Atividade política

Pragma: instrumento de desafio ao poder

Nos princípios de 1971 o José Manuel Félix Ribeiro desafiou-nos a participar na iniciativa de relançamento da Pragma, uma cooperativa «fundada por um grupo de católicos em 11 de Abril de 1964, data propositadamente escolhida por nela se comemorar o primeiro aniversário da publicação da encíclica Pacem in Terris» (LOPES, Joana. Entre as Brumas da Memória: os Católicos Portugueses e a Ditadura. Porto: Editora Âmbar, 2007, pp. 59-80). Tinha sido encerrada pela PIDE em Abril de 1967 e dissolvida pelo Ministério do Interior em Março de 1968. Interposto recurso da decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, este viria a anular o despacho ministerial em 11 de Julho de 1968, antes de Salazar ter caído da cadeira. A ideia, agora, era a de relançar a cooperativa mas com um outro âmbito, numa outra geografia social, procurando criar raízes nas zonas limítrofes de Lisboa, de população predominantemente fabril: Poço do Bispo, Cabo Ruivo, Moscavide… Era com esta perspectiva que se pretendia relançar o projecto.

A conversa com o Félix Ribeiro ocorreu numa tarde de Fevereiro. O tempo foi passando e não voltámos a ter notícias. Um dia, nas imediações do verão de 1971, encontrei-o e perguntei-lhe por novidades. Ele disse-me que a mulher do arquitecto Nuno Teotónio Pereira, um dos motores da iniciativa, tinha morrido, o que obrigara a suspendê-la, mas que se esperava retomá-la mais adiante, depois do verão.

Ao longo do último trimestre de 1971 começámos a encontrar-nos no atelier de arquitectura de Nuno Teotónio Pereira. Deveríamos ser à volta de uma dúzia de pessoas. Houve a preocupação de balizar os eventuais limites legais daquela iniciativa. A suspensão da Pragma tinha sido levantada mas isso não significava que o regime não tivesse instrumentos legais para condicionar a sua actividade. E nisso não estávamos sozinhos. Havia outras cooperativas que estavam envolvidas naquela batalha.

Mas enquanto seguia o seu curso a nível jurídico, haveria que aproveitar para lançar as bases para um outro tipo de intervenção, com uma outra base social. Nessa primeira reunião estiveram, da anterior estrutura dirigente da Pragma, além do Nuno, o Vítor Wengorovios e o José Manuel Galvão Teles. João Salgueiro também, uma vez, lá apareceu.

Esta tentativa de relançamento da Pragma continuava a ter o selo daquilo que se designava de forma redutora por “católicos progressistas”. Mas o conteúdo deste conceito tinha-se, entretanto, alterado. Este grupo acompanhou o processo de radicalização por que estava a passar a sociedade portuguesa. E por cima da herança católica outras ideologias floresciam. Umas ligadas à corrente marxista-leninista-maoista, outras influenciadas pelos ventos autonomistas que sopravam de Itália, de Il Manifesto à Lotta Continua.

Nesta dúzia de jovens activistas havia várias sensibilidades políticas, algumas delas já organizadas, outras em vias disso. O Comité Revolucionário Marxista-Leninista (CRML) – «criado em Outubro de 1972» (CARDINA, Miguel. Margem de Certa Maneira: o Maoismo em Portugal, 1964-1974. Lisboa: Edições Tinta da China, 2011, p.143) – era um deles. O Comité Comunista Revolucionário Marxista-Leninista (CCRml) era outro. E havia o grupo que haveria de integrar o Movimento de Esquerda Socialista (MES) no pós-25 de Abril. O que unia todas estas militâncias era a aproximação aos meios laborais, a tentativa de estabelecer um elo de ligação com as várias vanguardas das lutas fabris que tinham desabrochado na explosão que se seguiu à greve da Carris de Julho de 1968.

Aquelas reuniões no atelier do Nuno tinham, por vezes, momentos curiosos. Uma noite tivemos de nos abrigar transitoriamente numa sala para deixar sair um grupo de metalúrgicos que estava a preparar uma iniciativa sindical…
Numa destas reuniões decidiu-se procurar um local para as novas instalações da Pragma na zona oriental de Lisboa, e constituiu-se um grupo que ficou de varrer a zona entre Marvila e Moscavide. Então uma manhã o Nuno Teotónio, eu e um outro companheiro andámos à procura de lojas, ou similares, para arrendar. Ainda visitámos duas ou três. Nessa visita, o Nuno chamou a nossa atenção para as janelas existentes que, pela sua disposição, facilitavam a tarefa de quem queria saber o que se discutia e organizava dentro das instalações. Conseguiu-se finalmente encontrar uma loja na rua Marques Beato em Moscavide.

No meio desta azáfama o governo publicou, em 24 de Novembro de 1971, o Decreto-lei 520/71 que «Determina que sempre que as sociedades cooperativas se proponham exercer, ou efectivamente exerçam, actividade que não seja exclusivamente económica, de interesse para os seus associados, fiquem sujeitas ao regime legal que regula o exercício do direito de associação.» Isto implicava, segundo o seu artigo 3º, que «As sociedades cooperativas já existentes e abrangidas pelo disposto no art. 1º deverão, no prazo de sessenta dias, submeter os respectivos estatutos à aprovação da autoridade competente.»

O diário República de 13 de Janeiro de 1972 questionou Nuno Teotónio Pereira sobre as actividades a que se dedicava então a Pragma: «Neste momento, a Pragma encontra-se no inicio de uma nova fase da sua vida. Depois de quatro anos de suspensão forçada da sua actividade, em virtude de um despacho de dissolução invalidado recentemente em segunda instância pelo Supremo Tribunal Administrativo, a nossa cooperativa prepara-se para relançar e alargar as suas actividades previstas nos estatutos e que vão desde o fornecimento de publicações aos sócios até à organização de cursos e colóquios e à instalação de bibliotecas e casas de férias.» Quanto à pergunta sobre «qual a posição da cooperativa perante o decreto-lei 520/71», respondeu: «Em assembleia geral recente, os sócios da Pragma adoptaram claramente uma atitude de rejeição do decreto-lei, dando a maior importância a uma acção conjunta de todas as cooperativas no sentido da não aceitação deste diploma e sua consequente revogação

Submeter os estatutos das cooperativas culturais à prévia ratificação por parte do regime era condená-las ao seu encerramento. Abandonámos o projecto Pragma e procurámos outros caminhos de desafio ao Poder.

António Pinto Pereira
Janeiro de 2022

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