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Combates contra o fascismo e pelo património

Nuno Teotónio Pereira representou para mim, enquanto jovem universitário do Curso de História de 1968-1973, um novo tipo de cidadão oposicionista ao regime fascista, quer na versão de Oliveira Salazar, quer na do seu «delfim» Marcelo Caetano, que nascera no seio das classes do poder. A sua luta andava associada à «revolta dos arquitectos» contra o uso da arquitectura pelo poder político e ainda à pesquisa de outros «eus» arquitectónicos disseminados pelo país, na costa atlântica, na bacia hidrográfica do Tejo, na rusticidade das aldeias e do campo interior, na lezíria ribatejana ou na raia fronteiriça. O seu papel no Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa ou aos acontecimentos ocorridos na Capela do Rato, em Lisboa em 1972 eram uma esperança de mudanças no país. A sua libertação de Caxias, no dia seguinte ao 25 de Abril foi para mim um sinal da queda do regime, para oficial miliciano localizado em Coimbra, no CICA 3, frente à Televisão, ávido de notícias do MFA.

Comissão Organizadora e logótipo do TCHD.

No entanto, só três anos depois conheci pessoalmente Nuno Teotónio Pereira, durante o Tribunal Cívico Humberto Delgado, quando muitos portugueses deram conta que afinal a polícia política do fascismo e da «primavera marcelista» tinham sido libertos da prisão sem qualquer julgamento, num regime que evoluíra para uma democracia representativa, mas que começara a conviver com os fantasmas de outrora. Neste Tribunal cívico, de características populares, o arquitecto Teotónio Pereira pertencia à Comissão Organizadora e era membro do júri, o qual era composto por «pessoas idóneas, cuja autoridade moral para desempenhar tal tarefa lhes advinha da sua posição enquanto antifascistas” (TCHD, Boletim n.º 4, Junho de 1978, p. 4), embora fossem apenas representantes da opinião pública, da vox populi que se formara entre o 25 de Abril de 1974 e Maio de 1978. As sessões públicas de julgamento dos PIDES e do Fascismo português, realizaram na Voz do Operário, em 27 e 28 de Maio e 10 de Junho de 1978. Nuno Teotónio Pereira ouviu-me enquanto um dos relatores que apresentou por incumbência e conhecimento vivido um dos primeiros estudos sobre a história, a organização e os quadros da PIDE/DGS, seguida de outros depoimentos e estudos proferidos por antigos milicianos que tinham contribuído para a extinção da polícia política do regime fascista. Aquilo que nós estávamos a fazer na Voz do Operário, quer relatores, quer organizadores, quer júri, perante uma sala repleta de gente, era algo que o 25 de Novembro de 1975 não tinha ultimado, três anos passados sobre o 25 de Abril. Ali o júri teve ocasião de condenar – sem a força de um Julgamento de Nuremberga – as estruturas policiais repressivas do Estado Novo, aquelas que tinham sido libertadas sem qualquer julgamento judicial ou que tinham fugido para o estrangeiro na sequência da Revolução Portuguesa de 1974 ou fugido da prisão de Alcoentre num dos dias mais complicados do Verão Quente de 1975.

Júri do Tribunal Cívico Humberto Delgado. Nuno Teotónio Pereira é o terceiro do lado esquerdo.

Entre 1977 e 1981, fui assistente do Curso de História na Faculdade de Letras de Lisboa e resolvi chamar a atenção dos alunos da cadeira de Revolução Industrial do Curso de História para uma nova disciplina científica – a arqueologia industrial e para a necessidade de preservar o património industrial, tal como estava a acontecer e a desenvolver-se na Grã-Bretanha, na França, na Bélgica e na Suíça. Os alunos e o professor da cadeira organizaram uma exposição sobre os Aspectos da Revolução e Civilização Industrial (1979), em que participaram os alunos, nomeadamente a aluna Luísa Teotónio Pereira. Este acontecimento escolar aproximou-me do Nuno e teve um efeito significativo no nosso relacionamento, pois tanto a Luísa, como o Nuno como a sua jovem mulher, Irene Buarque inscreveram-se na Associação de Arqueologia Industrial da Região de Lisboa, cerca de um ano depois, em Março-Abril de 1980.

O interesse de Nuno Teotónio Pereira pelas estruturas e edifícios industriais que integravam, desde décadas de 60 e de 70 do século XX, o património industrial, vinha de longe. Recorde-se os apontamentos impressos na Arquitectura Popular Portuguesa (1961) sobre os moinhos de maré do Mar da Palha, sobre as diversas tipologias de moinhos de vento e as embarcações e habitações típicas dos avieiros do rio Tejo, sobre os telheiros de produção de tijolo manual, as pinceladas sobre os bairros da habitação do proletariado rural dos latifúndios ribatejanos e a arquitectura dos fornos de cal ou das salinas do país, de que ele se responsabilizara a inventariar com outros dois arquitectos da equipa da Zona 3. Para além disso, Teotónio Pereira tinha uma paixão especial pela arquitectura industrial que advinha quer dos projectos arquitectónicos que desenhou para encomendas de fábricas do período do Movimento Moderno, quer pelas suas expressões históricas mais antigas, relacionadas com a «Era das Manufacturas» ou derivadas do impacto social da industrialização oitocentista ou novecentista. Recordem-se os seus projectos para a nova zona industrial de Lisboa, que foi levantada a Oriente, nos Olivais.

Contudo, enquanto se desenrolava o movimento para a criação da APAI, corria na Faculdade de Letras um outro acontecimento que marcou as nossas relações pessoais. Em 1978, criara-se uma comissão promotora e organizadora das Jornadas de Estudo sobre o Fascismo. Nessa altura um grupo grande de assistentes eram uma espécie de «capitães» de Abril do ensino universitário, pugnando pela renovação pedagógica, pela participação dos alunos nos órgãos pedagógicos e pelo verdadeiro espírito universitário de relacionamento entre alunos e professores, que aliás remontava às lutas académicas dos anos 60. As Jornadas deram origem a uma exposição sobre o Fascismo em Portugal e a um colóquio que ocorreu na Faculdade também em Março de 1980, no mesmo mês em que foi fundada a AAIRL.

Rosto do livro onde está publicado um primeiro estudo sobre a arquitectura do fascismo em Portugal da autoria do Nuno e do José Manuel Fernandes

Nuno Teotónio Pereira participou no colóquio, onde apresentou com José Manuel Fernandes, uma comunicação sobre «A Arquitectura do Fascismo em Portugal»1, um estudo pioneiro que rasgou horizontes sobre as diferentes tipologias arquitectónicas construídas pelo Estado Novo, e marcou o arranque dos estudos sobre a arquitectura portuguesa deste período, entre 1926 e o fim do salazarismo, estudos que vieram a ser abordados mais tarde, agora associados às correntes estéticas do Movimento Moderno, à arquitetura denominada do «Português Suave» e às suas diferentes formas coloniais e ainda a outros modelos mais híbridos e influenciados quer pelo apego patriótico à «casa portuguesa» e ao nacionalismo da autarcia, quer às correntes exógenas da arquitectura alemã e italiana da época, quer ainda à «política do espírito», enquanto ideologia propalada pelo SNI de António Ferro.

Mas ainda houve outra conjuntura que se mostrou propícia ao maior relacionamento com Nuno Teotónio Pereira. Entre 1978 e 1986 estava no seu auge o movimento associativo de associações de defesa do património cultural. A AAIRL integrou-se também nesse movimento de modo pró-activo, o que lhe permitiu estabelecer relações interassociativas bastante profundas, como associações, movimentos culturais e iniciativas municipais em todo o país. Depois de Alcobaça (1978) e de Santarém (Janeiro de 1980) é a vez do II Encontro das Associações em Braga, onde a AAIRL já participou, e o III Encontro e em Torres Vedras (1983), outro em Setúbal (1986) e ainda em Viseu (1989). Nas sessões da AAIRL/APAI o movimento associativo era constantemente evocado e Teotónio Pereira defendia a participação associativa na mudança que se operava no redimensionamento e no aprofundamento do património cultural português, tanto a nível nacional, como local e todas as novas estratégias de combate que acabaram por se reflectir na reorganização dos serviços do património, incluindo a defesa de que a conservação e restauro do património devia ser apenas assegurada por arquitectos, em vez de desenhadores, práticos de construção ou engenheiros. As novas problemáticas do património urbano e dos novos patrimónios permitiram a participação de Nuno Teotónio Pereira em colóquios e conferências comuns, como foi a que se realizou em Castelo de Vide, em 1986, algumas das quais tendo como colega de mesa, o autor deste texto.

O património, a sua salvaguarda e conservação e o património arquitectónico passaram a fazer parte integrante da sua mundividência crítica e interventiva, traduzindo-se em muitas colaborações, em jornais e revistas, nomeadamente na revista Pedra & Cal, editada pela GEcORPA – Grémio do Património, onde chegou a ter uma página em cada número publicado.

Jorge Custódio
29 de Janeiro de 2022

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