Atividade política

A libertação dos presos políticos (1984)

O Nuno em entrevista à RTP ao sair de Caxias (27 Abril 1974)

PEREIRA, Nuno Teotónio. “A libertação dos presos políticos”. Original manuscrito, 5 p.
Intervenção na cerimónia comemorativa da libertação dos presos políticos promovida pela Associação 25 de Abril no Forte de Caxias, 27 abr. 1984

 

Faz hoje 10 anos deram-se aqui neste lugar acontecimentos que nunca se apagarão da memória daqueles que os viveram.

A cadeia estava em luta havia já uns 15 dias, pois os presos não se conformavam perante as atitudes repressivas do director. Exigiam-se condições mais humanas no regime prisional. Tinham-nos sido cortados os recreios e nós respondíamos com greve às visitas e preparava-se uma greve da fome. O dia de Páscoa, a 14 de Abril, fora um prenúncio da libertação: bandeiras agitando-se por fora das grades; convívio de toda a cadeia, por meio de mensagens de cela para cela, gritadas pelas janelas.

Sentia-se entretanto que a repressão dava sinais de fraqueza: em vez das represálias brutais que eram da tradição, enviando presos para o isolamento e sujeitando-os a bárbaros espancamentos, ou invadindo as próprias celas, a direcção era obrigada a recorrer a meios mais suaves: a colocação de buzinas de grande potência no exterior, para impedir a comunicação entre as celas. Os manifestos do movimento dos capitães tinham sido introduzidos na cadeia, escapando às malhas do controle. Havia por tudo isso um sentimento quase geral de que algo de novo se passava. Ao deitar, na cela onde me encontrava com mais quatro camaradas, deitávamo-nos em cada noite, perguntando uns aos outros, a gracejar, porque não queríamos embarcar em ilusões: será amanhã que aparecem os capitães?

E uma manhã, não a 25 de Abril, mas a 26, os capitães apareceram.

Na manhã do dia 25 começámos a notar algumas falhas na rotina prisional: não houve consultas médicas, nem jornais, e os guardas não apareciam nos postigos das portas. Depois, sinais análogos viam-se cá fora: o movimento na auto-estrada era quase nulo.

A meio da tarde chegou um destacamento da GNR em uniforme de campanha e tomou posições em redor da cadeia, como para se defenderem de um ataque vindo de fora. Montaram morteiros e metralhadoras. Pesadões e barrigudos, eram bem o símbolo de um poder decrépito que, àquela hora, já havia caído de podre. O silêncio, pesado como chumbo, foi interrompido pelo claxon repetido de um carro na estrada marginal. Pouco depois, a tradução dos sinais Morse era gritado de janela para janela: tinha havido um golpe militar. Mas ficávamos na dúvida: de esquerda ou da extrema-direita? Quase não se dormiu naquela noite em Caxias.

De manhã cedo chega uma força de paraquedistas e os GNR retiram sem resistência. Desfizeram-se então as dúvidas: eram soldados jovens, alegres, e traziam cravos nas fardas. Mas não davam explicações aos presos. Foi preciso que chegassem os fuzileiros, já a meio da manhã, para que soubéssemos finalmente o que se passara: estes já eram bem dos nossos.

Ao fim da manhã chega uma romaria de jornalistas; abriram-se as portas das celas e fomos odos para o pátio, numa indescritível confraternização entre presos, jornalistas e militares. Perante a incredulidade de alguns, os jornalistas apresentavam a prova máxima da queda efectiva do regime: já não havia censura.

Mas faltava ainda a ordem para sermos libertados; voltámos às celas, para aí vivermos as últimas horas de cativeiro: a Junta de Salvação Nacional dava-nos a possibilidade de ainda participar de algum modo no último episódio da luta que foi preciso travar.

“Ou saem todos ou não sai ninguém”, foi a posição tomada unanimemente pela cadeia. Não era de esperar outra. Mas convém sublinhar que esta atitude não era apenas uma manifestação de solidariedade entre os presos, não admitindo qualquer separação entre bons e maus. Era também uma atitude política clara: não admitíamos qualquer descriminação com base nas formas de luta que cada um tinha escolhido, desde a resistência pacífica, à oposição activa e à luta armada.

E convém lembrar aqui que, em ocasião alguma, a luta contra o poder ilegítimo e criminoso utilizou processos que possam de alguma forma classificar-se de terroristas. O terrorismo e os crimes de delito comum estavam do outro lado, que não do nosso; um terrorismo institucionalizado ao nível do Estado; criminosos de delito comum que eram os nossos carcereiros e torturadores. Como terroristas e criminosos foram todos os que, ao longo de décadas, torturaram e assassinaram presos políticos, ou massacraram populações indefesas nas guerras coloniais. E rodos esses, como sabemos, ficaram mais ou menos impunes, em contraste com os escrúpulos legalistas do então Presidente da Junta de Salvação Nacional.

Ao celebrar este acontecimento ocorrido há dez anos, vem a propósito um momento de reflexão: como foi possível ter chegado aquele dia, quem foram afinal os obreiros da libertação que nos fez privilegiados em relação a tantos e tantos que por aqui passaram antes?

Recuando no tempo, temos em primeiro lugar que lembrar a luta corajosa e persistente de gerações sucessivas de anti-fascistas – trabalhadores, intelectuais, estudantes, militares – que mantiveram aceso o facho da liberdade e da justiça no seio do nosso povo. Não podemos esquecer todos os que passaram pelas cadeias antes de nós – aqui por Caxias, pela António Maria Cardoso, pelo Tarrafal, Angra do Heroísmo, Aljube, Porto, Paços de Ferreira, Peniche, pelas prisões nas colónias; os muitos milhares que foram torturados, os que foram assassinados, os que viveram as duríssimas condições da clandestinidade ou do exílio, os que viram a sua vida destruída ao longo de meio século da ditadura fascista. Em eles não teria chegado o 25 de Abril.

Não podemos esquecer também as lutas de libertação dos povos das colónias, que deram origem à guerra colonial, com que o regime, cedendo à sua lógica implacável, assinou a sua sentença de morte. Lutaram pela liberdade dos seus povos mas, ao fazê-lo, deram um contributo incomensurável de sangue e de sofrimento para a nossa própria libertação. Sem essa luta, também não teria chegado o 25 de Abril.

Foi isso que, em grande parte, levou à formação do MFA, que derrubou a ditadura, tornando possível a libertação do povo português da opressão de 48 anos. Foram eles, os militares do MFA, que fizeram afinal o 25 de Abril.

Mas, nos últimos momentos, o factor decisivo para a libertação dos presos políticos, total e incondicional, foi a força do povo aqui reunido, que obrigou a Junta de Salvação Nacional a abrir de par em par as portas desta cadeia. Foi este talvez o primeiro episódio que mostrou que o 25 de Abril não era apenas um golpe militar, mas também um espantoso movimento popular.

Antes de terminar, uma última referência a este acto que aqui nos juntou. A Associação 25 de Abril fez muito bem em tê-lo promovido, para celebrarmos a alegria da nossa libertação, que a foi também do nosso povo. A memória daqueles muitos que por aqui passaram e aqui sofreram é respeitada, porque este acto nada tem a ver com as comemorações oficiais, que foram uma afronta para todos aqueles que, de longe ou de perto, tornaram possível o 25 de Abril.

Bem haja, portanto, a Associação 25 de Abril.


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