Assuntos pessoais Atividade política

Jorge Conceição

Sugeriram-nos testemunhos sobre o Nuno, que em Janeiro de 2022 faria 100 anos. O Nuno Teotónio Pereira, que outros três nos surgiram no passado como referências vivas: o Nuno Portas, o Nuno de Bragança e o Nuno Silva Miguel…

Confesso que tenho dificuldade de falar sobre a minha experiência com o Nuno que, embora longa e intensa, tem consequências sobretudo pessoais ou muito próximas e que pouco ou nada interessará a quem quiser apenas conhecer a “figura” do Nuno. E, na verdade, teria até de omitir injustamente um largo e querido conjunto de pessoas que me ajudaram no meu crescimento e que contribuíram para a formação dos aspectos mais positivos da minha pessoa. Além disso, falar do Nuno sem falar da Natália, seria muito curto, muito redutor! Além disso não me parece correcto tirar vantagens pessoais de notoriedade ‘apenas’ por ter sido amigo do Nuno…

É assim que não falarei sobre a sua contribuição fundamental para o meu trabalho escolar na cadeira de Arquitectura do IST, sobre a então novel igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Santa Marta, nem sobre uma preparação comunitária, mas reduzida, do meu casamento com a Maria Emília, nem sequer de actividades mais colectivas de intervenção política e social… Apenas assinalarei e de passagem, uma decisão vital que, aparentemente, iria contrariar na prática todo um conceito pessoal e ideológico que norteara a minha prática político-social de então: a de ter embarcado para Moçambique, mobilizado para a Guerra Colonial!

Como muitos outros que se opunham militantemente contra a Guerra que Portugal conduzida nas antigas colónias africanas contra os respectivos movimentos nacionalistas, também estendi quanto pude os autorizados adiamentos militares, estendendo um tanto mais a duração do meu curso universitário, dos seis até aos onze anos… Mas atingida essa extensão, só tinha duas alternativas: ser incorporado ou desertar! Optei, intectual e coerentemente, pela segunda hipótese, mas foi aí que uma longa conversa com o Nuno fez mudar radicalmente a minha decisão…

Eu embarquei, mobilizado para a Guerra em Moçambique, em Julho de 1971 e as conversa com o Nuno decorreram, evidentemente, nos meses anteriores. Perante a minha sugestão de ele me indicar possíveis vias de deserção que fossem do seu conhecimento, ele retorquiu-me: temos demasiada gente lá fora e que em nada ou muito pouco contribui para uma alteração da nossa política interna, particularmente no que respeita às guerras coloniais. É tempo de preservarmos militantes que actuem cá dentro. Eu retorqui-lhe que era contra a guerra em geral, que era particularmente contra esta, por injusta, uma vez que reconhecia toda a legitimidade dos movimentos nacionalistas pugnarem pela própria liberdade e pela autonomia dos seus povos, etc. e, além disso, por motivos políticos, por que apesar de ser licenciado em engenharia civil, tinha sido mobilizado como atirador de Infantaria, o que me iria colocar directamente no campo das hostilidades bélicas. Ele disse-me para tentar dar a volta a isso, mas evitar a todo transe a deserção, pois cá em Portugal é que éramos necessários. Respondi-lhe com uma solução um tanto utópica: se alguma vez tiver de estar em contacto bélico directo, desertarei lá mesmo! Ele aceitou… Mas em Moçambique consegui ser requisitado para a Engenharia Militar e a minha actividade passou a ser apenas a de construção de equipamentos para utilização local – então para a tropa portuguesa e que, depois da independência, poderiam ficar para a população e para a tropa moçambicana.

Complementarmente, a minha participação na Guerra em Moçambique teve outros efeitos: foi uma fonte de fornecimento de dados ao antigo BAC – juntamente com outros, portugueses e moçambicanos, foi uma recolha de informação documental estratégica que algumas vezes conseguiu chegar aos destinatários certos, apesar de involuntárias sabotagens de militantes portugueses clandestinos… Ou seja, tirámos partido favorável duma situação adversa e, no meu caso, devi-o à discordância do Nuno com o meu projecto de deserção, tendo ele sido anteriormente agente importante noutras deserções!

Jorge Conceição
Nota feita em 1 de julho de 2021


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