Está agora na fase de arranque o Programa Especial de Realojamento (PER) do ministro Ferreira do Amaral. Há 20 anos, após o 25 de Abril, um programa com finalidades idênticas, mas de características completamente diferentes, foi lançado pelo 1º Governo Provisório pela mão do então Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo Nuno Portas. Esse programa dava pelo nome de SAAL – Serviço de Apoio Ambulatório Local, e foi criado no âmbito do então Fundo de Fomento da Habitação em Junho de 1974. No despacho que o promoveu dizia-se que era dirigido aos estratos mais insolventes, mas com organização interna que permitia o seu imediato envolvimento em “auto-soluções”, com apoio estatal em terreno, infraestruturas, técnica e financiamento.
O SAAL baseava-e assim numa filosofia de intervenção do Estado em que se criticava implicitamente os meios convencionais até então usados com pouco ou nenhum sucesso na resolução do problema da habitação, nomeadamente no que respeitava à eliminação de barracas e ilhas. Esta filosofia estava então na ordem do dia nos meios técnicos internacionais, ligada a experiências no Terceiro Mundo, especialmente na América Latina. Pressupunha-se que o protagonismo das acções a desenvolver era desempenhado pelas organizações populares de base, tendo a intervenção do Estado um papel de apoio supletivo, embora indispensável. Os verdadeiros motores do processo eram a iniciativa e o dinamismo das populações.
Efectivamente, no Portugal pós-25 de Abril estavam criadas as condições para esta filosofia poder ser aplicada em larga escala e com grande intensidade. É assim que a criação do SAAL surge como resposta a uma intensa movimentação popular nos bairros degradados, com a eleição de Comissões de Moradores, reclamando o fim das barracas e o direito a uma habitação digna. Ao mesmo tempo, os técnicos ligados aos departamentos oficiais do sector também criticavam os métodos burocráticos e tecnicistas em que funcionavam as instituições do Estado, reclamando a participação no processo por parte das populações e dos órgãos e entidades locais.
Ao mesmo tempo que a movimentação se generalizava a todos os bairros de lata e aglomerados de ilhas, de Norte a Sul do País, com especial incidência nas áreas de Lisboa, Porto e no Algarve, sob o lema “Casas sim, barracas não”, eram criadas dezenas de brigadas de apoio técnico. Tratava-se de equipas pluridisciplinares, integrando arquitectos, engenheiros das várias especialidades, assistentes sociais, sociólogos, juristas, topógrafos, etc., às quais competia a realização de inquéritos e levantamentos e posteriormente de projectos.
O entusiasmo era transbordante. As populações, cansadas de promessas e de uma vida em condições infra-humanas, viam chegar o dia em que podiam ter uma verdadeira casa para habitar; os técnicos viam realizada a possibilidade de uma afirmação directa do interesse social da sua profissão, libertos de peias burocráticas, de hierarquias autocráticas e de esquemas abstratos, metendo profundamente as mãos na massa.
Recorrendo a processos de expropriação expeditos que a legislação permitia, eram obtidos os terrenos necessários às operações de realojamento, não longe dos locais de habitação, e muitas vezes na sua proximidade imediata, respondendo à reivindicação das populações de não serem atiradas para longe. A celeridade era a palavra de ordem: em poucos meses estavam elaborados dezenas de projectos, disponíveis os terrenos e preparavam-se as empreitadas de construção. Mas tudo era discutido com os moradores, muitas vezes em movimentados plenários com salas a transbordar. O Estado, para além de assegurar o pagamento das brigadas técnicas, financiava a própria construção. Era a democracia directa e participativa na sua forma mais pujante.
No Porto, a então Escola de Belas Artes, entregava-se ao processo, com professores e alunos integrando as equipas técnicas. Alguns dos arquitectos hoje mais prestigiados participavam nas operações; entre outros, Siza Vieira, Alcino Soutinho e Pedro Ramalho. Como em Lisboa, Hestnes Ferreira, Manuel Vicente, Silva Dias e Artur Rosa. A EPUL envolvia-se também no processo.
Como forma de participação activa das populações, o processo SAAL era um movimento muito politizado, sofrendo com isso dissabores e ganhando inimigos, sendo olhado com desconfiança pelos partidos parlamentares. A sede do SAAL Norte é destruída por uma bomba em Janeiro de 1976, no âmbito dos atentados bombistas que então começavam a dar-se um pouco por todo o Norte. Mas todas as intervenções se mantêm em actividade, sendo inauguradas as primeiras casas. Mas com a sua integração no processo revolucionário, o SAAL tinha os dias contados após a formação do VI Governo Provisório. Efectivamente, em Outubro de 1976 o serviço é extinto pelo ministro Eduardo Pereira, demitindo-se o Estado das suas responsabilidades e passando para as Câmaras Municipais o acompanhamento do processo. As estruturas de apoio foram dissolvidas, as equipas técnicas desmanteladas, os financiamentos pararam, uma enorme desilusão instalou-se nas populações e nos técnicos que para elas trabalhavam.
Segundo o relatório da sindicância que foi feito no SAAL após a sua extinção, e que só foi tornado público em Maio de 1977, por alegados desvios no seu funcionamento, alude-se no entanto ao que o processo SAAL teve de positivo.
À data da sua extinção, o SAAL apresentava os primeiros resultados concretos de dois anos de intensa actividade, com a inauguração de casas. O Livro Branco do SAAL, publicado por um grupo de técnicos e funcionários após a extinção, dá conta dos resultados obtidos:
Fogos novos construídos: 136; fogos recuperados: 24; fogos novos a iniciar no 1º trimestre de 1977: 5.061; recuperações a iniciar no mesmo período: 545; número de famílias interessadas nas operações SAAL: 125.000.
O SAAL foi assim um processo morto à nascença, justamente quando os seus resultados práticos estavam a ter início. O endôsso das operações aos Municípios traduziu-se quase geralmente a uma suspensão de todo o processo; apenas alguns bairros vieram a ser iniciados após a extinção, um deles, nas Olaias, durante o breve governo Pintasilgo.
Foi assim uma oportunidade histórica perdida para a erradicação das barracas no nosso país. Após este assassinato passaram-se dezoito anos de quase inactividade neste domínio, apenas se assinalando como positivas as acções de alguns municípios, como os de Lisboa, Oeiras e Matosinhos, neste último caso mais virados para o apoio às cooperativas de habitação. E não deixa de ser curioso que vários bairros de Oeiras tenham sido construídos em terrenos destinados ao SAAL.
Ao fazer 20 anos sobre a criação do SAAL, e no arranque do programa lançado pelo actual governo [últmo governo Cavaco Silva, 1991-1995], dentro dos moldes convencionais que o SAAL pôs em causa, é justo e útil lembrar esta experiência pioneira de um processo altamente participado em que populações e técnicos se deram as mãos.
Com a instauração da democracia representativa em Portugal, foi deitado para o lixo, como indesejável, tudo o que tinha a ver com a participação das populações no processo desencadeado a seguir ao 25 de Abril. Assim, a democracia participativa é hoje uma utopia, embora seja reclamada por personalidades insuspeitas como o próprio Presidente da República [Mário Soares]. Mas pode ser que alguns municípios, mais atentos às aspirações da população, colham, na implementação do Programa de Erradicação de Barracas, alguns dos ensinamentos do SAAL, para que as operações de realojamento não sigam o processo burocrático e tecnicista que os profissionais ligados ao sector denunciavam há 20 anos.
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Quando a erradicação das barracas se chamava SAAL”. Público, 13 jun. 1994, p. 52-53.
Republicado em Tempos, Lugares, Pessoas. S.l.: Contemporânea e Jornal Público, 1996, pp. 32-35