PEREIRA, Nuno Teotónio. “Alocução no Estádio 1º de Maio”. Lisboa: 1 maio 1974.
Original de rascunho, 5 p. e cópia de texto final, 4 p., manuscritos
Fui convidado a ser um dos oradores nesta assembleia histórica, em nome dos chamados católicos progressistas. Entendi dizer que não vinha e expliquei porquê: esta designação deve ficar enterrada com o fascismo.
Mas, reflectindo melhor, achei que valia a pena vir aqui afirmar a presença dos cristãos que lutaram contra o fascismo, e ao mesmo tempo explicar porquê a designação de católicos progressistas pertence ao passado.
Ela apareceu a rotular (sempre com equívocos e ambiguidades, aliás) as variadas e sucessivas intervenções políticas ou para-políticas que grupos de cristãos vieram fazendo nos últimos quinze anos da longa noite fascista, motivados pelas exigências de justiça, verdade e liberdade do Evangelho, contra as inumeráveis formas de opressão que esmagavam o povo português.
Porque o aparelho eclesiástico no seu conjunto , e muito em especial a hierarquia da Igreja Católica , eram um dos mais importantes sustentáculos dessa mesma opressão, esses cristãos tinham de ter um rótulo que claramente os distinguisse.
Mas isso pertence já ao passado. Os cristãos que lutaram consequentemente contra o fascismo, bem como aqueles, inumeráveis, a quem nestes dias caíram as escamas dos olhos e passaram a ver claro, têm neste momento que assumir positivamente a responsabilidade de uma definição política clara, pois é intervindo activamente no campo político que a sua acção pode ser mais útil na construção, que está à nossa frente, de uma sociedade nova.
Nesta perspectiva, os cristãos devem poder escolher, e escolherão naturalmente variadas inserções políticas: alguns já fizeram as suas opções, outros as farão ainda. E é nesta liberdade, misturados com o povo, e integrados nos partidos e movimentos políticos, que os cristãos que querem construir uma sociedade nova terão agora de lutar.
Por este motivo, “católicos progressistas”, “cristãos anti-fascistas”, tudo isso pertence ao passado. Os mesmos estímulos, as mesmas motivações, as mesmas exigências de liberdade, de justiça, de fraternidade, vão conduzi-los agora a incorporar-se com todos os portugueses na luta que se abre à nossa frente.
Os cristãos terão um grande papel a desempenhar na construção de um socialismo completo e total: um socialismo amputado ou incompleto, não é socialismo.
Vamos construir uma sociedade onde não haja mais aparelhos repressivos onde não haja polícias, seja qual for a sua cor; onde não haja entraves à liberdade de pensamento; onde a realização de uma vida pessoal passe pela construção dessa sociedade nova.
Essa sociedade será a sociedade das classes trabalhadoras: a elas devem pertencer os meios de produção, por elas deve ser orientado o aparelho do Estado. Igualmente aí temos de ser ambiciosos: o poder para o Povo, o poder para os operários, o poder para os camponeses. A todos os níveis, em todos os sectores, em todos os escalões, esse poder começa a ser conquistado: ele tem de ser conquistado cada vez mais, e desde já. O socialismo que queremos construir será um socialismo que aproveite as largas possibilidades que se abrem à nossa frente.
Mas mais ainda: essa sociedade nova, esse socialismo que vamos fazer no nosso país, tem de ser enquadrado na luta universal, nas lutas de libertação de todos os povos, e em primeiro lugar nas lutas de libertação dos povos nossos irmãos das antigas colónias portuguesas.
Temos que fazer o cessar-fogo imediato e a abertura de negociações, e temos de acreditar que, do nosso passado de exploradores e carrascos dos povos africanos, podemos agora trabalhar fraternalmente com eles.
Achei que valia a pena vir aqui, em nome de uma etiqueta do passado, para participar neste início de uma marcha gloriosa, virada para o futuro, para a construção de uma sociedade nova, através de uma revolução radical, quer dizer, uma revolução que vá à raiz dos problemas e das situações.
Nós devemos desejar isso, nós temos que lutar por isso, não nos podemos contentar com meias soluções: nós temos de ir ate ao fim!
Nota do autor: Redigido no atelier da Rua da Alegria, a seguir à libertação de Caxias em 26/27 Abril 74.
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