Fotografia tripla
Existia uma rotina para o tratamento dos prisioneiros políticos à chegada ao Forte de Caxias: após deixarem os pertences na cela do Reduto Norte, eram de imediato conduzidos em carrinha celular ao Reduto Sul; aí eram identificados formalmente, levados ao barbeiro para corte de barba e cabelo, obrigados a ficar sem óculos e sem atacadores dos sapatos (supostamente possíveis instrumentos de suicídio), de seguida fotografados em três posições (frente, lado e três quartos), ficando assim prontos para o primeiro interrogatório, em salas especiais, abobadadas, com acrílico em vez de vidros nas portas e janelas.
Por alguma razão, naquele mês de Novembro de 1973, era tal o frenesim da PIDE que os detidos iam logo conduzidos ao Reduto Sul e à sala de interrogatório. Habitualmente, a sala era despida e, apesar de vasta, tinha como único mobiliário uma pequena mesa de madeira e duas cadeiras, uma para o preso, outra para o polícia interrogador. Naqueles dias, porém, a sala era povoada por uma equipa de torturadores. Seriam uns cinco ou seis, armados com matracas de vários materiais e formatos, umas de madeira, outras de borracha, outras metálicas. Davam gritos ameaçadores. Conheciam bem a técnica eficaz de espancamento: bater em zonas macias do corpo de modo a provocar dores e hematomas (costas, abdómen, nádegas, coxas…), evitando por todos os meios originar fracturas. Como instintivamente o detido procurava defender-se com as mãos, repetidamente insistiam em que as tirasse da frente.
Só depois desse tempo interminável, sem sequer passar pelo barbeiro, o preso era finalmente identificado e fotografado.
Custa a crer que, em casos como o do Nuno Teotónio Pereira, a polícia política se atrevesse a fotografar um preso saído da tortura, com as suas marcas ainda visíveis no rosto e com o semblante carregado de sofrimento. Esse tríptico, com nome e data a tinta branca, haveria de figurar no processo remetido a tribunal, como que a manifestar impunemente que as declarações constantes dos autos tinham sido arrancadas sob tortura.
Luís Moita
Janeiro de 2022
Por causa da tortura a que foi submetido, a primeira visita familiar só teve lugar quase um mês depois da prisão. Mas nesse dia, só os dois filhos mais velhos puderam ir a Caxias, e sob uma grande apreensão: a 16 de dezembro a Helena, então com 16 anos, ainda no liceu, tinha sido presa durante uma reunião de estudantes, na respetiva Associação de Medicina. Das dezenas de jovens identificados, 18 foram escolhidos para ficar detidos. Soubemos, durante a visita, que o Nuno tinha sido advertido pelo barbeiro de que tinha uma filha no mesmo local, mas felizmente os receios de que a PIDE pudesse usar a situação para voltar à tortura de um, ou dos dois, não se verificaram. A Helena foi libertada alguns dias depois, sob uma caução de 1.750$00.
Antes da primeira visita, foi autorizada a correspondência. Num dia de 1972, o Francisco Sousa Tavares tinha ensinado ao Nuno um código que permitiria trocar mensagens invisíveis através das cartas de e para a prisão. O ensaio feito aquando da prisão da Capela do Rato revelou-se equívoco, e não resultou. Examinado o acontecido, clarificou-se o sistema e ele revelou-se fundamental nesta quarta detenção: com muitas horas de escrita engenhosa, foi possível nomear pessoas em risco, que foram advertidas a tempo de se colocarem a salvo.
Nos cinco meses de Caxias, houve alguns momentos marcantes. Soube do Prémio Valmor atribuído ao edifício lisboeta conhecido como “Franjinhas”. Por altura do aniversário, teve a visita do seu Pai. A seguir ao 16 de março, aproveitando uma visita em comum (sem vidro separador), através de uma troca de maços de cigarros, passou-se para dentro todo o comunicado do MFA, pacientemente transcrito para papel bíblia em letra minúscula. E pouco tempo depois, a Luísa declarou como filha recém-nascida uma bebé que entrou com ela para a visita, permitindo ao Nuno conhecer ao vivo (embora ao longe) a sua mais recente afilhada, Naima, filha mais velha de Vitória de Almeida e Sousa e Joaquim Pinto de Andrade.
Em fevereiro de 1974 a Direção-Geral de Segurança remeteu para o 1º Juízo Criminal do Plenário de Lisboa o processo com 12 arguidos, todos envolvidos no grupo do BAC. Esperava-se o início do julgamento para pouco antes ou logo a seguir às férias judiciais do verão. O advogado do Nuno, José Manuel Galvão Teles, previa uma sentença à volta de 12 anos.
CONTEÚDOS RELACIONADOS
– BAC – Boletim Anti-Colonial
– Partilhando experiências fortes (1968-1977)