“Cinco dias depois de ter deixado de ver de um dos olhos, em Maio de 2009, o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, hoje com 90 anos, acordou a sentir que a outra vista estava com sintomas semelhantes. Levantou-se, saiu de casa, no bairro de São Miguel, em Lisboa e, como habitualmente, apanhou os transportes públicos atravessando a cidade para se dirigir ao ateliê, na Rua da Alegria. Ali, arrumou todas as suas coisas.
Antes de deixar o gabinete, o arquitecto telefonou para a mulher, explicando o que se passava e dizendo que tinha que voltar ao oftalmologista. Ela pediu-lhe que apanhasse um táxi e viesse depressa. Mas Teotónio Pereira fez de novo como todos os dias: apanhou os transportes públicos. Ao entrar em casa, disse: ‘Despedi-me de Lisboa.’ À hora de jantar, perdera completamente a visão.” (António Marujo, Público, 29/07/2012)
Durante os seis anos e meio em que viveu “na escuridão”, como dizia, pediu que apontassem sempre na agenda quem o visitava. No final do primeiro ano, sugeriu até que se fizesse no computador uma tabela com todos os nomes, para o ajudar a lembrar os familiares e amigos.
Foi a estes que dirigiu uma breve carta, no dia 8 de maio de 2010, escrita à mão com a ajuda de uma régua especial para invisuais: “Queridos amigos e familiares. Faz agora um ano que fiquei cego. A culpa foi toda minha, desleixei os avisos que os médicos me tinham feito. Tudo se passou em poucos dias. Agora não há nada a fazer. (…) Ao longo deste [ano] tenho tentado adaptar-me a uma nova vida, com a generosa ajuda de muitos familiares e amigos, especialmente da querida Irene, que ficou com a sua vida pessoal e profissional muito afetada. (…) [Houve também] A presença diária de uma escala de ajuda do Nuno e das Teresas e de alguns familiares e amigos que preenchem os dias úteis com leituras e outras ajudas, além disso tenho muitas visitas de amigos e colegas. Também têm sido incansáveis a Ângela e o Luís [e] tenho tido uma aprendizagem semanal de uma técnica da ACAPO que tem sido preciosa. É tudo o que me tem ajudado a viver. A todos com gratidão, Nuno T.P.”
No dia 5 de fevereiro de 2011 interveio na sessão de lançamento do livro de Mário Brochado Coelho Confronto: Memória de uma Cooperativa Cultural, Porto 1966-1972 (Edições Afrontamento): “Estou velho, estou a chegar aos 90 anos. Há órgãos que me estão a falhar. Um deles é a memória, que se está a desfazer como pó, o que me causa um certo sofrimento. Além da perda da visão. Mas estou muito contente, porque esta sessão, tendo sido anunciada como de homenagem à minha pessoa, e não deixando de o ser, fez também justiça a todos aqueles que conhecemos e lutaram naqueles anos difíceis”.
Em julho de 2014 continuava, no entanto, a “ver”, como dizia à neta Alice, a viver no Equador: “Gostei tanto da longa carta que me escreveste há dias que até chorei. (…). A escrita é tão límpida e escorreita que me permitiu ver com toda a clareza como estás bem inserida no meio em que agora vives.”