As circunstâncias são conhecidas. Nessa madrugada do dia 27 houve festa em casa do Nuno, com amigos que se juntaram na quase incredulidade. Os acontecimentos irromperam cheios de força.
Indeciso quanto a aceitar o convite que lhe fora dirigido para discursar no 1º de maio, “em nome dos chamados católicos progressistas” no estádio da FNAC (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, criado em 1935 como um pilar do Estado corporativo), que logo haveria de mudar de nome, acabou por se decidir: “(…) achei que valia a pena vir aqui afirmar a presença dos cristãos que lutaram contra o fascismo, e ao mesmo tempo explicar porquê a designação de católicos progressistas pertence ao passado. (…) Os cristãos que lutaram consequentemente contra o fascismo, bem como aqueles, inumeráveis, a quem nestes dias caíram as escamas dos olhos e passaram a ver claro, têm que assumir positivamente a responsabilidade de uma definição política clara, pois é intervindo activamente no campo político que a sua acção pode ser mais útil na construção, que está à nossa frente, de uma sociedade nova. Nesta perspectiva, os cristãos devem poder escolher, e escolherão naturalmente variadas inserções políticas: alguns já fizeram as suas opções, outros as farão ainda. E é nesta liberdade, misturados com o povo, e integrados nos partidos e movimentos políticos, que os cristãos que querem construir uma sociedade nova terão agora de lutar.” (PEREIRA, Nuno Teotónio. Alocução no Estádio 1º de Maio. Lisboa: documento manuscrito, 1974).
Poucos dias depois, reuniu-se novamente no Centro Nacional de Cultura (CNC) o grupo ligado à Associação Europeia para a Liberdade da Cultura, que semanalmente, durante anos, se encontrara para organizar ações e discutir o movimento cultural e a situação política do país. Num testemunho a propósito dos 50 anos do CNC, o Nuno escreveu:
“Na sequência destes encontros, o grupo reuniu-se novamente na sede do CNC na semana a seguir ao 25 de Abril para fazer o ponto da situação. O ambiente era de euforia. Eu próprio tinha sido libertado da cadeia de Caxias após a vitória do MFA. Todos tínhamos consciência de que se virara uma página da História e de que um futuro radioso os esperava. Fez-se a habitual ronda de intervenções e os sentimentos eram unânimes. Tinha passado o 1º de Maio com a assombrosa manifestação que pôs Portugal inteiro na rua para celebrar a liberdade e aclamar os novos tempos.
Foi então que chegou a vez de Joel Serrão falar, e fê-lo lançando um verdadeiro balde de água fria sobre os presentes. Com a sua sabedoria de historiador, disse para que nos acalmássemos: as revoluções em Portugal provocam momentos de euforia, mas essa euforia era rapidamente arrefecida por fenómenos moderadores e as coisas voltavam ao seu lugar. Evocou 1820 e 1910.
De entre os presentes, acho que ninguém acreditou nas palavras premonitórias de Joel Serrão: era impossível que o entusiasmo desencadeado pelo 25 de Abril fosse sufocado alguma vez.
Na realidade, viveu-se um ano e meio de PREC e sobreveio a normalização. Tinha-se conquistado a liberdade, tinha terminado a guerra em África com a consequente descolonização, instituíra-se a democracia representativa. Mas passados poucos anos as ilusões de uma transformação radical da sociedade portuguesa esboroavam-se. (…)
1820, 1910 e 1974 são datas que certamente ficaram na História e tiveram consequências importantes no curso do País. Mas as transformações a que o 25 de Abril abriu perspectivas eram profundas: tratava-se de construir um país novo onde os pobres fossem menos pobres, onde houvesse uma real igualdade de oportunidades para todos, onde a solidariedade se substituísse ao egoísmo, onde os direitos dos que trabalham fossem soberanos. Em suma, onde a democracia não fosse apenas política, mas económica e social e não apenas representativa, mas também participativa.
Este dia no CNC ficou assim na minha memória.” (PEREIRA Nuno Teotónio. “Um dia na vida do Centro Nacional de Cultura”. CNC: 50 anos de vida. Lisboa, Ed. Centro Nacional de Cultura, 1995).
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