Esta é uma experiência da intervenção do Nuno Teotónio Pereira nas movimentações de resistência ao fascismo e à guerra colonial no período 1966/1973, em particular nas operações de apoio à deserção de milicianos incorporados no exército colonial português.
INICIATIVAS DE APOIO ATIVO À DESERÇÃO DE OFICIAIS MILICIANOS DO EXÉRCITO PORTUGUÊS MOBILIZADOS PARA A GUERRA COLONIAL
Como já se explicou noutro local, as movimentações dos católicos portugueses desafetos do regime fascista, até pelas atitudes autistas do episcopado e pela crescente repressão que a PIDE começou a desenvolver (interrogatórios, prisões e julgamentos), evoluíram, a partir de inícios dos anos 1970’s, para tomadas de posição mais ousadas e que recorreram frequentemente a práticas clandestinas.
Anteriormente, merecem ser recordadas algumas atividades clandestinas pioneiras dos chamados católicos progressistas, desde meados dos anos 1960’s, de que o “Direito à Informação” (boletim policopiado que se centrava nos temas da guerra colonial) foi a expressão mais organizada, e em que o Nuno Teotónio Pereira também tomou parte ativa muito relevante.
Ainda no campo das atividades semi-legais, que hoje chamaríamos de discretas, o Nuno e outros amigos próximos organizaram, entre os dias 7 e 11 de fevereiro de 1970, no período de Carnaval, uma “viagem de estudo e convívio a Madrid”, em cooperação com movimentos espanhóis congéneres (como os “Cuadernos para el Diálogo”).
Participaram na viagem a Madrid cerca de uma trintena de jovens e de adultos portugueses, entre os quais vários estudantes universitários (em que me incluía) e figuras destacadas como o próprio Nuno e a Natália Duarte Silva, Francisco Sousa Tavares e Sophia de Mello Breyner, Jaime Gralheiro, António e Conceição Borges Coutinho, Manuel Canaveira, Manuel Mourão e Luís Soczka. Do lado espanhol, estiveram presentes nas sessões de reflexão connosco vários antifascistas católicos – agrupados muitos deles na YMCA – Associación Cristiana de Jovenes –, padres operários e outros ativistas.
Segundo o guião das sessões de “intercambio de experiencias sobre comunidades cristianas de base” (La Moraleja, 8/9 febrero 1970), indicava-se que “esta convivencia estará marcada por un sentido de apertura de cristianos e no cristianos a los problemas del hombre actual”. O trabalho destas sessões foi muito profícuo, e dele resultaram várias perspetivas de atividade conjunta.
A inclusão deste relato de fevereiro de 1970, num texto sobre o apoio à deserção de militares mobilizados para a guerra colonial, tem uma explicação factual. É que, na caravana automóvel dirigida a Madrid, que atravessou a fronteira de Galegos em 7/2/70, integrava-se (devidamente escondido no porta-bagagens de um dos carros da caravana) um jovem português desertor, que conseguimos pôr a bom recato a caminho da Europa…
Passemos agora aos eventos posteriores, poucas semanas depois, em que o Nuno Teotónio Pereira, na sua habitual atitude de corajosa generosidade, sem procurar contrapartidas de nenhuma espécie, voltou a proporcionar a fuga de dois novos desertores, que eram agora o Fernando Venâncio e o Joel Pinto, ambos mobilizados para a Guiné.
Socorro-me, para o efeito, do inspirado relato que o Fernando Venâncio publicou há dois anos, quando se completaram 50 anos sobre os factos:
“27 de Março de 1970. Uma sexta-feira como as outras, ou só por ser Sexta-Feira Santa… Mas podia ser, e foi, o Dia dos Dias na vida duma pessoa, da pessoa que por acaso sou eu. Disso resta uma fotografia. Podia não ter sobrado nada.
A foto foi feita em território espanhol, vizinho a Marvão. Mostra um grupo de excursionistas portugueses que vão comprar chocolates a Espanha. É teatro. Na realidade, dois deles não regressarão tão cedo: Joel Pinto, pastor protestante, o terceiro a contar da direita e, ao lado dele, segundo da ponta, este que vos fala.
Fez o retrato Nuno Teotónio Pereira, em casa de quem tinham acabado de almoçar. A última refeição do condenado, isto dito assim. O arquitecto, mais um grupo de católicos progressistas do Lumiar, Lisboa, haviam chamado a si a logística.
Joel Pinto e Fernando Venâncio, que se conheceram nesse dia, vão agora ficar por ali escondidos, esperando o carro de José Alberto Franco, que os levará a Cáceres. Acabam por chegar, já noite velha, a Madrid. Daí partirão aqueles dois, antes da aurora, rumo a Barcelona, conduzidos por um padre operário madrileno (padre Carlos). Não há um quilómetro de auto-estrada…
Na Catalunha, irão aguardar uma semana, até serem resgatados para França. A guerra ‒ aquela guerra para que ninguém via fim ‒ ficara agora longe.” (Reproduzido da página de facebook do Fernando Venâncio)
Como já o manifestei a propósito deste post do Fernando Venâncio, tratou-se de mais um bem sucedido ato de liberdade, de solidariedade, de resistência contra a guerra colonial, que só foi possível pela generosidade militante do saudoso Nuno Teotónio Pereira que, à semelhança de tantos outros casos, preparou e organizou as operações, e soube confiar e responsabilizar mais ativistas pela sua execução. Como é próprio de qualquer grande líder!
O dia 27 de março de 1970 foi de facto um dia de grande emoção, em que a coragem e o inconformismo falaram mais alto, e em que a nossa fraternidade funcionou… Lembremos também a intervenção da Luísa, do Miguel e da Helena (ou seja dos três filhos do Nuno), dos irmãos Raul e José Carlos Pinheiro Henriques, e da Arminda Neves, todos eles na foto (para além dos desertores e de eu próprio).
José Alberto Franco
Janeiro de 2022
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