesto
de Oliveira Martins
tem um museu lá em casa
entre pratas vive e marfins
Vamos pró Continente
relembrando os que lá estão
Zé Dias e Luísa Ivo
dos açores por adopção
Coriscos também os há bons
Eduardo não é da Terceira (14)
mas fez entre as ilhas Pontes
muito à sua maneira
Avelino está bem lá longe (15)
das Ilhas um dos valores
pró Continente afastado
vive a pensar nos Açores
Maria Natália Arruda
e João Correia Rebelo
no Canadá tão distante
das Ilhas guardam desvelo
António Borges Coutinho
e Maria da Conceição
amigos que muito prezo
e tenho no coração
Quero ainda homenagear
o escritor João de Melo
pois mesmo que com agruras
ele mostra que o mundo é belo
Outros havia a lembrar
como do Porto Rui Vieira
(pintando, ele usa Aguiar)
e Guida, também cantadeira
Agora não há mais vapor
ao fundo da Rua Direita
nem o Lima, nem Carvalho,
nem o Funchal lá espreita
Agora há só o roncar
dos reactores d’avião
vêm lestos pelo ar
e poisam suaves no chão
Lapas, cracas e goraz
venho aqui saborear
e abrótea e a garoupa
não me cansam de provar
Com verdelho dos Biscoitos
alcatra tão afamada
à sobremesa alfenim
e também a massa sovada
Biscoitos da Terra Chã
dizem-me que já não os há
só covilhetes de leite
licor de maracujá
Não há jejuns e lamentos
nas festas do Espírito Santo
solidariedade, alegria
em vez de rezas e pranto
Santos Barros, da Terceira,
alegre Ivone Chinita
veio a notícia da morte
e a gente nem acredita
Lá nas estradas de Espanha
cessou brutal o seu canto
da terra sobem as dores
nós todos em grande pranto
Na hora da despedida
já não apita o vapor
só abraços comovidos
para aquecer o motor
Não é mais no cais de Santos
a chegada ao Continente
atravessado o mar bravo
lenços acenando prá gente
Promessas de voltar a vir
desejos de por cá ficar
mas há outros continentes
e ilhas por explorar
Lembraremos os Açores
na confusão da Portela
é bem difícil saber
qual das ilhas a mais bela
Vamos mandar uns clichés
de volta ao Continente
já toda a gente conhece
mas espero fique contente
Cantigas ao desafio
quisera fazer eu na altura
por falta d´improvisação
agora vão em escritura
Assina esta cantoria
O Nuno Teotónio Pereira
com Irene Gusmão Buarque (16)
bem-amada companheira
Por gratidão peço ao Sérgio
d’esta fotocopiar
e a cada um nomeado
um exemplar entregar
Feita na cidade d’Angra
em Maio dia vinte e três
na Festa do Espírito Santo
do ano de oitenta e três
(1) Nicolau Anastácio de Bettencourt, que desembarcou no Mindelo e foi depois governador civil de vários distritos
(2) Meu avô materno, Severiano Moniz de Bettencourt
(3) Da família dos Azevedos, das Lajes do Pico
(4) Minha mãe, Alice Gomes de Bettencourt, prima e Gabriela Nemésio
(5) Meu pai, Luís Teotónio Pereira
(6) General, governador.geral de Moçambique durante a II Guerra (de Bettencourt), que casou com minha tia Gilda, da qual era primo
(7) Militar prussiano que veio para Portugal para combater nas hostes liberais , meu trisavô paterno
(8) Viagem inaugural do Carvalho Araújo, cerca de 1930, com o casal Bensaúde
(9) D. João Paulino de Azevedo e Castro, bispo de Macau, onde tem rua com o seu nome
(10) Proprietário do primeiro cinema da Horta
(11) Os almirantes Manuel e Amaro Azevedo Gomes, este ministro do Governo Provisório da República
(12) Minha Mulher, falecida em 1971
(13) Daqui para baixo, amigos da Terceira
(14) Eduardo Pontes, micaelense, responsável, com sua Mulher, do Centro inter-étnico da Cova da Moura – Amadora
(15) Avelino Soares, director da Fototeca do palácio Foz
(16) Minha actual Mulher, artista plástica, prima do Chico Buarque
[Publicado em MARTINS, Francisco Ernesto de Oliveira. Festas Populares dos Açores. Lisboa: Ed. Região Autónoma dos Açores / Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, pp. 287-290 e republicado em TOSTÕES, Ana (Coord.). Arquitectura e Cidadania: atelier Nuno Teotónio Pereira. Lisboa: Quimera Editores, 2004, pp. 311-315]