A paisagem mudava abruptamente quando deixávamos Portugal e entrávamos em Espanha. Apesar da aridez da nova paisagem, essa transição trazia uma excitação pela iminente descoberta do novo. Desconhecíamos o roteiro, confiando no nosso capitão, quem sabíamos que nos apresentaria, mais do que outro país, histórias para nós novas sobre o mundo, mas também sobre a sua própria interacção com o mundo e sobre as populações locais e suas construções e expressões artísticas. Com a transição brusca da paisagem, vinha a transição brusca da linguagem: o Avô, nosso capitão, declarava, intransigentemente e contra as minhas queixas que, de ora em diante, se falaria, exclusivamente, castelhano. Eu, ignorante que era então dessa língua vizinha (mal podia adivinhar que um dia viveria num país cuja língua mais falada é o castelhano, que me casaria com alguém que usa o castelhano na sua vida diária e que teria um filho que o usa tal como o seu Pai), embirrava com o Avô o tempo todo. O Avô, sorria com um olhar maroto e teimava na sua decisão. E, em castelhano, apresentou-me um poeta de quem ele muito gostava e de quem, pelo meu Avô e através dele e dessas viagens a Espanha com ele, vim a gostar muito também: Federico Garcia Lorca. Com ele, conhecemos pedras que o Avô fazia falar, conversámos com pessoas desconhecidas com quem o Avô sempre fazia questão de falar, palmilhámos longas caminhadas que só o Avô tinha forças para aguentar. Enquanto eu e o meu irmão Tiago desfalecíamos na beira de um passeio qualquer, o Avô seguia com o seu passo forte e decidido em busca de mais coisas, histórias e pessoas para nos apresentar. Entre as suas muitas dádivas, jamais esquecerei o dia em que descobri que os anjos podiam ser mulheres na igreja de San Antonio de la Florida pintada por Goya. Aí, uma suspeita antiga, se confirmou sobre nós, mulheres, e o nosso lugar no mundo, fortalecendo o legado de confiança, esperança e utopia que o Avô, desde pequenina, foi deixando em mim.
Alice