Atividade política Igreja católica

O movimento cristão contra a guerra colonial (1994)

Capa da publicação em livro (Editora Afrontamento, 1975) dos “7 cadernos sobre a guerra colonial” elaborados clandestinamente em 1971 pelo grupo que viria a criar o Boletim Anti-Colonial (BAC)

PEREIRA, Nuno Teotónio. “O movimento cristão contra a guerra colonial”. Vértice, set.-out. 1994. Existe original dactilografado, 5 p.
Comunicação em colóquio sobre o 25 de Abril.

 

1. O Estado Novo de Oliveira Salazar nascera de uma clara aliança entre a hierarquia militar, as forças mais conservadoras do País e a Igreja Católica. Desejosa de uma desforra depois da Separação da Igreja e do Estado decretada pela República após 1910, a Igreja empenhou-se na criação de um regime autoritário, baseado na Lei e na Ordem, e em que os chamados valores tradicionais fossem defendidos, tal como propunha Salazar. As poucas vezes que se ergueram contra esta aliança, como o Centro Católico orientado por Lino Neto e o padre Alves Correia, foram sendo silenciados ou compelidos ao exílio.

É neste contexto que se desenvolve a política chamada ultramarina da ditadura salazarista, proclamando a unidade indissolúvel dos territórios de Aquém e Além Mar e rejeitando qualquer tipo de independência, como começou a ser reclamado pela ONU nos anos a seguir à 2ª guerra mundial. Nem sequer se admitiu a ideia de uma simples autonomia dos territórios coloniais como tardiamente veio a ser proposta por Spínola. A censura à Imprensa, a poderosa PIDE, e o próprio aparelho eclesiástico se encarregavam de impedir que vozes discordantes se manifestassem.

A Igreja hierárquica manteve-se neste aspecto sempre fiel ao pacto que fizera com Salazar, tendo sido docilmente utilizada como um dos elementos mais importantes da política colonial do regime. Nas missões católicas, ensinava-se com convicção o Portugal uno e indivisível e inculcava-se nas populações locais uma situação de inferioridade face aos europeus e à Metrópole. Era neste aspecto notório o contraste com as missões protestantes, que formaram uma boa parte dos quadros políticos que mais tarde vieram a lutar pela independência. Exemplo elucidativo era o que acontecia com o Patriarca de Goa, numa Igreja de ricas tradições autóctones enraizada na população, e dispondo de um clero prestigiado, que foi sempre de origem europeia até ao fim da dominação portuguesa. E bem assim o facto de, contrariamente ao que aconteceu nos primórdios da colonização, nunca chegou a haver um único bispo nativo nas dioceses do Ultramar. A troco de privilégios consideráveis, como o apoio financeiro às missões, a Igreja deixava-se assim subordinar à ditadura, com a qual de resto as convicções e os interesses da hierarquia se identificavam. Basta dizer que a nomeação dos bispos, quer para as dioceses da Metrópole, quer para as das colónias, tinha de ter o beneplácito do Governo.

2. Para compreender a progressiva tomada de consciência de muitos católicos relativamente ao problema das colónias e à guerra colonial é preciso dizer que tal fenómeno se vai desenvolvendo no quadro de um movimento de oposição ao regime salazarista no seio da própria Igreja.

Este movimento pode dizer-se que desponta em 1958 após a campanha eleitoral de Humberto Delgado para a Presidência da República. Na sequência do processo eleitoral, como sempre viciado, o bispo do Porto, António Ferreira Gomes, escreve uma carta ao ditador, marcando distância em relação ao regime e colocando questões embaraçosas no campo político e social, o que lhe valeu um exílio prolongado, sem a mínima solidariedade da parte da hierarquia. A voz do prelado não era uma voz isolada: nessa altura, para muitos católicos, se ounha a questão de uma profunda discordância com o Estado Novo, como atestam os abaixo-assinados redigidos por Francisco Lino Neto e assinados por dezenas de católicos, entre os quais sacerdotes, sobre as “Relações entre a Igreja e o Estado e a Liberdade dos Católicos” e “Os serviços de repressão do regime”.

Nos primeiros anos [19]60 inicia-se a guerra colonial (Angola 1961, Guiné 1963, Moçambique 1964). Esta situação produz uma aceleração do despertar de consciências face ao problema da política ultramarina do governo. Este, inflexível relativamente às propostas de negociação apresentadas pelos movimentos de libertação e às recomendações da ONU, decide-se pela repressão violenta das aspirações à independência dos povos subjugados. Muitos católicos, animados pelas claras tomadas de posição de João XXIII, nomeadamente na encíclica “Pacem in Terris”, sobre o direito dos povos à autodeterminação, colocam-se em franca oposição ao regime e iniciam uma luta organizada através de sucessivas iniciativas, e que foi alastrando.

3. Neste contexto, algumas circunstâncias favoreceram essa tomada de consciência. Uma delas foi o papel desempenhado por uma boa parte da Igreja Católica em França e na Europa face à guerra da Argélia, defendendo o direito deste país à independência e condenando uma guerra injusta contra essa aspiração do povo argelino. Jornais e revistas católicos que defendiam esta posição chegam a Portugal e oda uma experiência de luta era transmitida e absorvida com atenção. “Esprit”, “La Lettre”, “Témoignage Chrétien”, Informations Catholiques Internationales” tornam-se leitura assídua para todos os católicos que, em número crescente, unham em causa a continuação da guerra colonial.

Outra circunstância foi o exílio para Portugal de nove padres angolanos, logo em 1961, onde [ficaram] com residência fixa, vigiados de perto pela Pide em seminários e casas religiosas. Entre eles contava-se Joaquim Pinto de Andrade, já antes preso e que veio a ser julgado e condenado em Tribunal Plenário, e Cónego Manuel Joaquim das Neves, organizador da revolta do 4 de Fevereiro em Luanda, com a intenção de libertar presos políticos da polícia colonialista. Alexandre Nascimento, hoje Cardeal de Luanda e Franklin da Costa, arcebispo de Lubango, encontravam-se também entre aqueles. A sua presença em Portugal, ainda que silenciada e silenciosa, sem que recebessem qualquer gesto de solidariedade or parte da hierarquia católica, impressionou fortemente todos aqueles que dela foram tomando conhecimento, acabando por converter-se num testemunho eloquente de que não eram só os movimentos marxistas que aspiravam à independência das colónias.

Uma terceira circunstância foram as mobilizações de oficiais e soldados para a guerra, que atingiam todas as camadas da população e provocaram a angústia em muitas famílias, pondo em questão a necessidade e a justiça duma guerra que se vai prolongando por tempo indeterminado. A opinião católica não era imune a este processo, que levou muitos jovens a conquistarem uma consciência políica que de outro modo talvez não chegassem a adquirir.

4. Insensíveis a este movimento das consciências, as posições oficiais da Igreja Católica permaneciam inalteráveis no seu apoio à política colonial do regime. Mas um grupo cada vez maior de sacerdotes, tanto do clero regular como ecular, em círculos restritos, comungavam das inquietações de muitos fiéis e começaram a colaborar em diversas iniciativas que iam surgindo, muitas vezes numa atitude inédita at+e enão de abertura a outros sectores da opinião.

Entre aqueles é de citar o lançamento da revista “O Tempo e o Modo”, dirigida por Alçada Baptista e Benard da Costa, de clara inspiração católica, mas aberta a correntes de opinião diferentes, e que constituiu um polo de aglutinação das correntes progressistas ao logo de toda a década de [19]60. Paralelamente surgiu, em 1963, o jornal clandestino “Direito à Informação”, que divulgava acontecimentos que a férrea censura política não permitia que chegassem à opinião pública, e que dedicava o seu primeiro número ao caso dos padres patriotas angolanos exilados em Portugal. É ainda de referir a criação das cooperativas culturais “Pragma” (encerrada em 1967 pela Pide) e “Confronto”, sediadas respectivamente em Lisboa e no Porto, e que através de acções de formação e divulgação muito contribuíram para dar a conhecer correntes de opinião que se opunham à ditadura e à guerra colonial, à luz dos documentos do Concílio Vaticano II e das tomadas de posição da Igreja de Roma, que defendiam o direito dos povos à autodeterminação e por isso claramente em contradição com as posições da hierarquia portuguesa. A guerra colonial, no contexto da luta contra contra a opressão e a repressão, cada vez assumia mais claramente a natureza de problema central que se punha à sociedade portuguesa e que veio a desembocar no 25 de Abril.

5. Papel determinante neste processo foram as declarações e abaixo-assinados, os quais eram divulgados em exemplares policopiados, tal como se fizera para a carta do Bispo do Porto, de maneira que os duplicadores (as máquinas de fotocópias estavam então em fase incipiente) constituíam um instrumento de trabalho insubstituível. Por vezes chegaram a ser utilizados, por conivência dos párocos, os aparelhos existentes em igrejas. Deles foi feita uma recensão pelo Padre Felicidade Alves no seu livro “Católicos e Política”, ainda editado no período marcelista.

Em 1965, um grupo de missionários em Moçambique apela pela primeira vez ao direito à autodeterminação dos povos, afirmando que isso está em consonância com os ensinamentos da Igreja. Nesse mesmo ano, a propósito de eleições para a Assembleia Nacional, é divulgado o importante manifesto dos 101, em que se questiona abertamente a política ultramarina do governo, impondo uma guerra que não é assumida pelo País. Nele se pede um diálogo livre e aberto entre os portugueses e os povos ultramarinos para resolver o problema de uma guerra sem sentido. Argumenta-se com João XXIII e Paulo VI, que apelam à progressiva realização do acesso à soberania dos povos de África.

6. Na madrugada de 1 e Janeiro de 1969 celebra-se mais uma vez entre os católicos o Dia Mundial da Paz. No Porto é distribuído às portas das igrejas um manifesto pondo em questão a guerra em África. Em Lisboa é organizada uma vigília na igreja de S. Domingos, que a Pide teve o bom senso de não reprimir. Nela se ouvem numerosos testemunhos contra a guerra e se canta o poema de Sophia de Mello Breyner, escrito propositadamente para o efeito, “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, e se assume publicamente o compromisso da procura efectiva da Paz frente à guerra de África.

Finalmente, e também como preparação para o Dia Mundial da Paz, é ocupada nos últimos dias de Dezembro de 1972 a Capela do Rato, para uma discussão pública sobre a guerra colonial. A concorrência de pessoas é muito grande, apesar dos riscos que corriam. Efectivamente na noite do dia 30 a capela é invadida pela polícia de choque, acompanhada de cães-polícia, e que prendem todos os assistentes. Alguns dos considerados cabecilhas são enviados para Caxias e libertados 15 dias depois. Este acontecimento, que pela sua repercussão pública não poude ser silenciado pela censura, teve até eco na Assembleia Nacional, tendo-se distinguido o deputado pela ala liberal, Miller Guerra, que defendeu o direito ao debate dos manifestantes.

Ao longo destes últimos anos foram distribuídos numerosos textos clandestinos onde se criticava abertamente a guerra colonial. Além do “Direito à Informação”, foram divulgados os “7 Cadernos sobre a guerra colonial” e os “Boletim Anti-Colonial”, publicados ambos depois do 25 de Abril pela editora Afrontamento. Foram ainda publicados os Cadernos GEDOC, sob a direcção do Padre Felicidade Alves, que na sua paróquia de Belém tinha denunciado a guerra, tendo sido depois suspenso pelo Cardeal Cerejeira.

Foram estabelecidas relações com as organizações que em vários países da Europa apoiavam os movimentos de libertação, trocando-se informações, ao mesmo tempo que se efectuavam reuniões clandestinas em diversos pontos do País, no sentido de congregar esforços na luta contra a guerra.

7. Os acontecimentos durante o ano de 1973 favoreceram o alastramento da tomada de consciência dos meios católicos contra a guerra colonial. Os massacres de Wyriamu, em Moçambique, foram denunciados pelas congregações missionárias dos Padres Brancos e dos Combonianos e tiveram repercussão internacional, ao mesmo tempo que o Bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto, era compelido ao exílio.

A acção desassombrada do Padre Mário de Oliveira, pároco de Macieira da Lixa, antigo capelaão militar em Moçambique [Guiné], por duas vezes levado a julgamento e uma delas condenado, não pode ser esquecida. Ele foi uma das vozes mais corajosas que se levantaram contra o poder opressivo da ditadura e que mais contribuíram para a vaga de fundo que tornou possível o 25 de Abril.