Atividade política Igreja católica

Partilhando experiências fortes (1968-1977)

Quando regressámos a Argel, a convite da Frente POLISARIO (Frente Popular para a Libertação de Saguia El Hamra e Rio de Oro), o Nuno Teotónio Pereira e eu ficámos instalados no Hotel Aletti, uma verdadeira jóia, vestígio da

colonização francesa, um edifício de art deco, de mobiliário e serviço requintados. Ao almoço pedimos cuscuz como seria aconselhável em tal ambiente e não nos cansámos de admirar a profusão de peças de autêntica baixela em que fomos servidos: várias travessas, terrinas de diferentes tamanhos, molheiras, talheres em quantidade… Foi um bom contraste com a austeridade dos dias de deserto e das refeições que lá comíamos! Aproveitámos a presença na capital para encontrar pessoas que nos tinham recomendado, designadamente Miguel Arraes, grande figura de opositor brasileiro então no exílio, que fora prefeito do Recife e governador de Pernambuco, apoiando os sindicatos e as associações comunitárias. Ali em Argel continuava a acção política e dois anos mais tarde quando a ditadura brasileira decretou a amnistia e os exilados puderam regressar, 50.000 pessoas esperavam triunfalmente Miguel Arraes.

O que nos levava à Argélia naquele mês de Fevereiro de 1977 era o primeiro aniversário da proclamação da independência da RASD – República Árabe Saharauí Democrática. Tínhamos feito uma longa viagem, integrados numa coluna de doze viaturas a atravessar o deserto a caminho de campos de refugiados, não muito longe do teatro de operações de uma guerra desigual. A certo momento reparámos que o conta-quilómetros no tablier do nosso Land Rover estava tapado com adesivo. A explicação só podia ser uma: por razões de segurança não queriam que nós soubéssemos as distâncias que percorríamos. A medida pareceu-nos um pouco inútil, em tempo de satélites-espiões. E não perguntem como se orientavam os nossos condutores, na total ausência, já não digo de estradas, mas ao menos uma vaga pista ou sinais que nos pudessem orientar na vastidão a perder de vista. Estávamos em território argelino, próximo da fronteira com Marrocos. Dirigíamo-nos aos arredores de Tindouf, onde o sul da Argélia tocava os antigos territórios do Saguia-el-Hamra e Rio de Ouro, colonizados por Espanha e por ela abandonados por altura da morte de Franco, sem saber o que fazer aos restos do império. Designava-se Sahara Ocidental e a população, organizada pela Frente POLISARIO, tinha-se rebelado contra a ocupação marroquina. Apesar de população pobre, a região tinha importantes riquezas, muito peixe nas suas águas e muito fosfato nas suas terras. O Nuno ia em representação do MES e eu numa dupla representação, do CIDAC e do Movimento de Unidade Popular. Além de nós estavam presentes companheiros solidários de várias nacionalidades, italianos, espanhóis, guineenses, palestinos, suíços, líbios, vietnamitas, malgaches (Madagáscar era o único que tinha representação de nível governamental) e, claro, argelinos… e certamente alguns outros.

Nos Acampamentos de Tindouf, a convite da FPOLISARIO: da esquerda para a direita, o jornalista Benigno da Cruz, João Vieira Lopes, Nuno Teotónio Pereira e Luís Moita (Fev. 1977)

Encontrámo-nos numa tenda do deserto, com o inconfundível ritual do chá, o jantar de carne de carneiro e tâmaras, espectáculos tradicionais e projecção do filme “Temos toda a morte para dormir”. Passar a noite numa tenda de pelo de camelo é algo que não se esquece: dormir em saco-cama rente à terra (com um certo receio da visita de um escorpião), conseguindo observar o firmamento límpido porque a tenda mantém uma boa abertura em baixo certamente para que o ar circule, e mesmo assim mal se sente o frio da noite no deserto. Ao acordar no dia seguinte, uma verdadeira miragem: cavaleiros imponentes e pequenas caravanas de camelos pareciam personagens gigantes no cimo das dunas, filtrados pela neblina matinal, criando uma ilusão de óptica. Depois as comemorações políticas, com multidões que se concentravam, com discursos de líderes, actos festivos, uma assistência arrumada em quadrado, mulheres sentadas no chão, dançando apenas com as mãos, fazendo vibrar a língua naquele grito característico a que os árabes chamam “zaghareet” e os iranianos “salguta”. A visita aos campos de refugiados revela-nos milhares e milhares de pessoas, vivendo da cooperação internacional, mas sustentando uma organização social de grande qualidade, sendo o artesanato a única actividade produtiva.

Não era a primeira vez que o Nuno e eu participávamos em celebrações rodeadas de tanta intensidade. Pouco mais de um ano antes, fomos dos poucos portugueses presentes na proclamação da independência de Angola. Estávamos num hotel sem água nem electricidade e ouvíamos ao longe o ruído inconfundível dos canhões. Luanda era então uma cidade cercada, ameaçada. A cerimónia estava marcada para a meia-noite de 10 para 11 de Novembro, sempre daquele ano vibrante de 1975. A norte, a coluna da FNLA, avançava a partir do Caxito, confiando no seu poderio. Dizia-se que Holden Roberto vinha com esperança de jantar na capital. Bombardearam os depósitos de água da cidade e tê-la-iam assaltado se não fosse a batalha de Kifangondo, no dia 10, onde o contingente cubano provocou uma enorme matança àquela gente desprevenida, usando os soviéticos BM 21, ditos “órgãos Estaline”, lançadores múltiplos de foguetes com incrível potência de fogo. A sul, aproximava-se perigosamente a coluna da UNITA, apoiada pelos sul-africanos, e nós íamos ouvindo apreensivamente as notícias dessa progressão, até que as FAPLA e de novo os cubanos travaram o avanço. Éramos poucos os portugueses presentes naqueles dias em Luanda. Estavam alguns representantes dos partidos políticos solidários com o MPLA – o PCP, o MDP, o MES, o PRP – e estava o CIDAC. As autoridades portuguesas tinham retirado, uma vez que fora desrespeitado o acordo que previa eleições livres entre os três movimentos de libertação. Não haveria transferência de soberania pela mão do colonizador cessante. Mas à hora prevista, na Praça 1º de Maio, no meio de uma multidão receosa e festiva, num estrado meio improvisado, Agostinho Neto declarou: “Em nome do Povo angolano, o Comité Central do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) proclama solenemente, perante a África e o Mundo, a independência de Angola”. Na manhã seguinte, já do dia 11 de Novembro, prosseguiu a festa da

Agostinho Neto proclama a independência de Angola (11 nov. 1975)

independência, agora no coração da cidade, no edifício da Câmara Municipal: aí foi dada a palavra aos convidados estrangeiros, prevendo-se uma intervenção por cada nacionalidade presente. Os portugueses formavam o maior grupo, mas foi difícil decidir quem falaria em nome deles. Nuno Teotónio Pereira, que representava o MES, insistiu fortemente em que fosse eu a falar, já que, estando em nome do CIDAC, tinha um carácter apartidário, reforçado pela legitimidade da luta anti-colonial. De nada valeu: os membros do PCP não prescindiram de tomar a palavra, em nome da representatividade do seu partido em comparação com as outras organizações. E assim foi.

Estas fortes emoções, seja em Tindouf, seja em Luanda, como antes em Maputo – assistir ao nascimento de nações em resultado de prolongadas lutas populares – vinham culminar anos e anos de luta anti-colonial em Portugal. Recuemos agora no tempo. Um acontecimento, cuja alma foi o Nuno, veio marcar os nossos destinos. Quando acabou a missa solene da meia-noite, dirigimo-nos à sacristia onde o celebrante, o Cardeal Cerejeira, despia os seus paramentos. Em pequeno grupo, com o Nuno Teotónio Pereira, a Catalina Pestana e o arquitecto Francisco Solano de Almeida, abeirámo-nos dele para, em sinal de respeito, lhe entregarmos uma declaração e o informar de que íamos ficar em reflexão sobre a paz, ocupando a igreja. Sem se opor, limitou-se a pedir que respeitássemos o lugar sagrado. Estávamos na grande igreja de São Domingos, semi-restaurada depois do incêndio que sofreu em 1959, bem no centro de Lisboa, e era a passagem do ano de 1968 para 1969. Pouco antes, o Papa Paulo VI tinha proclamado o 1 de Janeiro como Dia Mundial da Paz e aproveitámos a circunstância para promovermos, como cristãos, um acto público de distanciamento crítico em relação à política colonial e à guerra em África que durava desde 1961. No documento entregue dizíamos: “Sabemos que a Paz a que a Igreja nos exorta tem inumeráveis sentidos e desdobra-se em múltiplos aspectos. Para os portugueses, porém, neste momento, a paz tem de ser primordialmente referida – e sem rodeios – à guerra em que estamos envolvidos e de que temos, pelo menos, uma parte da responsabilidade”. E mais à frente: “A verdade é que todos nos deixámos instalar nesta guerra; que a admitimos como inevitável e imposta; que nos acobardamos sob a desculpa dos riscos que corre quem ousar pôr dúvidas à sua justiça e à sua legitimidade: que somos todos cúmplices de uma conspiração de silêncio à sua volta”. Umas largas dezenas de pessoas, talvez 150, participaram nesta Vigília de São Domingos. Logo de início, algumas leituras e alguns testemunhos fizeram-se ouvir. A Sophia de Mello Breyner Andresen tinha escrito para a ocasião a Cantata da Paz, um poema que ficou para sempre ligado a essa circunstância, cantado pelo Francisco Fanhais, fazendo ecoar palavras expressivas: “Vemos, ouvimos e lemos / Relatórios da fome / O caminho da injustiça / A linguagem do terror / De África e Vietname / Sobe a lamentação / Dos povos destruídos / Dos povos destroçados”. Pouco a pouco, ao longo de mais de quatro horas, ficou claro que os participantes estavam unidos na rejeição da guerra colonial e, à medida que isso era explícito, tivemos de enfrentar um irritante contratempo. O pároco de São Domingos era um cónego que eu conhecia de Vice-reitor no Seminário de Almada, com o nome aristocrático de José Correa de Sá (Asseca). Era corpulento, dotado de um vozeirão fora do vulgar. Sentiu-se incumbido da missão de constantemente intervir para boicotar a Vigília, interromper os nossos diálogos, sabotar as posições expressas. A verdade é que estava a conseguir o seu propósito de impedir a liberdade de palavra e de estragar a nossa iniciativa. Foi então que o Nuno Teotónio Pereira, liderando claramente a situação, se aproximou de mim e me pediu, como eu era padre e também tinha boa voz, para conseguir neutralizar as interrupções do pároco, fazer-lhe frente e assumir a direcção dos diálogos. Sem dúvida é um pormenor, mas este facto quase insignificante teve grande repercussão no meu destino pessoal. Motivado pela responsabilidade que assumi, a questão colonial passou a ser uma prioridade nas minhas opções de vida, marcando os meus passos nas décadas seguintes. O acto em que participara, se bem que pacífico, era a ocupação de um templo, tinha a natureza de transgressão e mesmo de algo subversivo. Sabíamos que pisávamos um risco vermelho do regime. Quem passa por essa experiência reforça as suas convicções e ganha coragem para as lutas seguintes. Esta Vigília de São Domingos teve contornos de momento fundador. Significou para aquele sector que se convencionou chamar “católicos progressistas” um acto que abriu novas portas, valorizou os meios pacíficos de intervenção política, portanto opôs a paz à guerra, encorajou a transgressão em nome de causas justas, ficou de algum modo como protótipo de iniciativas futuras. De tal maneira que foi certamente fonte de inspiração para essa outra vigília, esse outro momento, bem mais radical na sua fisionomia, ocorrido quatro anos depois: a greve da fome com ocupação da Capela do Rato, na passagem do ano de 1972 para 1973.

Sobre esta iniciativa já tanto foi escrito que se torna inútil recordar aqui a natureza e o alcance da mesma. Basta lembrar que na altura o Nuno Teotónio Pereira estava a contas com um processo em tribunal político, fruto das muitas “ilegalidades” que cometia, pelo que se decidiu que ele não teria exposição e visibilidade na ocupação da capela e na greve da fome: nem integraria o grupo inicial que lançaria o processo na missa vespertina de 30 de Dezembro de 1972, nem assumiria posições que pudessem denunciar o seu papel na fase preparatória. Todavia, nem isso impediu que, quando a polícia invadiu o templo, tendo os participantes desobedecido à ordem de evacuação, foi ao Nuno que dois agentes agarraram e arrastaram, perante o clamor solidário de todos. E, já na esquadra do Rato, foi ele um dos catorze activistas que a PSP seleccionou aleatoriamente para os conduzir primeiro para o Governo Civil de Lisboa e, de seguida, na madrugada de um de Janeiro de 1973, para o forte de Caxias, às ordens da PIDE, onde ficámos sob prisão durante quase duas semanas, até que fomos libertados mediante pagamento de cauções.

O que então não sabíamos era que no mês de Novembro desse mesmo ano de 1973 seríamos de novo presos pela polícia política, violentamente torturados, juntamente com muitos outros companheiros. No nosso caso, a PIDE-DGS tinha descoberto a actividade clandestina anti-colonial que desenvolvíamos no âmbito daquela equipa informal que ficou conhecida como “Grupo do BAC”, prendendo os seus elementos e desmantelando o centro de documentação que transitou quase na íntegra para engrossar os numerosos volumes do processo judicial. Após alguns meses de isolamento em cela individual, o Nuno e eu haveríamos de nos encontrar na mesma cela colectiva. Aí aguardávamos julgamento até que numa tarde de Abril vimos os elementos da Guarda Nacional Republicana, que faziam a ronda exterior de segurança ao Forte prisional de Caxias, aparecerem virados para fora em equipamento de guerra, com capacetes, metralhadoras e sacos de granadas. Intrigados e apreensivos, só mais tarde tivemos escassa informação sobre um eventual golpe de Estado. Cautelosos, com receio de a PIDE tomar os presos como reféns, barricámos a porta da cela com um pesado beliche e fizemos turnos de vigilância durante a noite. Na manhã seguinte (era já o dia 26 de Abril de 1974), vimos paraquedistas substituírem a GNR no perímetro exterior. Pouco depois, fuzileiros navais entraram no interior do Forte. Vinham para nos libertar. Através das grades, atirámos flores que eles enfiavam no cano das armas. Ainda passámos todo aquele dia aguardando ordens da Junta de Salvação Nacional, enquanto uma multidão se concentrava no exterior exigindo a nossa libertação. Já passava da meia-noite quando saímos em liberdade, numa história mil vezes contada.

Estas nossas prisões, já não fomos nós a registá-las na circular da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Outros o fariam por nós. Desde Dezembro de 1969, porém, ambos integrávamos essa Comissão, o que nos levava a participar regularmente na reunião semanal do grupo executivo onde eram coordenadas todas as actividades e compiladas as informações que dariam corpo à circular mensal, policopiada, distribuída de mão em mão. Nesse pequeno grupo duas mulheres admiráveis tinham um papel decisivo: Maria Eugénia Varela Gomes e Cecília Areosa Feio. Eram elas que mais informações canalizavam e que melhor se movimentavam nos vários sectores da oposição democrática ao regime da ditadura. Outros participantes regulares eram o advogado Levy Baptista e o Comandante da Marinha Vasco Costa Santos, mas também o Frei Bento Domingues, o Padre Abílio Tavares Cardoso e certamente ainda outros. O ponto de encontro era o escritório da advogada Maria Lucília Miranda Santos, de Torres Vedras, também com escritório em Campo d’Ourique, em Lisboa. Dali emanavam as várias iniciativas, as notícias sobre prisões, libertações, julgamentos nos chamados tribunais plenários, campos de concentração em África, a denúncia sobre arbitrariedades e ilegalidades da polícia política, mas também o apoio às famílias dos presos, as posições públicas contra os crimes da ditadura, os abaixo-assinados dirigidos às instituições do regime. Em tudo isso, o empenho do Nuno Teotónio Pereira constituía um dos pilares de sustentação de toda a actividade, como exemplo e estímulo de resistência perseverante e de generosidade solidária.

Luís Moita
Janeiro de 2022

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