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Alice com os seis filhos: Maria Alice, Nuno (em pé, à esquerda) Maria Teresa, Luís, João e Alberto

PEREIRA, Nuno Teotónio. “O problema da habitação”. Original dactilografado, mar. 1944, 6 p.
O PROBLEMA DA HABITAÇÃO
O problema da habitação parece que caminha finalmente para um desfecho. É chegada a hora de definir directrizes, de traçar planos e de lançar as bases para sua execução. Mas para que a decisão final seja na medida do possível acertada e segura, é indispensável admitir todas as propostas razoáveis e estudar todas as soluções possíveis, à luz dos princípios éticos, sociais e económicos que regem a vida nacional.
Seria imperdoável que se cometesse o erro de fechar os olhos a certas soluções que já existem, rejeitando-as a priori, sem as submeter a um estudo cuidadoso e eficaz. As gerações futuras, desgraçadamente herdeiras dos nossos pecados, haviam de amaldiçoar o nosso espírito acanhado e a nossa falta de coragem para resolver de maneira radical o problema urbano em geral e o problema da habitação em particular. Se as directrizes que forem agora traçadas para o futuro estiverem alicerçadas no erro, as consequências serão verdadeiramente catastróficas.
Na construção de grandes blocos de habitações familiares está a chave que permite resolver eficazmente todos os problemas da cidade moderna. E, à frente desses, o problema da habitação – a célula natural de todo o organismo urbano, como a família é a célula natural de todo o organismo social.
Não só a construção de habitações económicas em grandes blocos traz enormes vantagens de toda a ordem, como pode mesmo dizer-se que a construção em larga escala de vivendas unifamiliares ou quase, equivale ao suicídio das cidades. O que está agora em jogo não é somente um conjunto de regalias morais e materiais que o indivíduo e a colectividade devem e podem usufruir. É mais do que isso: é a própria vida dos grandes aglomerados urbanos.
Este tipo de construção em blocos precisa de ser reabilitado entre nós. Está ultrajado, está caluniado. De um conhecimento imperfeito das suas possibilidades de resolver todos os problemas urbanos e de dar satisfação quase completa às necessidades morais e materiais do homem individual e colectivo, resultou a sua condenação. É preciso que isto fique bem assente: os grandes blocos de habitações de que se fala, nada têm que ver com quaisquer tipos de blocos já construídos no País e muito menos com os arranha-céus de Nova-York, negação completa de todas as necessidades humanas. Pode dizer-se, em relação ao primeiro caso, que na cidade de Lisboa não existe bloco algum de construções modernas satisfazendo as condições de habitabilidade que há o direito de exigir como um mínimo neste ano de 44. Nem mesmo os maciços de carácter luxuoso e de rendas astronómicas que ultimamente têm sido construídos nos bairros mais novos do eixo da cidade.
A casa unifamilar, que ainda hoje é aconselhável sem reservas nos campos e defensável até certo ponto nos pequenos aglomerados urbanos, mostrou ser impraticável nas grandes cidades do nosso século. Mesmo entre nós, onde este tipo de construção foi apontado como o ideal pelos dirigentes do País, tendo sido adoptado inicialmente nos primeiros bairros económicos do Estado Novo, já teve que ser abandonado e substituído por casas para duas famílias. É evidente que, se se transigiu neste ponto capital de doutrina, foi porque os inconvenientes mostraram ser decisivos.
Os próprios princípios de ordem moral que à primeira vista aconselham a construção de pequenas casas unifamiliares, acabam por condenar eles próprios esse sistema e por impor a construção de grandes blocos de habitações. Com efeito, todos os inconvenientes do sistema de unidades familiares isoladas podem ser eliminados no sistema de construção em altura, e isto sem nenhuma perda essencial. Antes, com vantagens numerosas e importantíssimas, no duplo aspecto moral e material.
E porque não aproveitar neste capítulo as lições os outros povos? Já se sabe que possuímos características nacionais muito particulares de que resulta geralmente uma solução original para cada problema. Mas uma coisa é certa: o homem, quaisquer que sejam as coordenadas geográficas, tem necessidades morais e materiais comuns. Por que não prestar atenção à maneira como lá fora se tem procurado dar satisfação a essas necessidades comuns, estudando ao mesmo tempo as suas possibilidades de adaptação?
Já passaram 50 ou 60 anos desde que Ruskin expôs a ideia romântica da cidade-jardim, aglomerado de pequenas casas rodeadas por também pequenos jardins, a grande ilusão do urbanismo deste século. No entanto, esta teoria está agora a ser aplicada no nosso País pela primeira vez em grande escala e quase todos a celebram como sendo a última palavra. Mesmo em Inglaterra, pátria de Ruskin, e da cidade-jardim e porventura o país mais individualista e mais romântico do mundo, onde a casa unifamiliar era um dos dogmas da vida (“the Englishman’s home is his castle”), a opinião pública, já devidamente esclarecida, reclama agora a construção de grandes blocos de habitações e os planos de reconstrução de todas as cidades estão a ser elaborados segundo este critério. E o mesmo se passa em todos os países onde o urbanismo não é uma palavra vã. Estaremos nós irremediavelmente condenados a viver sempre com meio século de atraso?
O primeiro e gravíssimo inconveniente que há a notar no sistema das pequenas casas isoladas é o desperdício enorme de materiais e de mão de obra resultante da extensão tremenda da área ocupada e das ruas de acesso às habitações (construção e manutenção de pavimentos, iluminação, canalizações de água e gás, esgotos, fios eléctricos e telefónicos, etc.). Outro desperdício não menos importante, é o resultante da construção, para cada unidade familiar, de quatro paredes mestras, de fundações e de cobertura. Imaginando agora essas unidades familiares encostadas umas às outras no sentido da longitude e da altitude, facilmente se fará uma ideia do grandioso gasto inútil. A construção em grandes blocos permite evitar tudo isso. E então, de duas uma: ou o que se pouparia desta maneira iria causar um embaratecimento das rendas, ou seria aproveitado no sentido de permitir aos habitantes das cidades o usufruto de confortos materiais proporcionados economicamente pelos serviços comuns de cada bloco e que nas chamadas moradias independentes constituem um luxo incomportável. Está neste caso, por exemplo, o aquecimento das habitações.
Os serviços comuns são a chave que permite a utilização pelas classes médias das modernas técnicas do conforto e do bem-estar.
Por outro lado, tomando em consideração a defesa da família, é preciso tornar cada lar na medida do possível independente. Nos bairros de casas isoladas é inevitável as janelas abrirem ou para a rua, ou para as outras casas. Os pequenos jardins estão completamente devassados e a família nunca poderá estar ali completamente à vontade. Com este sistema, apesar da aparência ilusória em contrário, subsistem ainda inegáveis factores de promiscuidade. Tudo isto desaparece nas construções em bloco. Aqui, cada lar é realmente independente (só não o é nos acessos, mas nisso também as vivendas não o são – e os acessos são locais de passagem, ao passo que os jardins ou os quartos ou as varandas são locais de permanência). Ao abrir-se uma janela não se encontra já a rua ou a casa do vizinho, mas o céu, o rio ou o campo. A Natureza está ali a entrar toda pela casa dentro. Horizontes largos, ar puro, sol. A vista do céu e da terra passa a ser gozada em toda a sua extensão – e por todos igualmente.
Um dos principais argumentos que se emprega contra o sistema de blocos é a monotonia, é a igualdade que parece estar em contradição com a diversidade infinita de todos os homens. Mas não são também todas iguais as vivendas de um bairro económico, dentro de cada tipo? E não se arrumam também geometricamente, impecavelmente alinhadas? Mas se no exterior os grandes blocos têm que apresentar um aspecto unitário e harmónico, pois o exterior pertence à colectividade, no interior cada lar deve ter características bem próprias, e marcar o espírito, os hábitos e as inclinações da família que nele habita. E não se deve esquecer que a casa é utilizada por dentro.
As consequências da extensão exagerada das cidades como resultado da construção sistemática de bairros de pequenas casas tornar-se-ão no futuro catastróficas. O homem das cidades já se desabituou de andar a pé. O homem das cidades tem que aprender novamente a andar a pé. O regresso à Natureza tem que ser um facto total e verdadeiro. Para isso, é preciso reduzir ao mínimo a distância entre os locais de trabalho e as habitações.
Com a construção em altura, esta redução pode conseguir-se, aumentando ao mesmo tempo as superfícies livres, parques, campos de desporto e terras de cultura onde os amadores das plantas e da terra poderão amanhar o seu talhão.
O homem voltará assim ao contacto com a Natureza que tem sido impiedosamente expulsa das cidades contemporâneas. É a hora de desfazermos as nossas ilusões e de abrirmos os olhos: os jardins individuais dos bairros de moradias, as árvores alinhadas ao longo das ruas e as praças ajardinadas não são a Natureza – são uma caricatura da magnificência do reino vegetal.
A paisagem seria aproveitada na sua totalidade. Os elementos naturais (ribeiras, florestas, lagos, colinas) seriam respeitados na sua pureza integral e não arrasados como se faz actualmente. O homem, ao sair a porta de casa, estará em pleno campo. Ao contrário, os bairros de pequenas vivendas devoram os campos sem cessar e fazem aumentar constantemente a distância da cidade ao campo. São um verdadeiro cancro da Natureza.
Em artigos sucessivos, toda esta questão será desenvolvida nos seus diversos aspectos e os assuntos aqui apenas aflorados serão sistematicamente discutidos.

PEREIRA, N. Teotónio, MARTINS, M. Costa. “Habitação económica e reajustamento social”. 1º Congresso Nacional de Arquitectura: Maio-Junho de 1948: promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos com o patrocínio do Governo. 1948, pp. 243-249. Também editado como separata, 7 p.
Republicado em 1º Congresso Nacional de Arquitectura: Maio-Junho de 1948: promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos com o patrocínio do Governo. Ordem dos Arquitectos, 2008, pp. 243-249 [edição fac-similada].
HABITAÇÃO ECONÓMICA E REAJUSTAMENTO SOCIAL
É bem do conhecimento geral a premente necessidade de habitações – um dos mais tremendos problemas da época. Uma enorme parte da população está alojada em condições que não satisfazem as mais fundamentais exigências psico-fisiológicas do Homem. Por outro lado, a formação de novos lares em condições satisfatórias é dificultada pela mesma insuficiência, o que agrava progressivamente a situação, comprometendo a possibilidade de um futuro melhor.
O problema só poderá ser resolvido no quadro de uma planificação nacional que inclua uma nova localização das indústrias, e por meio de uma intensa e pertinaz acção conjugada de inúmeros sectores do saber e do trabalho humanos, da qual as ciências económicas e jurídicas e as técnicas construtivas participarão de modo decisivo.
Esta tese, não pretendendo contribuir directamente para a resolução do problema, procura definir – analisando sistematicamente as características da população das grandes cidades – as respectivas necessidades habitacionais na cidade e na casa, com vista a um reajustamento social.
Pensamos que, ao focar este importantíssimo aspecto do problema, poderemos contribuir para que seja grandemente aumentado o alcance social da apreciável obra de construção em curso.
*
Os resultados da referida análise levaram-nos a distinguir, no panorama social observado, através de características peculiares, duas grandes classes bem diferenciadas, as quais designaremos por classe proletária e classe média. Essas características irão determinar, à luz de princípios orientadores, os correspondentes tipos de habitação e sua inter-relação na cidade.
Os indivíduos de que se compõe em grande maioria a classe proletária vivem em bairros miseráveis ou do próprio centro da cidade. Nos primeiros é enorme a percentagem de imigrantes, arrancados ao seu meio próprio – desenraizados. Por outro lado, as condições em que é exercido o trabalho, a actividade recreativa caracterizada por manifestações rudimentares e fechadas, e as possibilidades muito limitadas de actividade cultural (grande maioria de analfabetos), determinam uma quase total impossibilidade de elevação e de progresso, quer directamente através dos agentes próprios (jornal, cinema, livro) ou de instituições com essa finalidade, quer indirectamente pelo contacto com camadas mais elevadas da população. Vivendo à margem da cidade, em bairros reservados, não participam da vida que lhe é própria.
Por tudo isso possuem baixo nível cultural, sentido cívico atrofiado, menos respeito por si, pelo semelhante e pelas instituições; e certa carência de princípios morais – muitas vezes os mais elementares.
Pelo contrário, a classe média é formada por indivíduos que têm já uma tradição citadina, que estão integrados na cidade, que têm hábitos urbanos.
O próprio campo onde exercem a sua actividade – que nunca é predominantemente física – oferece oportunidades de relação e contribui assim para uma subida quotidiana do nível social e cultural, ainda reforçada pelos instrumentos de cultura e de recreio que têm ao seu alcance.
Possuem uma melhor compreensão do dever cívico, uma mais larga possibilidade de aproveitamento dos benefícios e de uso dos direitos proporcionados pela cidade, uma mais pronta e consciente aceitação das disciplinas impostas pela vida em comum.
Esta distinção de classes não se baseia em factores de ordem económica, e só em parte corresponderia a qualquer classificação que os tivesse por base, pois em ambas existem indivíduos de vida extremamente difícil e de vida relativamente desafogada. Grande parte dos componentes da classe média têm mesmo rendimentos absolutos inferiores a muitos indivíduos da classe proletária. Como o desafogo económico é dado pela relação rendimentos / necessidades, verificamos que a diferença entre rendimentos relativos de uma e de outra é ainda mais acentuada. Nível social não é o mesmo que nível económico.
No panorama social das grandes cidades notam-se dois movimentos contrários, um ascendente, outro descendente. O primeiro é caracterizado por uma evolução progressiva do estilo de vida – tornada possível pelo contacto e favorecida pelo desafogo económico – em que elementos do proletariado vão encorporar-se na classe média. O segundo consiste no abaixamento do nível geral da classe média, provocado na maior parte dos casos pela impossibilidade de satisfazer as necessidades correspondentes ao seu estilo de vida.
Entendemos que é preciso eliminar as causas do movimento descendente da classe média e acelerar e generalizar ao máximo o movimento ascendente da classe proletária.
Para o primeiro objectivo, uma contribuição poderosa e indispensável será a construção de habitações em quantidade e qualidade tais que satisfaçam as necessidades da classe média, de modo a esta poder manter o seu nível específico.
Com relação à classe proletária, os meios a empregar terão que ser mais amplos e radicais.
Antes de mais nada, como condição essencial há que recebê-la na cidade, o que, para além de um sentido meramente topográfico, quer dizer: colocá-la em contacto com os elementos que caracterizam esta socialmente. No entanto, isto deverá fazer-se em condições transitórias que permitam habilitá-la a participar um dia plenamente da sua vida. Além do seu significado profundamente humano, que deve ser realçado, isso proporcionará a única forma de estabelecer o preconizado contacto com a população de nível mais elevado, e acabar com a proscrição a que agora o proletariado se encontra sujeito.
Esse contacto, que fornecerá continuamente oportunidades de elevação, deverá ser em grau tal que permita a mais rápida subida de nível da classe proletária, sem contudo fazer baixar o da classe média. Essa também tirará daí o seu benefício, adquirindo um maior grau de compreensão humana e de consciência social.
Outro factor imprescindível será a realização de uma campanha, utilizando todos os meios de que hoje se dispõe, com uma finalidade educativa e de assistência social que, além de consequências directas, proporcionará aos elementos do proletariado a possibilidade de explorarem por si próprios novas fontes de elevação e de cultura.
Vejamos agora de que maneira as determinantes acima apontadas se poderão concretizar, primeiro na estrutura da cidade, e a seguir na da própria habitação.
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Para que seja possível o contacto preconizado, será preciso relacionar as habitações das duas classes de tal modo que possam estabelecer relações de vizinhança.
Mas para que o grau dessas relações permita o equilíbrio apontado, elas devem ser proporcionadas, não dentro da unidade habitacional (prédio), mas sim de uma unidade de vizinhança, base de uma comunidade que virá a ser uma nova e autêntica freguesia.
Essa unidade de vizinhança será composta por unidades habitacionais de uma e de outra classe, constituindo um todo a que será imprescindível juntar os instrumentos de carácter social tendentes a tornar possível, tanto uma urgente acção educativa – cuja finalidade é a elevação – como a realização das manifestações colectivas próprias da cidade. São elas: Escolas (Primária e Infantil), Igreja, Biblioteca, Administração local, Serviços Públicos, Clube Recreativo, Centro de Saúde, Cinema, Terrenos de Jogos, Café, Centro de juventude, Comércio, etc.
Em face dos graves inconvenientes, hoje universalmente reconhecidos, da grande extensão das cidades, torna-se urgentemente necessário aplicar em grande escala o princípio da construção em altura. Mas, considerando as características sociológicas da classe proletária atrás apontadas, e que não correspondem aos requisitos que uma grande aglomeração de fogos na mesma unidade exige; e dado ainda o carácter transitório que preconizamos para as habitações da mesma classe, cremos que as unidades habitacionais respectivas não podem ser desse tipo de construção.
Em contrapartida, entendemos que o mesmo princípio deve aplicar-se às habitações da classe média no máximo das suas possibilidades.
À medida que uma planificação nacional em grande escala for eliminando as causas que criaram o actual estado trágico das cidades, as habitações transitórias da classe proletária irão sendo substituídas.
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Estabelecidas assim as normas que condicionarão a estrutura da cidade, em função da análise sociológica e com vista aos objectivos propostos, vejamos algumas das suas repercussões na estrutura da habitação.
Para suster o já notado movimento de proletarização da classe média, concluímos que a construção de habitações em número suficiente e com as condições exigidas pelo seu estilo de vida, contribuirá poderosa e decisivamente.
Para promover a elevação da classe proletária, a construção de habitações adequadas será também um dos mais eficientes e indispensáveis meios. Tais habitações deverão tornar possível, já a plena satisfação das necessidades pré-existentes, já o despertar de outras necessidades, a satisfazer ainda de maneira rudimentar. De carácter provisório, serão o quadro de uma espécie de aprendizagem, obrigatoriamente completada por uma intensa acção educativa.
Posto isto, vamos analisar algumas das funções habitacionais requeridas por uma e outra classes.
Das funções individuais, há duas a que deve ser dada importância equivalente em ambos os casos – dormida e higiene, pois estas têm a satisfazer necessidades de ordem fisiológica em condições de recato – requisitos que são indispensáveis para uma boa saúde física e mental.
Entendemos que, neste caso, o estado transitório não deve ser considerado. Porque, não obstante os indivíduos da classe proletária estarem nas condições actuais muito longe de possuir necessidades higiénicas satisfatórias, reputamos ser condição essencial para a sua elevação – ao mesmo tempo que exigência imperativa da cidade – levá-los a adquiri-las em grau normal. Para isso é fundamental facultar-lhes meios de satisfação dessas necessidades, tão completos, pelo menos, como os que dispõe normalmente a classe média. E isto porque qualquer acção educativa exterior será infrutífera, se as condições proporcionadas não forem convidativas.
Há duas necessidades que são satisfeitas no quadro familiar: a de recreio, consubstanciada no serão, e a alimentar, concretizada na refeição. Estas funções – que implicam reunião – apresentam sensíveis diferenças em relação a uma e a outra classes, acentuadas neste caso pela existência, ou não, de criada.
A efectivação do serão em condições adequadas é fundamental para assegurar uma vida familiar plena. Enquanto esta instituição atinge na classe média o seu maior esplendor, quando existe na família proletária é em forma rudimentar; porque, se por um lado, a habitação actual da classe proletária não lhe proporciona o necessário enquadramento, por outro, a carência de meios de recreação não lhe fornece o indispensável alimento. A necessidade muito frequente de deitar cedo, e o cansaço motivado pelo trabalho físico, quase sempre violento, vêm ainda reforçar essa deficiência. De acordo com a forma transitória preconizada para a habitação proletária, ela deverá permitir a realização desta função, mas num grau pouco evoluído.
No que respeita à classe média, a não existência de criada introduz uma diferenciação bem marcada pois, nesse caso, será a mãe de família a executar todo o trabalho doméstico – muitas vezes ao mesmo tempo que no centro de reunião se passa o recreio familiar, do qual necessita de participar. Como o trabalho doméstico é na maior parte realizado na zona de serviço, terá que proporcionar-se uma ampla ligação entre esta e o local de reunião.
A refeição assume um carácter solene e simbólico que aumenta na mesma medida do nível social. Assim, a família da classe média exige para esta função um enquadramento apropriado. Dentro desta mesma classe, também a não existência de criada torna indispensável – e este é o caso da classe proletária – uma contiguidade perfeita entre a cozinha e o local da refeição.
As necessidades extra-familiares estão na base da chamada vida de relação, a qual é uma das características mais próprias da classe média, manifestando-se de uma forma atrofiada entre o proletariado. Essa vida de relação é representada, tanto pela simples visita provocada pela necessidade de reunião inter-familiar e afectiva, como pela visita cerimoniosa, motivada por convenções sociais ou por razões profissionais.
Geralmente, a primeira no próprio quadro da reunião familiar, o que quer dizer que a habitação, em qualquer dos casos, não necessita de local especialmente consagrado a esse fim. No que diz respeito às visitas da segunda espécie, verificamos que apenas na habitação da classe média deverá ser previsto o local para a sua efectivação.
Através dos casos apresentados, exemplificamos como poderá a habitação corresponder às necessidades observadas, permitindo ao mesmo tempo a realização dos objectivos propostos.
RESUMO E CONCLUSÕES
Em face da trágica necessidade de habitações, verificamos que O PROBLEMA SÓ PODERÁ SER RESOLVIDO NO QUADRO DE UMA PLANIFICAÇÃO NACIONAL E POR MEIO DE UMA ACÇÃO CONJUGADA DE INÚMEROS SECTORES DO SABER E DO TRABALHO HUMANOS.
Procuramos definir, com vista a um reajustamento social, algumas características da cidade a reformar e da habitação a construir.
Uma análise do corpo social das grandes cidades permite-nos distinguir dois grupos entre a população que sofre a falta de alojamentos.
Verificamos que um desses grupos – a classe proletária – vive à margem da cidade, constituindo nela um corpo estranho.
Constatada a existência de dois movimentos declaramos que é preciso acelerar e generalizar ao máximo o movimento ascendente da classe proletária, eliminando ao mesmo tempo as causas que motivam o movimento descendente da classe média.
Para tanto, pensamos que É CONDIÇÃO PRELIMINAR E ESSENCIAL INTEGRAR NA CIDADE AS HABITAÇÕES DA CLASSE PROLETÁRIA, ABANDONANDO-SE A CONSTRUÇÃO DE BAIRROS EXCLUSIVOS. UMA INTENSA ACÇÃO EDUCATIVA SERÁ INDISPENSÁVEL.
A concretização destas determinantes na estrutura da cidade leva-nos a concluir que É PRECISO CONSTITUIR UNIDADES DE VIZINHANÇA, FORMADA POR UNIDADES DE HABITAÇÃO DE UMA E OUTRA CLASSE, COMPLETANDO O CONJUNTO PELOS INDISPENSÁVEIS E VARIADOS INSTRUMENTOS DE CARÁCTER SOCIAL.
Verificamos ao mesmo tempo a conveniência de se APLICAR EM GRANDE ESCALA NAS HABITAÇÕES DA CLASSE MÉDIA O PRINCÍPIO DA CONSTRUÇÃO EM ALTURA, RESERVANDO-SE PARA A CLASSE PROLETÁRIA UNIDADES DE CARÁCTER MENOS DURADOURO E SEM GRANDE AGLOMERAÇÃO DE FOGOS.
Por consequência, DEVE ABANDONAR-SE A CONSTRUÇÃO DE PRÉDIOS DE MEIA ALTURA, SOCIALMENTE INCONVENIENTES PARA A CLASSE PROLETÁRIA E ECONOMICAMENTE PREJUDICIAIS PARA A CLASSE MÉDIA.
No que respeita à casa, pensamos que É NECESSÁRIO TENTAR RESOLVER AS FUNÇÕES HABITACIONAIS COM BASE NAS CARACTERÍSTICAS SOCIOLÓGICAS OBSERVADAS E À LUZ DOS PRINCÍPIOS ENUNCIADOS.
FINALMENTE, DECLARAMOS ACREDITAR QUE SERÁ NECESSÁRIO INCLUIR OBJECTIVOS DE REAJUSTAMENTO SOCIAL NUM PROGRAMA QUE PRETENDA A UMA AUTÊNTICA REFORMA DA CIDADE.

Amor e casamento: causas de desunião
(Preparação para a reunião de casais das Equipas de Nossa Senhora de 27 de abril de 1961)
Penso que é da maior importância uma vigilância constante. O hábito é tanto mais perigoso que se infiltra sem quase se dar por isso.
Há pequenas coisas que se podem fazer e que são uma sacudidela na vida de todos os dias.
Quando o Nuno está no Atelier, às vezes à noite, e eu em casa – um telefonema dum de nós ao outro só para dizer que o ama. Claro que tem de ser sentido. Mas muitas vezes sentimos e não dizemos nada. Por vezes há a tentação de pensar: que ridículo, ir agora dizer-lhe isto… Para quê?, etc. No entanto, penso que todos nós, quando noivos, não nos importávamos de ser ridículos. Uma vez convidei o Nuno, por escrito – com V. Exª. e tudo – para irmos jantar fora (pois havia muito tempo que não o fazíamos e por mais lamirés que eu desse, nada). E foi um jantar cheio de novidade. Umas flores que o Nuno de vez em quando me traz, especialmente fora dos dias especiais (anos, etc.). O vestido novo que ele sempre nota e que eu procuro sempre estrear com ele. Um livro que o Nuno me oferece, especialmente aquele em que eu falei em tempos e de que ele tomou nota. (…)
Lembro aqui uma grande carta que escrevi ao Nuno, numa altura em que reconheci o perigo do hábito e da instalação a rondar-nos. Fui pô-la lá em baixo na caixa do correio. Esta foi uma grande sacudidela. (…)
Natália
Considero que o hábito representa um grande perigo e uma ameaça constante para o amor, pois pode abafá-lo. Temo-nos defendido bastante desse perigo, porque a Natália desde o princípio que tem uma aguda consciência dele, falando disso mesmo antes do nosso casamento. Por isso, temos procurado não abdicar de uma parte da nossa intimidade pessoal e de um certo recato em relação um ao outro. Ao mesmo tempo, temos procurado afastar a ideia de uma posse definitiva [de] um pelo outro, tendo insistido também muito a Natália na necessidade de nos conquistarmos sempre de novo. (…)
Nuno

ALEXANDRE, Álvaro; RICOU, Gastão; REIS, João Braula; PEREIRA, Nuno Teotónio; NUNES, Paulo. “Problemas de base postos pelo estudo da Habitação Económica”. II Colóquio Nacional do Trabalho, da Organização Corporativa e da Previdência Social. [Lisboa: 1962], pp. 117-136
Republicado em Arquitectura, nº 76, out. 1962, pp. 47-50.
PROBLEMAS DE BASE POSTOS PELO ESTUDO DA HABITAÇÃO ECONÓMICA
Comunicação ao II colóquio do Trabalho, da Organização Corporativa e da Previdência Social
I – EXPLICAÇÃO PRÉVIA
Correspondendo a habitação, tal qual a saúde, a alimentação e a educação, a necessidades humanas primordiais, não pode adiar-se por mais tempo o estudo sério do problema e a adopção de medidas eficazes para o resolver.
Perante a gravidade da nossa situação habitacional, sabe-se que o País não poderá dispor dos meios necessários para a solução imediata da crise, tendo em vista a nossa reduzida capacidade de investimento e as exigências postas pelo desenvolvimento económico. Importa por isso que todos os meios disponíveis sejam utilizados no seu máximo rendimento e que novos meios sejam criados.
Atendendo àquela limitação, é indispensável que todos os nossos recursos em energia, capacidade de organização, capitais, materiais e mão-de-obra, técnicas, etc., que possam ser utilizados na construção de habitações, o sejam apenas naquelas que têm carácter social e que correspondam às necessidades da população mais mal alojada.
A habitação económica só tem sentido se for ordenada a um objectivo de carácter social e para o ser, terá de abranger a generalidade da população e situar-se no contexto económico-social do povo português.
A habitação económica, que começou por ser orientada para determinadas camadas da população, tem hoje um âmbito muito mais amplo, uma vez que o problema da habitação é um problema de todos e não pode deixar de situar-se no conjunto do País. Trata-se agora de construir «economicamente» à luz dos recursos nacionais e imprimir um sentido social à habitação para todos. Deste modo é preciso aplicar a toda a construção os critérios que se reservavam até agora para a habitação dita económica, e por forma a que:
a) se resolva o problema habitacional do maior número possível de famílias num dado período;
b) as casas construídas tenham condições de habitabilidade consideradas suficientes.
Esta perspectiva coloca-nos perante o facto de que a habitação económica não deve ser um sector, mas tem de ser a totalidade: o económico, como o social, não se pode apenas aplicar a uma parte – implicam o conjunto.
Deste modo, o estabelecimento de níveis habitacionais, por exemplo (o «standard»), só tem sentido se for inserido no quadro económico-social de um plano, tendo em conta objectivamente as necessidades da população e os recursos do País – avaliados ambos não no sector restrito de uma classe, mas em relação ao conjunto da Nação.
E ainda que considerássemos a habitação económica como um sector restrito, bastaria a necessidade de a enquadrar na habitação em geral para que fosse imprescindível estudar todo o conjunto. Esta necessidade não se tem feito sentir até à data porque as realizações têm sido muito reduzidas e a consciência da situação nem sempre foi muito nítida. Mas já que se abrem perspectivas para um incremento das iniciativas e que a gravidade das nossas carências não pode ser ignorada, é imperioso considerar todos os sectores da produção e ordenar todos os empreendimentos a um fim primordial que é dar uma verdadeira casa a todos os portugueses.
Assim, no estudo que se segue, a habitação económica é encarada em toda a sua amplitude, e não apenas dentro do âmbito tradicional ou limitada aos quadros da Previdência, embora a esta possa caber grande papel na obra a realizar.
Para tanto, torna-se necessário em primeiro lugar o estudo rigoroso da nossa situação actual, para que todo o esforço o seja exactamente onde é mais necessário e útil.
II- ESBOÇO DA SITUAÇÃO ACTUAL
Conforme se encontra explicado no anexo a esta exposição, as nossas necessidades em habitações no decénio que terminou em 1960 teriam sido de umas 600 000 habitações; para se chegar a este número, no entanto, teve de se admitir que as reposições do nosso património se limitariam às resultantes do envelhecimento, depois de 123 anos, e do desaparecimento por acidente ou desvio funcional. Admite-se assim a modesta hipótese de a reposição resultante da falta de condições mínimas das habitações não ser considerada directamente, isto é, que só estaria terminada dentro de 123 anos.
Também se concluiu naquele estudo que, por no mesmo decénio se terem construído 280 785 habitações o «deficit» inicial que era em 1950 de umas 250 000 habitações passou em 1960 a ser da ordem das 300 000 habitações.
Lá se vê ainda que para cumprir o programa habitacional determinado teríamos de incrementar as produções de telhas e tijolos de modo a quadruplicá-la, de cimento de modo a acrescê-la de 12%.
Cabe ainda esclarecer que a construção de 60 000 habitações por ano, se for convenientemente estudada e planeada, representa um encargo financeiro da ordem dos 4,8 milhões de contos, incluindo terrenos, urbanização e edificações complementares (culturais, comerciais, sanitárias, assistenciais, administrativas e outras), estas últimas na proporção duns 60% (os outros 40% supostos suportados por outros sectores da Economia Nacional).
Finalmente refere-se como dado interessante que das 280 785 habitações construídas no decénio findo em 1960, 261 498 (93,1%) couberam à iniciativa particular e 19 287 (6,9%) à acção directa ou indirecta do Estado; destas últimas, 2 423 (12,6%) foram casas de renda económica, construídas pela Previdência, sendo as restantes casas económicas casas para as classes trabalhadoras, casas para pescadores e casas de renda limitada.
III – NECESSIDADES DE UMA POLÍTICA DE HABITAÇÃO
Uma vez conhecida a situação actual, tanto no que respeita às necessidades (presentes e futuras) como aos meios de que actualmente dispomos para as satisfazer, torna-se indispensável definir uma política de habitação, através da formulação dos objectivos a atingir e da estruturação dos meios para lhe dar execução.
Esta política enquadrar-se-à naturalmente na política geral do Estado, tendo presentes as necessidades do desenvolvimento económico e as exigências de carácter social, contraditórias apenas a curto prazo, sabendo-se que os factores de ordem social podem, dentro de certos limites, contribuir eles próprios para o desenvolvimento económico.
Nestas exigências de carácter social, deve dar-se relevo ao sentido de apoio à família que implica a construção de habitações, sem esquecer que existe uma relação entre as condições de habitação e o rendimento nacional.
De acordo com a recomendação do B.I.T. (sessão de 1961), «a política da habitação deve ser coordenada com a política social e económica geral, de modo que a habitação dos trabalhadores possa beneficiar de um grau de prioridade, baseado por um lado nas necessidades a que tem de responder e por outro nas exigências de um desenvolvimento económico equilibrado».
IV – FINANCIAMENTO E POLÍTICA DE RENDAS
As actuais fontes de financiamento da habitação têm sido, numa proporção esmagadora, o capital privado (93,3% em 1960), sobretudo o de tipo lucrativo (construção de casas para rendimento nas zonas urbanas), os capitais da Previdência e finalmente os do Estado (este em proporções diminutas).
O grande volume de construção executado pela iniciativa privada de carácter especulativo tem sido apoiado em larga medida na concessão de crédito dos fundos públicos (sobretudo através da Caixa Geral de Depósitos), mas não oferendo em contrapartida todos os benefícios de carácter social que seriam possíveis. Quer dizer: tal concessão de créditos tem-se baseado exclusivamente em critérios puramente financeiros de aplicação de capitais deixando assim perder-se a oportunidade para se fixarem benéficos condicionamentos de ordem técnica e sociológica que teriam podido conferir às centenas de milhares de habitações construídas neste regime um carácter de adequação às necessidades, que quase inteiramente lhes falta.
Quanto aos capitais da Previdência, é sabido que o condicionalismo a que estão sujeitos não permite a sua aplicação generalizada relativamente às classes menos favorecidas da população, que são justamente as que constituem a grande maioria do povo português.
Efectivamente, há muito se reconhece que uma política de fomento da habitação social não pode dispensar uma decidida intervenção do Estado no plano financeiro, competindo-lhe, como entidade impulsionadora e coordenadora, tanto o encaminhamento da iniciativa privada no sentido de conferir à habitação um carácter social, como o de apoio directo ao sector público e ao sector privado não especulativo (Previdência, cooperativas, construção pelo próprio, etc.).
Este apoio financeiro destina-se a cobrir a diferença entre as exigências de rentabilidade do capital e as possibilidades económicas da generalidade da população, e pode abarcar as seguintes modalidades:
1 – Fornecimento de subsídios não reembolsáveis para a execução dos programas estatais ou para a subvenção de outros obedecendo a determinadas características;
2 – Concessão de capitais não vencendo juros e reembolsáveis a longo prazo;
3 – Concessão de empréstimos a juros mais baixos e prazos mais longos do que os normais no mercado livre;
4 – Fornecimento de garantias a estabelecimentos de crédito e instituições de previdência com vista a facilitar os empréstimos e aplicações de capital a um juro baixo;
5 – Concessão de isenções de carácter fiscal suficientemente amplas para imprimirem decisivamente um sentido social à iniciativa privada.
O facto de apenas 6,7% dos fogos construídos nos centros urbanos se poder considerar de carácter social pode explicar-se em larga medida pela insuficiência da intervenção estatal neste domínio. Com efeito, das modalidades atrás referidas tem-se adoptado sobretudo entre nós as nºs 1 e 2. Mas o fornecimento de subsídios não reembolsáveis tem sido ínfimo em relação às necessidades e as isenções fiscais têm sido aplicadas através de uma legislação defeituosa que não tem permitido que se atinjam as suas intenções de carácter social.
A iniciativa privada de carácter individual (construção pelo próprio) foi objecto de legislação recente – lei 2092 – que embora de aplicação sempre limitada, pode no entanto ser ampliada mediante acertos sucessivos indicados pela própria experiência.
No âmbito desta lei, os capitais da Previdência, aos quais está fixada, por imperativo da sua função específica, uma rentabilidade demasiado elevada para atender às necessidades da maioria da classe trabalhadora, podem beneficiar de subvenções do Fundo Nacional de Abono de Família, já dentro da orientação de um sentido social. No entanto, esta possibilidade será necessariamente limitada, não podendo ter a amplitude exigida pelas necessidades.
Ainda dentro do sector não lucrativo, as formas cooperativas de construção não têm merecido qualquer apoio do Estado constituindo este facto uma das mais graves lacunas, sobretudo num país de fracos recursos, em que todas as energias latentes deverão ser aproveitadas.
Como norma geral, competirá ao Estado exercer o apoio financeiro que só ele está em condições de poder prestar, por forma a serem estimuladas e canalizadas no sentido conveniente todas as possibilidades do capital privado dos diversos ramos, através das modalidades mais indicadas para cada caso. Deste modo será possível, ainda que com capitais do Estado relativamente limitados (mas no entanto em volume muito maior do que até aqui) fazer render socialmente ao máximo os capitais de origem privada, imprimindo à construção de habitações um nítido carácter de serviço público.
No que respeita à política de rendas, importa dar-lhe um sentido vincadamente social, por forma que os encargos com a habitação sejam proporcionais aos recursos das diferentes camadas da população.
Devem urgentemente pôr-se em prática, de uma forma generalizada, princípios como o da compensação de rendas num âmbito tão amplo quanto possível e sua actualização, sobretudo nas habitações gozando de regime especial (casas de renda económica e renda limitada, por exemplo), de modo a acompanhar o aumento da capacidade de pagamento de muitos dos moradores.
Ao mesmo tempo, enquanto não é possível fornecer alojamentos adequados a todos, deve pôr-se em prática o sistema de subsídios de renda, concedidos em regime semelhante ao dos abonos de família, conforme a recomendação do B. I. T. (sessão de 1961).
V – POLÍTICA DE TERRENOS
Não há qualquer possibilidade – e a experiência de muitos países o comprova – de resolver o problema da habitação sem um conjunto de medidas que permitam às entidades construtoras dispor de grandes quantidades de terrenos a custos compatíveis com os objectivos sociais em vista. Em certo sentido, pode mesmo dizer-se que a política do solo é a pedra de toque de uma política de habitação.
Com efeito, ao enfrentar-se este problema da falta de alojamentos, verificam-se carências de toda a ordem: de capital, de mão de obra, de técnicos, de materiais de construção, de organização técnica e administrativa, de espírito social, etc., etc. De tudo isto temos realmente muita falta , falta que não podemos superar de um dia para o outro. Mas ao menos uma coisa temos em abundância: terrenos. E é precisamente a dificuldade em obter terrenos que constitui hoje o mais forte travão à construção de casas.
Sabendo-se que o custo de uma habitação, pagável sem juros em 20 anos, conduz só por si a uma prestação mensal incompatível com as possibilidades da grande maioria das famílias que hoje as não têm, compreende-se facilmente como não é possível agravá-lo com custos de terrenos que no mercado livre chegam a atingir já hoje mais que o custo da própria construção.
Para combater este absurdo, recorreu o Governo a medidas de expropriação que se têm mostrado praticamente ineficientes no domínio da habitação.
Algumas soluções mais enérgicas, tendentes a eliminar este grande obstáculo, tais como: criação de fundos destinados a compra antecipada de terrenos pelos organismos dedicados à construção de habitações sociais ou pelas Câmaras que a eles cederiam sem lucros; declarações de utilidade pública para os referidos terrenos permitindo utilização imediata antes da conclusão dos processos de expropriação; constituição de tribunais com carácter permanente com vista a um tabelamento dos terrenos, etc., não têm conduzido, nos países que as têm aplicado, a resultados inteiramente satisfatórios.
Põe-se aqui uma questão de princípio: um terreno destinado ao uso da comunidade não pode estar sujeito na sua aquisição a uma mais valia beneficiando o proprietário e que resulta afinal de obras feitas por essa mesma comunidade.
Além disso, o preço da aquisição de terrenos para os empreendimentos de carácter social não deve depender do mercado livre dominado pela especulação. Ao mesmo tempo, o regime a estabelecer para estes empreendimentos deverá alargar-se a todos os sectores da habitação, mesmo o de carácter privado.
Deste modo, a especulação só poderá ser impedida por medidas decisivas, que poderão ser, por exemplo:
1 – tabelamento por zonas, de todo o terreno com interesse urbanístico, impedindo-se o particular de se apropriar da valorização que pudesse vir a obter-se a partir da data do tabelamento pela sua transacção, aluguer ou utilização própria;
2 – criação de um fundo de financiamento que permitisse aos Municípios a compra ou a congelação de todo o terreno considerado urbano ou urbanizável aos preços de tabela fixados.
Dentro desta perspectiva, deve considerar-se o importante papel que os capitais da Previdência podem desempenhar neste capítulo.
A meta a atingir será que o terreno urbanizável esteja à disposição de toda a comunidade, que o poderá utilizar em condições compatíveis com os objectivos exigidos por uma política nacional de habitação.
VI – COORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA
Como condição prévia, não só para a formulação de uma política de habitação, mas até para o estabelecimento de um programa, concluiu-se no seminário das Nações Unidas dedicado aos países em vias de industrialização que se torna necessária a existência de um único organismo coordenador.
Com efeito, só um organismo situado a alto nível poderá promover os estudos e fazer as opções necessárias para a solução do problema posto pela grande disparidade entre as necessidades e os recursos disponíveis no que toca à habitação. O problema consiste numa questão de prioridade, por um lado, do sector habitacional em relação à economia geral, e por outro, dentro deste sector em relação às diferentes necessidades.
A existência deste organismo coordenador, se pressupõe uma centralização para a definição das linhas gerais de uma política e para o estabelecimento dos programas, não implica, por outro lado, a centralização da execução ou das iniciativas, que devem de preferência ficar a cargo de entidades locais ou sectoriais.
Tem-se por certo que uma decisão no sentido de enfrentar e resolver a crise habitacional se há-de traduzir necessariamente na criação de um organismo coordenador, pois se julga concludente a experiência de outros países e a nossa própria acerca da sua indispensabilidade. Em Espanha, por exemplo, o Plano Nacional da Vivenda, publicado em 1961, não teria sido possível sem a criação prévia do Ministério da Vivenda, já em 1957.
VII – PROGRAMAS HABITACIONAIS
Como instrumento indispensável de uma política da habitação, terá de estabelecer-se um plano ou programa nacional da habitação a longo prazo, tal como se concluiu na já citada reunião das Nações Unidas: «Um programa de fomento habitacional é o factor vital do planeamento da construção de habitações e é indispensável elaborar esse programa em países com uma taxa de industrialização rápida e que estão a sofrer modificações demográficas e sócio-económicas».
É evidente que, para combater um mal, é necessário conhecê-lo na sua verdadeira dimensão e, por outro lado, pôr em acção os meios que permitam suprimi-lo em dado espaço de tempo.
Este programa pressupõe assim o conhecimento da nossa situação carencial no presente e no futuro e dos meios de que dispomos actualmente para a combater. E implica por outro lado o estudo de novos meios a pôr em prática, à luz dos recursos utilizáveis que permitam resolver o problema em dado prazo.
A dimensão do programa dependerá assim, por um lado, do volume de investimento que se poderá aplicar e, por outro, dos meios materiais que existam ou possam ser criados (materiais, mão de obra, organização, etc.).
Deverá incluir tanto o sector público como o privado nas suas diversas modalidades, aquele com um carácter mais preciso, este com um carácter mais aproximado. O programa terá um primeiro aspecto de âmbito nacional no plano económico e desdobrar-se-á em planos parciais ligados ao planeamento territorial e articulando-se com outros planos sectoriais (comunicações, fomento industrial, reorganização agrária, etc.).
Em face da grande desproporção entre as necessidades e as possibilidades de realização, impõe-se estabelecer uma ordem de prioridades para a satisfação daquelas necessidades, por forma que a utilização dos recursos seja feita exactamente onde e como pode ser mais útil, tanto no aspecto do rendimento quantitativo (o maior número de fogos possível), como no qualitativo (satisfazendo os requisitos mínimos de habitabilidade), como ainda na sua projecção social. De uma forma geral, deve dar-se prioridade, por um lado, às necessidades habitacionais derivadas de novos empreendimentos económicos e, por outro, à melhoria da habitação das classes mais mal alojadas.
A propósito, deve dizer-se que a aplicação dos nossos recursos financeiros e industriais na construção de habitações em regime de mercado livre, dirigida sobretudo para as classes mais abastadas, é feita no fundo em detrimento da parte da população mais mal alojada. Esta situação pode considerar-se intolerável, impondo-se portanto o condicionamento do sector privado, por forma a dirigi-lo no sentido de se atender prioritariamente a estes casos.
Para este efeito, os poderes públicos podem normalmente lançar mãos de dois meios: a ajuda financeira (em forma de empréstimos ou de isenções) e a concessão de terrenos, obrigando os construtores a respeitarem não só normas mínimas como também limites máximos, contrariando as construções de luxo que o nível económico do País não pode comportar.
É este um dos aspectos em que se salienta com maior evidência a inter-relação entre o sector público e o privado, uma vez que o financiamento de ambos é retirado da parte do investimento nacional que pode atribuir-se à habitação.
CONCLUSÕES
I – A habitação económica só tem sentido se for ordenada a um objectivo de carácter social. Não pode portanto confinar-se a um sector da população, mas sim à sua totalidade, inserindo-se no contexto económico-social do povo português.
II – Perante uma situação que se pode considerar extraordinariamente grave, até porque a falta de dados concretos não permite medir toda a sua extensão, importa que se faça a avaliação das nossas necessidades presentes e futuras, tendo em conta a carência actual de habitações acessíveis aos necessitados, o aumento demográfico, os movimentos migratórios, a substituição de casas arruinadas ou incapazes, etc.
Para tanto, é indispensável a elaboração de estatísticas adequadas e completas.
III – Por outro lado, é necessário que, paralelamente, se promova o balanço dos recursos que podem ser atribuídos à habitação, incluindo aqueles que possam ser utilizados, ainda que à custa de reformas estruturais.
IV – Em face dum conhecimento da situação, deve definir-se então claramente uma política da habitação e criar-se um único departamento coordenador responsável pela sua boa orientação.
V – Deve definir-se, em face dessa política, o prazo dentro do qual o deficit existente pode ser anulado e concretizar os diversos meios a utilizar para esse efeito.
VI – Ao mesmo tempo, sobretudo enquanto não é possível oferecer alojamentos adequados a todos, deve pôr-se em prática o sistema de subsídios de renda, concedidos em regime semelhante ao dos abonos de família.
VII – Devem estabelecer-se limites mínimos e máximos condicionando o aspecto qualitativo das novas habitações por forma a obter-se o maior rendimento social e económico dos recursos disponíveis.
VIII – Não podendo aceitar-se que uma comunidade seja permanentemente privada da melhor utilização do seu terreno urbano só porque entre ela e esse terreno de que precisa, se interpõe um particular que especula com uma valorização resultante afinal de obras feitas por essa mesma comunidade, torna-se indispensável que se ponha em prática uma política eficaz do solo permitindo obter a tempo os terrenos indispensáveis, nas condições de preço compatíveis com os objectos sociais do programa, e por forma a garantir a respectiva urbanização e a construção dos edifícios complementares.
O que pode conseguir-se através de:
a) Um tabelamento por zonas, de todo o terreno com interesse urbanístico, impedindo-se o particular de se apropriar de toda a valorização que pudesse vir a obter, a partir da data do tabelamento, pela sua transacção, aluguer ou utilização própria.
b) A criação de um fundo de financiamento que permitisse aos Municípios a compra ou a congelação de todo o terreno considerado urbano ou urbanizável aos preços de tabela fixados.
Propomos ainda:
IX – Que se utilizem métodos de financiamento adequados, por forma a que os capitais dos diversos sectores sejam orientados decisivamente para a satisfação das necessidades da generalidade da população.
X – Que se ponha em prática uma política de rendas de carácter vincadamente social, adaptadas aos recursos das diferentes camadas da população e em ordem à protecção das famílias numerosas.
XI – Que estando neste momento a iniciativa privada especulativa a contribuir com a quase totalidade da construção de fogos nas zonas urbanas, torna-se moralmente imperioso que sejam tomadas as medidas indispensáveis ao controle da especulação que a envolve, para o que muito contribuirá uma actualização adequada da regulamentação dos princípios defendidos na legislação em vigor.
Ao mesmo tempo deve ser dada a justa protecção à iniciativa privada não especulativa (Previdência, cooperativa, construção pelo próprio, etc.).
XII – Que se promova o estudo da habitação económica nos seus diversos planos e se preparem rapidamente os técnicos necessários para a execução das tarefas a empreender.
XIII – Que se leve a efeito uma profunda reorganização da indústria da construção, promovendo a racionalização da produção, tanto nos métodos tradicionais como nos novos processos a introduzir.
XIV – Que se integrem os empreendimentos habitacionais no quadro de um planeamento geral do País.
XV – Finalmente:
Que, no caso de serem aprovados os princípios defendidos, seja criado um gabinete constituído por peritos em habitação, exclusivamente dedicados ao estudo do assunto, no qual seriam aprofundados os temas expostos, o que permitiria estabelecer as bases do enquadramento da habitação no plano do desenvolvimento económico e social do País.
Problemas de base postos pelo estudo da habitação económica (1962)

PEREIRA, Nuno Teotónio. “O problema da habitação e os outros problemas”. Boletim da JUC, jan. 1964.
O PROBLEMA DA HABITAÇÃO E OS OUTROS PROBLEMAS
1 – Para muitos de nós, que temos o privilégio de dispor de casa, em uso exclusivo[1] e ao abrigo da intempérie, o Natal fornece anualmente a oportunidade de espaçados contactos com o mundo dos mal-alojados, que habitam velhos pardieiros nos bairros antigos ou barracas primitivas nos arrabaldes. E nessa ocasião, perante a persistência e até o desenvolvimento bem visível dos bairros de lata,[2] certas interrogações não puderam mais uma vez deixar de ser feitas: porque razão não se resolve esta trágica situação? Porque razão o problema parece até ter tendência para se agravar? Por quanto tempo estarão os pobres ainda sujeitos a estas condições degradantes? E no entanto aquilo que nos é dado observar apenas nos mostra um aspecto restrito da enorme dimensão do problema.
2 – A civilização industrial deu origem ao chamado problema da crise da habitação, que assume aspectos quantitativos provocados pelo surto demográfico e pela deslocação maciça de populações; e aspectos qualitativos por ter tornado possível o aparecimento de altos padrões de vida e o desenvolvimento tecnológico, aumentando assim as exigências de conforto. O problema é agudo, e com tendência para agravar-se, nas regiões sub-desenvolvidas ou em vias de industrialização, e está a atenuar-se (ou mesmo a resolver-se) nos países já desenvolvidos.
Trata-se pois de um mal até certo ponto inevitável da nossa sociedade actual; e a sua persistência, mesmo o seu agravamento, são consequências de um caminhar penoso e desordenado na senda da industrialização. A solução da crise habitacional está assim ligada à marcha de toda a nossa economia: só quando for atingido um determinado grau de desenvolvimento é que será possível atacar a fundo a miséria do nosso habitat e porventura chegar a anular as suas carências quantitativas e qualitativas. E isto pela razão de que os investimentos necessários atingem valores tão volumosos que só poderão ser suportados por uma economia desenvolvida.
Mas estaremos assim condenados a esperar por esse dia ainda tão afastado que não se enxerga, sofrendo o empilhamento crescente de famílias nas zonas urbanas e as condições primitivas de um habitat rural arruinado? Estará assim tão dependente do crescimento económico a melhoria das condições de habitação, tanto no campo como na cidade?
3 – O problema tem de ser encarado através de um prisma diferente: a chave não está exclusivamente no montante dos recursos disponíveis: pelo menos durante alguns decénios, estará na forma como estes forem utilizados e distribuídos os respectivos benefícios.
Na verdade, um país em processo de desenvolvimento não pode consagrar à habitação senão uma pequena parte do seu investimento e, muito provavelmente, os 20% do investimento nacional bruto que temos consagrado à construção de casas nos últimos anos, são considerados, do ponto de vista económico, como excessivos e prejudiciais às urgentes necessidades do investimento directamente reprodutivo.
Por outro lado, verifica-se que “é possível melhorar o alojamento independentemente da melhoria geral do nível de vida; com efeito, em todos os países sub-desenvolvidos, os habitantes sabem construir casas por processos tradicionais, utilizando materiais estritamente locais, e por outro lado, nesses mesmos países, há mão-de-obra desempregada (e sub-empregada). É possível provocar o emprego (ou aumentá-lo) desta mão-de-obra, ao mesmo tempo que a melhoria das técnicas tradicionais através de um certo número de meios relativamente pouco custosos”.[3]
A utilização dos chamados recursos latentes, é considerada, para os países em desenvolvimento, uma exigência fundamental para ajudar a resolver (ou pelo menos não agravar) o problema da habitação.[4] Tais recursos, que ficam desaproveitados, tanto nos empreendimentos lucrativos como nos estatais, abrangem fundamentalmente três modalidades: a construção pelo próprio, a construção em regime de esforço próprio e ajuda mútua (grupos de auto-construção)e a construção através de cooperativas de habitação.
A potencialidade destes mecanismos tem dado as suas provas em diferentes partes do mundo e a adopção de métodos deste tipo, que encontram a sua melhor expressão no quadro das técnicas de Desenvolvimento Comunitário, é instantemente recomendada por toda a parte.
Entre nós, se a construção pelo próprio começa apenas a beneficiar de algum apoio legislativo, a grande massa de energia despendida é dissipada anarquicamente nos milhares de construções clandestinas que, à margem dos regulamentos e da vida urbana, se constroem nos arrabaldes miseráveis das cidades, em vez de ser incorporada organicamente em estruturas urbanas evolutivas mas planificadas. Quanto aos grupos de auto-construção e às cooperativas, a sua actividade é apenas simbólica e muitas vezes fora do verdadeiro espírito que deveria animar a sua actividade. Efectivamente, nem existe legislação adequada, nem se estimulam e orientam certos empreendimentos, nem o clima político-social é propício a este género de iniciativas, que representam, no sector da habitação, “a tendência (para os seres humanos) se associarem com o fim de alcançar objectivos que superam as capacidades e os meios de que podem dispor os indivíduos isoladamente”.[5]
Porque, na realidade, segundo a doutrina da Igreja, “no desenvolvimento das formas de organização da sociedade contemporânea, a ordem realiza-se cada vez mais com o equilíbrio renovado entre a exigência de autónoma e activa colaboração de todos, indivíduos e grupos, e uma acção oportuna de coordenação e orientação da parte do poder político”.[6]
4 – Falámos dos recursos latentes, que não são aproveitados. Mas que dizer daqueles (e são já vultuosos) que têm sido e estão sendo aplicados à habitação? Põe-se aqui um problema de justa distribuição, acerca do qual a doutrina da Igreja também é clara.[7]
Este problema pode exprimir-se em três aspectos: prioridades na atribuição das novas habitações, adopção de limites máximos e compensação de encargos com a habitação entre as várias camadas da população. Qualquer destes pontos tem sido geralmente considerado de grande importância em estudos e reuniões de carácter internacional.
No que respeita ao estabelecimento de uma ordem de prioridades, que defenda os direitos das famílias de fracos recursos mais carecidas de uma casa, a sua necessidade é imperiosa, e deve abranger não só a construção oficial, mas toda a construção de habitações, pelo menos aquela que é objecto de medidas proteccionistas. E esta prioridade será tanto mais acentuada quantos maiores forem os desequilíbrios existentes.
Na mesma perspectiva e com a mesma justificação, se inscrevem as medidas tendentes a limitar ou mesmo a suprimir as chamadas construções de luxo, que mobilizam consideráveis recursos em benefício de muito poucos.[8]
Nesta ordem de preocupações, temos ainda o problema de uma distribuição equitativa dos encargos com a habitação, que pode aliás exceder o âmbito deste sector e ter repercussão no plano nacional.
Com efeito, uma mais equilibrada distribuição dos rendimentos e dos encargos faz hoje parte dos programas de qualquer governo. Mas a sua aplicação revela-se extremamente difícil, exigindo a intervenção de complicados mecanismos tributários de compensação.
É hoje ponto assente[9] que as populações de fracos recursos não podem suportar por si sós os encargos com uma habitação decente; há que preencher a diferença entre a capacidade de pagamento e o custo das construções. Um sistema compensador aparentemente simples poderia deslocar para esta finalidade recursos que se iriam buscar às camadas de rendimentos mais elevados e que seriam aplicados sob a foram de subvenções à construção ou de subsídios de renda. Deste modo se poderia, não só resolver um problema de justa distribuição no sector do alojamento, como atenuar, por via disso, os enormes desequilíbrios existentes.
5 – Tocamos agora um aspecto que, para além de ser dos mais importantes, é certamente o mais flagrantemente injusto, o mais escandalosamente desumano, quando se trata de países de fracos recursos. Referimo-nos ao problema dos terrenos, que por toda a parte neste País, de uma forma ou outra, atesta o egoísmo dos proprietários, a ganância dos especuladores, a impotência ou a conivência das autoridades. Numa vila do Alentejo (este caso é geral) a população empilha-se nas casas enquanto novos casais, que se dispunham a construir uma casita à custa de grandes sacrifícios, não o podem fazer porque da meia dúzia dos proprietários que cercam o aglomerado não há um que esteja disposto a vender por preço razoável os metros quadrados necessários, para não fraccionar a propriedade. Em toda a grande cintura de Lisboa, os tratos de terreno são transaccionados sucessivamente até atingirem o preço compensador (juntamente com manobras e pressões junto das entidades responsáveis pelo planeamento urbano), que na maior parte dos casos já ultrapassa o próprio valor da construção.[10] E por toda a parte as autoridades ou simplesmente se negam a qualquer esforço para vencer a dificuldade, ou quando o fazem deparam com uma legislação retrógrada e insuficiente.
Este problema verdadeiramente basilar, que entre nós constitui certamente o maior obstáculo à realização de certos programas oficiais e a causa principal do contínuo agravamento das rendas nas zonas urbanas, tem sido agitado e referido, mesmo em reuniões de carácter oficial.[11] Mas sucede que os nossos órgãos executivos ou legislativos, mercê certamente dos condicionamentos estruturais a que estão sujeitos, têm sido incapazes de promulgar as medidas necessárias para ao menos atenuar este estado de coisas.
E no entanto, quando o assunto é objecto de discussão, é invocado o direito de propriedade para defender o regime existente. Mas a doutrina da Igreja, mais uma vez é bem clara: o direito de propriedade privada tem uma função social que lhe é intrinsecamente inerente e quando não a desempenha, cessa necessariamente o próprio direito.[12]
Trata-se do problema das mais-valias e de fazer prevalecer o princípio de que, na sua totalidade, não devem ser subtraídas às populações que as produziram.[13] O facto de ser possível defender e legalizar este latrocínio e defendê-lo em nome de um princípio basilar do Direito Natural é bem o retrato de uma sociedade corrupta.
6 – O problema da habitação está assim ligado a outros problemas: são os problemas de uma economia em crise, de uma economia velha. E é preciso que saibamos, quando se nos depara o quadro trágico de um habitat infra-humano, como numa visita aos pobres em dia de Natal, porquê esse problema não tem encontrado sequer um princípio de solução.
Na sua 1ª Mensagem de Natal, Paulo VI falou do problema da fome em termos que não atenuam a gravidade do assunto, antes a põem claramente diante das nossas consciências. Torna-se necessário, diz o Papa, promover uma economia nova, ao serviço dos pobres, para que acabe a fome no Mundo. Para o problema da casa, a solução não pode ser outra, para além de tudo o que seja possível fazer nos estreitos horizontes da nossa sociedade actual. E apetece-nos terminar com uma citação da Pacem in Terris: “Pois, quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão da sua dignidade; nos demais, no dever de reconhecer e respeitar tais direitos”.
- Na cidade de Lisboa, segundo o Inquérito às Condições de Habitação do IX Recenseamento Geral da População (1950), 27,8% das famílias viviam em partes de casa. Não se conhecem ainda os resultados referentes ao Censo de 1960. ↑
- Na cidade de Lisboa, onde o aumento percentual é possivelmente menos elevado do que em alguns concelhos dos arredores, existiam em 1961 5.679 barracas destinadas a habitação, quando em 1950 apenas 4.112 famílias habitavam as chamadas construções provisórias ou não dispunham de habitação. ↑
- G. Blachère: “L’Habitat des pays sous-développés” in Cahiers du Centre Scientifique et Technique du Bâtiment – Paris. ↑
- “A mobilização de todas as iniciativas locais, com vista à construção do maior número possível de habitações, é particularmente importante nos países em vias de desenvolvimento e as possibilidades destes países nesse domínio são consideravelmente maiores do que nos países mais desenvolvidos”, das conclusões do Seminário promovido pelas Nações Unidas em Zagreb, 1961. In Enquêtes sur les habitations et l’établissement des programmes de construction de logements, notamment dans les pays em cours d’industrialisation, nº 62. II. E/Mim. 8, Genève 1962, p. 38 ↑
- Mater et Magistra – cap. II ↑
- Idem ↑
- “Donde se segue que a riqueza económica dum povo não resulta somente da abundância total dos bens, mas também, e mais ainda, da sua real e eficaz distribuição conforme a justiça”. Idem. ↑
- “Uma política que procure a construção do maior número possível de alojamentos, poderá utilmente prever medidas tendentes a reduzir a construção de habitações luxuosas, que não contribuem para o desenvolvimento económico.” Nações Unidas, ob. citada, p. 38. ↑
- “Na maior parte dos países democráticos chegou-se de vez à conclusão que tem de considerar-se normal que no sector da habitação social os poderes públicos devam suportar, de uma maneira ou de outra, uma parte dos encargos de alojamento de uma fracção considerável da população.” L. Wynen, relatório apresentado à Comissão da Habitação Social da U.I.O.F. (in Familles dans le Monde, sept.-déc. 1962). ↑
- É por isto que muitas casas não encontram inquilinos que possam pagar as rendas (só na Amadora há cerca de 1.000 fogos nestas condições), ou então obrigam à instalação de várias famílias na mesma habitação. ↑
- “Não podendo aceitar-se que uma comunidade seja permanentemente privada da melhor utilização do seu terreno urbano, só porque entre ela e esse terreno de que precisa se interpõe um particular que especula com uma valorização resultante afinal de obras feitas por essa mesma comunidade, torna-se indispensável que se ponha em prática uma política eficaz do solo, permitindo obter a tempo os terrenos indispensáveis, nas condições de preço compatíveis com os objectivos sociais dos empreendimentos, e por forma a garantir a respectiva urbanização e a construção dos edifícios complementares” – das Conclusões do 2º Colóquio Nacional do Trabalho, da Organização Corporativa e da Previdência Social – Lisboa, 1962. ↑
- “Um outro ponto de doutrina constantemente proposto pelos Nossos Predecessores é que ao direito de propriedade privada sobre os bens é intrinsecamente inerente uma função social.” – Mater et Magistra, cap. II“O direito de propriedade privada está subordinado ao direito de todos os homens a usar dos bens terrenos, isto é: a fruir do bem-estar que a sociedade de facto lhes pode oferecer. É um instrumento jurídico ao serviço de uma exigência mais profunda do Direito Natural; na ordem prática (nas suas formas concretas) justifica-se na medida em que serve efectivamente essa exigência”. Adérito Sedas Nunes – Princípios de Doutrina Social, 1ª edição, p. 106. ↑
- “… Não pode haver dúvidas nenhumas sobre a circunstância de que entre os vários factores da produção não se encontram certamente os proprietários das áreas que beneficiam de mais-valias: a sua atribuição aos proprietários resulta na subtracção de uma quota parte do rendimento nacional às categorias, quem quer que sejam, que as produziram. É este um fenómeno que numa sociedade bem ordenada não pode ser consentido.” Prof. Pasquale Saraceno – Relatório da Comissão italiana para o Plano – 1963. ↑

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Problemas de política habitacional”. Brotéria. Lisboa: abr. 1966, pp. 478-488.
PROBLEMAS DE POLÍTICA HABITACIONAL
1. Quando há e quando não há uma política de habitação
«Mesmo que um governo não considere a política da habitação como um sector definido e não tome nenhuma decisão especial relativa ao problema no seu todo, estará a praticar, mesmo assim, uma determinada política. Mas essa política será mais o resultado de diversas medidas isoladas do que um programa estruturado. E isto passa-se quando se intervém, por exemplo, na contribuição predial, na remuneração do capital, na taxa de juro, no ordenamento territorial, nos esforços para aumentar ou restringir os investimentos, na política da mão-de-obra, dos salários ou preços, etc.».
Esta simples observação, feita por um grupo de economistas que no ano passado se reuniu em Inglaterra para estudar os aspectos económicos da habitação[1], mostra que uma política da habitação feita do avesso, não orientada em função de uma lógica própria, mas resultante de medidas parcelares relativas a outros sectores, não deixa de ter efeitos que podem ser determinantes em ordem ao agravamento ou à superação da crise habitacional.
Mas não é a isto que se poderá chamar com propriedade uma política de habitação. Nem mesmo quando se verifica a existência de um abundante caudal legislativo ou ainda um vultuoso investimento no sector – porque pode acontecer que os efeitos de uma política de omissão sobrelevem a tudo isso. E, ao contrário, pode admitir-se a existência de uma política, ainda que a produção legislativa seja sucinta e parcos os recursos votados à habitação; ou até se pode inclusivamente dar o caso de a grande maioria das novas habitações se localizar, se construir, se vender, arrendar e ocupar à margem de quaisquer orientações governativas ou de qualquer espécie de planeamento – e mesmo assim, existir uma política – neste caso, a do laissez faire. Mas esta política, para o ser efectivamente, terá de ser intencional, fundamentada e proclamada. Porque, se isto acontecer assim, mas se se disser que a política que se pratica não é esta, mas outra, que visa objectivos sociais, que se enquadra num planeamento global, que postula uma intervenção activa em ordem à solução da crise e critérios de prioridade na utilização dos recursos, etc., etc. – então não se pode dizer que exista uma política de habitação.
Porque, na verdade, uma política pressupõe coerência entre o que se proclama e o que se faz, pressupõe um sistema lógico de relações entre os objectivos propostos e os instrumentos que efectivamente condicionam a actividade do sector. E, se admite a intervenção, implica uma atenta observação da conjuntura e providências oportunas em ordem a corrigir desvios, superar dificuldades ou canalizar recursos. Pressupõe ainda que os instrumentos legislativos, ordenadamente articulados, sejam seguidos na sua aplicação, ajustados à prática, completados ou mesmo substituídos, se é que não foram atingidos os objectivos visados.
E entre nós, qual é a situação, à luz desta problemática? Parece clara: o Plano Intercalar de Fomento inclui entre os seus objectivos, no sector da habitação, a estruturação de uma política habitacional, apta a funcionar no início do próximo plano de Fomento – o que não deixou de suscitar alguma controvérsia, sustentando-se, exactamente, que já temos uma política de habitação. E efectivamente, algo do que se disse atrás, num plano de generalidade, pode aplicar-se ao nosso caso.
Mas tentemos agora abordar o problema de uma forma mais ordenada: quais os tempos em que se desdobra uma política, para ter este nome? Basicamente – e isto para uma qualquer política – haverá pelo menos: a delimitação do objecto; o conhecimento das necessidades; a avaliação e atribuição dos recursos; a fixação dos objectivos; e finalmente a disposição dos instrumentos de execução. Na verdade, uma política precisa pelo menos disto. E precisa ainda de algo mais: o empenho efectivo, a firme determinação de enfrentar, senão de resolver, o problema que é a sua própria razão de ser.
Sem qualquer preocupação de análise sistemática, vejamos alguns aspectos de incontestável interesse relativos aos tópicos atrás indicados, aspectos-chave na definição de uma política de habitação.
2. A delimitação do objecto: novas dimensões
«A história da habitação económica mostra que as primeiras realizações oficiais em matéria de alojamento se dirigiam para determinadas categorias da população, que tinham especiais dificuldades em resolver o seu problema habitacional… Tal concepção, que teve a sua expressão urbanística nos bairros económicos, está hoje francamente ultrapassada pelas necessidades, uma vez que só em Lisboa, por exemplo, quase metade das famílias não dispõe de casa em utilização exclusiva, e carece, portanto, urgentemente, de habitação. Na realidade, o problema, que começou por ser só de certos grupos mais desfavorecidos, atinge hoje praticamente a generalidade da população»[2].
Isto significa que o chamado problema da habitação ganhou uma nova dimensão, o que se compreende facilmente se se pensar que o principal factor que o determina não é o crescimento global da população, mas sim a sua redistribuição no território. E isto, que por vezes no passado foi considerado como uma anomalia do corpo social, acidental e curável – a emigração em massa para as zonas urbanas – não é senão uma consequência inelutável do próprio processo do desenvolvimento: a passagem de grandes massas de população activa do sector primário para a indústria ou para os serviços não se faz normalmente sem deslocações maciças. E esta é uma das razões (juntamente com o aumento dos requisitos de conforto) pelas quais as necessidades de habitação aumentam com o próprio crescimento económico. Daí a característica de saco sem fundo que a crise habitacional apresenta, mesmo nos países que se dispuseram seriamente a debelá-la[3].
É por isso, justamente, que tal crise não se resolve com medidas parcelares ou episódicas, mas com um conjunto de providências inserido no próprio processo do desenvolvimento, numa perspectiva global.
E neste factor radica uma outra nova dimensão: a espacial. Já não é à escala dos pequenos bairros que se pode enfrentar o problema, mas à escala de extensas zonas urbanas. E daí o não ser permitido agora falar de habitação sem falar de urbanismo, tanto mais que, por outro lado, a evolução social se processa no sentido de que «a casa não é uma célula estanque; donde se segue que a noção de alojamento deve abranger não só o núcleo familiar, mas todo o meio envolvente. É o bairro e não a casa, enquanto construção individual, que deve ser a nova unidade…»[4]
Tendo em conta esta nova dimensão, nos diversos aspectos apontados, resulta que o problema da habitação podia antes resolver-se construindo casas, mas agora só o poderá ser construindo cidades. Assim se torna evidente que uma política que pretenda basear-se na construção de casa própria, sobre um lote de terreno situado algures e acessoriamente alguns bairros aqui e ali, é uma política que nem sequer sabe apreender a dimensão do seu próprio objecto.
Em termos de política habitacional, os aspectos focados, que fazem descobrir mais amplas dimensões, não esgotam no entanto a problemática com que uma administração atenta se tem que defrontar, pois há realidades de outra ordem que actuam em sentido restritivo. Um conceito que nos vem da América Latina coloca-nos no centro de uma outra questão: «O problema habitacional é a diferença que existe actualmente entre o valor das habitações existentes e o valor do capital material, social e financeiro disponível para ser investido na habitação».[5]
Isto tem suma importância, porque mostra que as massas populacionais afectadas pela crise do alojamento podem dividir-se em dois grandes grupos: aqueles que teriam recursos para pagar a utilização de uma casa normal, mas que as perturbações que actuam no sector, impedem de satisfazer essa necessidade (especulação com os terrenos, falta de mão-de-obra ou de materiais, carência de capitais, etc.) e aqueles cujos réditos são tão baixos que não teriam essa possibilidade. No1º caso, verifica-se um desequilíbrio entre o poder aquisitivo de uma dada população e uma oferta insuficiente: é o problema habitacional puro; no outro caso, uma situação típica, generalizada a outros sectores das necessidades elementares, de incapacidade de consumo, e que só poderá ser resolvida no âmbito de um processo de desenvolvimento global da população interessada. Em geral, pode dizer-se que os grupos de população já radicados na vida urbana e com rendimentos ao nível da indústria ou dos serviços estão no 1º caso, pertencendo ao outro as populações das regiões agrárias retardadas.
Esta distinção, se não importa a um reconhecimento das necessidades de alojamento em termos absolutos, é da maior importância quando se passa à atribuição dos recursos e sobretudo à escolha dos meios de actuação. Porque, ao confundir-se um problema de habitação com uma situação de subdesenvolvimento, procurando solucionar uma carência parcelar resultante dum quadro de insuficiência global causal, estão a viciar-se os termos do problema do alojamento, alargando-o muito para além dos limites que lhe competem.
3. O conhecimento das necessidades: a realidade que se impõe
O que se disse atrás já pressupõe um certo conhecimento da situação nas suas linhas gerais de evolução. Mas quanto ao conhecimento concreto da realidade? É o momento de passarmos a considerar o nosso quadro de observação nacional, através de uma rápida retrospecção.
No passado recente, duas obras pioneiras de interesse fundamental apareceram: o Inquérito Habitacional na cidade de Lisboa, organizado pelo Dr. Jorge Niny e publicado pela D. G. da Saúde Pública em colaboração com o I.N.E. em 1941; e o Inquérito à Habitação Rural, cujo 1º volume, elaborado pelos Prof. Lima Basto e Henrique de Barros foi publicado em 1943. Foi através destes documentos que se teve pela 1ª vez uma notícia objectiva da situação do habitat no País. Mas, a despeito do quadro trágico que documentavam, a sua influência foi nula: o ideal da casa portuguesa continuou o seu curso, pois, para quem não quisesse ver a realidade relatada, as soluções pareciam ao alcance de uma função assistencial, através de algumas verbas votadas pela administração para a demolição dos bairros de lata de Lisboa e das ilhas do Porto. E estávamos na infância do problema habitacional, muito longe da crise generalizada que a industrialização, então incipiente, iria desencadear.
Foi preciso chegar o ano de 1952 para que uma nova revelação se fizesse sentir um pouco mais: os resultados do 1º Inquérito às Condições de Habitação, realizado pelo I.N.E. quando do Censo de 1950, foram apurados à pressa para apresentação a um congresso internacional que então se reunia entre nós. E ficou a saber-se, nessa altura, por exemplo, que 30% das famílias de Lisboa viviam em barracas ou em partes de casa[6] e que, no conjunto do País, 64% das casas não dispunham de um mínimo de instalações sanitárias.
Este panorama, acentuado em 1960 nos seus aspectos mais críticos, retrata uma situação a uma escala muito maior e em evolução crescente, cuja melhoria já não é possível sem a adopção de medidas de base de um âmbito muito vasto, como agora já se reconhece, até em documentos oficiais.
É neste contexto que aparecem, finalmente, os primeiros estudos sobre a situação do alojamento à escala do País, com a publicação de nada menos do que 5 estimativas das necessidades no espaço de 4 anos, referentes ao deficit carencial existente em 1960, por ocasião do último censo, e que mostram resultados que variam entre 250 000 e 500 000 fogos[7].
A diversidade dos números apresentados denota que os critérios de avaliação e os próprios métodos utilizados não foram idênticos, sem esquecer ainda que os dados disponíveis se prestam em muitos casos a interpretações diversas ou obrigam a formular hipóteses arbitrárias.
O que interessa – isso sim – é que a ordem de grandeza das necessidades não deixe lugar a dúvidas sobre o alcance das medidas que se torna necessário adoptar para que a superação da crise possa ser apontada como uma meta a atingir, ainda que a longo prazo. E ao conhecimento objectivo de alguns aspectos da realidade nacional, como os que foram apontados, não é certamente estranha a circunstância de a Habitação ter sido finalmente incluída no nosso planeamento económico.
Mas se o conhecimento das necessidades carenciais é indispensável para o vigor de uma dada política, o que é verdadeiramente importante em ordem ao estabelecimento de programas de execução e a previsão das necessidades de reposição é a sua tradução espacial, em correlação com planos de ordenamento territorial. Quanto às necessidades carenciais, há que distinguir as de ordem quantitativa, que serão na generalidade resolvidas pela construção de novos fogos, e que afectam sobretudo as zonas de concentração urbana, das de ordem qualitativa, mais características das regiões rurais, e que poderão parcialmente ser satisfeitas através de programas de beneficiação.
4. Os recursos: avaliação, rateio e novas fontes
A avaliação dos recursos que se podem consagrar à habitação entra já na esfera das opções e é inseparável de uma determinada visão dos objectivos a atingir. Por outro lado, supõe ainda uma tomada de posição em face dos mecanismos estruturais existentes.
Em 1º lugar, e feito o balanço dos recursos globais disponíveis, há que considerar, e que decidir, uma ordem de prioridades na aplicação desses recursos, em termos de investimento, mão-de-obra, equipamento, etc., no quadro do desenvolvimento do País. E aqui as opções a fazer são de natureza eminentemente política.
Pondo de lado aspectos especializados de ordem económica e financeira, aliás de importância decisiva nesta matéria, parece útil considerar aqui os recursos potenciais, de feição associativa, que se poderiam obter pela introdução de conceitos ainda desconhecidos na legislação e sobretudo na prática.
É um lugar comum dizer-se que nos países que lutam com falta de meios o aproveitamento integral de todos os recursos se torna imperioso; mas é já também um lugar comum que é justamente nos países de evolução retardada que isso se torna mais difícil, visto que esse aproveitamento depende em certa medida da evolução das mentalidades, do nível geral de educação e da capacidade organizativa da sociedade.
Mas se isto é incontroverso, a experiência tem mostrado que a utilização de certos recursos latentes, sobretudo se não for atrofiada por atitudes autoritárias ou paternalistas, poderá fornecer um contributo adicional ao progresso social da comunidade. É assim, através do exercício de faculdades até então inaproveitadas, que as próprias inibições de base vão sendo superadas, ao mesmo tempo que os problemas concretos são atacados. Por esta razão, os métodos associativos são instantemente recomendados e pode dizer-se que, quase por toda a parte, as cooperativas de habitação desempenham um papel relevante na construção de habitações.
Mas, falando de cooperativas, pergunta-se: que tipo de cooperativas? Aquelas que associam temporariamente uma centena de pretendentes ao acesso à propriedade e que vão buscar à cooperativa um magro suplemento ao capital pessoal de que já dispõem e um apoio técnico e burocrático, como sucede com a generalidade das cooperativas de habitação no nosso País? Não serão estas que poderão ter qualquer peso na resolução da crise do alojamento, como prova o facto de construírem apenas cerca de 300 casas por ano. As cooperativas que poderiam ter um peso decisivo teriam de ser de tipo inteiramente diferente, alicerçadas numa ampla base popular, aproveitando dos seus sócios o sentido de cooperação de que as camadas burguesas não podem normalmente dispor e as pequenas poupanças individuais. Mas cooperativas deste tipo não podem lutar em condições de igualdade com as forças especulativas do mercado livre: precisam do apoio das autoridades no que respeita a aquisição de terrenos e a obtenção de créditos. Mas é precisamente o seu forte cunho popular e a indispensabilidade de uma autogestão que figuram na base dos seus sucessos conhecidos e explicam ao mesmo tempo o seu abandono hic et nunc.
Estas considerações feitas a propósito das cooperativas valem para todos os movimentos afins que se possam inscrever numa linha de promoção social comunitária – a sua vitalidade, e portanto a possibilidade que têm de dar um contributo à superação das carências da população interessada e ao progresso da comunidade mais ampla em que se inserem, são impraticáveis em contextos impregnados de autoritarismo e paternalismo. É por isso que, no quadro actual, experiências nesse sentido têm sido extremamente limitadas, não se vendo forma de superar as contradições apontadas.
Limitado a uma via autoritária de iniciativa e financiamento públicos e a uma via especulativa em que a construção de casas não é um produto industrial mas um objecto de comércio, um país de reduzidos recursos vê-se privado do concurso de uma fonte que poderia fornecer o necessário, quando adequadamente canalizada, para a superação de um processo contínuo de acumulação de deficits.
É verdade que pode argumentar-se com a protecção e o estímulo ao esforço próprio, para cada um construir a sua casa. Mas esta miragem, a ser prosseguida e arvorada em símbolo de toda uma política, produzirá situações graves de diversa ordem, se a sua expressão quantitativa atingir níveis substanciais.
Falando de recursos, e já num plano inteiramente diverso, uma nota é indispensável focar, relacionada aliás com algo que foi dito atrás: nos países em vias de desenvolvimento, se por um lado o aumento do poder de compra da generalidade da população poderia colocá-la em melhores condições para ter acesso a uma casa, por outro verifica-se que o respectivo custo cresce em geral mais rapidamente do que o nível médio dos rendimentos. E isto deve-se não só à variação dos componentes do custo, como ao aumento das exigências quantitativas e qualitativas na habitação, como ainda à maior incidência que os encargos com as infraestruturas e o equipamento vão tendo nesse custo. Desta incapacidade crescente, que contraria, no plano habitacional, os próprios efeitos do crescimento económico, resulta a necessidade de uma política de subsídio, envolvendo uma problemática complexa e que tenderá a traduzir-se em termos de uma redistribuição dos rendimentos.
5. Os objectivos: prioridades a definir
O binómio necessidades-recursos, analisado no quadro do planeamento global à luz de uma linha de opções, define os objectivos a atingir por uma dada política habitacional. Tais objectivos serão colocados a médio e a longo prazo, pois os mecanismos que actuam no domínio do urbanismo e da construção de casas são lentos a movimentar-se.
Alguns pontos interessa realçar aqui.
Em primeiro plano, aparece a questão das prioridades. Se no quadro de uma política nacional de desenvolvimento, se põe uma questão de prioridades – e pode acontecer que, em certas circunstâncias e obedecendo a determinadas perspectivas, a habitação não seja colocada numa 1ª linha – este problema repõe-se dentro do próprio sector na formulação dos objectivos e na atribuição dos recursos.
E aqui, muitas soluções são possíveis: atender em primeiro lugar às mais agudas situações (bairros insalubres, superlotação crítica, etc.) ou obter a maior reprodutividade imediata dos investimentos, atribuindo prioridade aos empreendimentos ligados à implantação de novas indústrias ou a projectos de reorganização agrária; promover a atenuação das carências habitacionais propriamente ditas, com objectivos no interior do próprio sector, ou fazer participar os investimentos em operações de promoção social ou de desenvolvimento económico.
Mas duas coisas parecem sobretudo importantes: harmonizar os critérios de prioridade com os objectivos do planeamento global e subordinar a estes critérios todos os investimentos a realizar no sector, pois todos provêm da parte dos recursos nacionais que é consagrada à habitação.
Outro ponto a referir relaciona-se com funções que cabem validamente a uma política de habitação como instrumento, por exemplo, de uma política de redistribuição dos rendimentos (através de mecanismos fiscais e de subsídios e do controlo das relações encargos-rendas) ou de uma política de desenvolvimento regional.
6. Os meios de execução: pedra de toque de uma política
Numa matéria de si dificilmente controlável, actuando sob a acção de mecanismos raramente bem conhecidos e movendo-se numa trama de interrelações extremamente complexas, o problema dos meios de execução assume a maior importância.
Quer se trate da estrutura técnica, jurídica ou político-social, quer dos quadros humanos indispensáveis a todos os níveis em número e qualificação fortemente crescentes, quer da organização da produção, as carências revelam-se maiores e as barreiras mais difíceis de vencer à medida que se tenta avançar na execução de uma dada política.
Nas circunstâncias actuais, dois problemas assumem particular gravidade – o dos terrenos e o da indústria da construção.
No que respeita à política do solo, trata-se em primeiro lugar – e independentemente da complexidade do problema – de inverter a própria orientação básica: uma política de defesa estreita do direito de propriedade de alguns será substituída por uma política de defesa real do direito à habitação de quase todos, no caso de se pretender debelar a crise habitacional. Neste campo, todas as medidas de compromisso têm um alcance muito limitado: «Com efeito, a experiência tem mostrado que as providências legislativas relativas à utilização do solo no processo de expansão urbana têm-se revelado as mais das vezes insuficientes, obrigando a acertos sucessivos que por vezes atingem o valor de verdadeiras mutações: a adaptabilidade a novas condições dos processos especulativos é bem conhecida, e daí resulta muitas vezes a breve prazo a insuficiência de medidas que tinham sido consideradas decisivas»[8].
No que respeita à indústria da construção, é conhecida nas linhas gerais a sua situação actual. A existência de uma mão-de-obra barata, de que beneficiámos durante anos, representa uma vantagem que tende a desaparecer; a sua contrapartida terá de ser encontrada à custa de uma profunda reorganização da indústria, a qual não se fará sem o apoio de uma política da habitação que atenda às necessidades do processo produtivo. Só a continuidade da procura no mercado da construção poderá tornar viável tal reorganização, que se processará através da introdução de novas técnicas, da reestruturação dos mecanismos administrativos das empresas e da formação intensiva de pessoal qualificado.
É no campo dos meios de execução, dos instrumentos de uma dada política que tal política se revela efectivamente o que é. Pode conhecer-se a extensão dos males, pode fazer-se ainda um diagnóstico correcto, podem apontar-se objectivos vigorosos, podem mesmo ordenar-se em certo sentido determinados recursos – mas tudo isto pode ficar no plano das boas intenções traduzidas em declarações programáticas. Não será preciso esperar pelos frutos da próxima colheita para se ver novamente se a árvore é boa ou má; o Evangelho nos ensina a interpretar certos indícios seguros: a folhagem das figueiras rebenta quando vem próximo o estio. Assim, para os instrumentos de uma política – neste caso uma política de habitação: só quando surgirem poderemos crer que essa política se fará[9].
- Conferência promovida pela Associação Internacional de Ciências Económicas em Ditchley Park, Oxfordshire, Abril de 1965. In Revue Internationale des Sciences Sociales, nº 4/ 1965. ↑
- Relatório do Grupo de Trabalho nº 7 para o Plano Intercalar de Fomento, Lisboa, 1964. ↑
- Parece que a crise habitacional começa a ser resolvida quando o simples crescimento económico se transforma em progresso social. Verifica-se, por exemplo, que nos países de economia de mercado, a viragem coincide com a adopção de medidas socializantes e de métodos de planeamento, enquanto nos países de economia centralizada a solução do problema habitacional caminha a par com um certo processo de liberalização. ↑
- LEWIS MUMFORD – Une Conception Nouvelle du Logement Ouvrier in Revue Internationale du Travail, nº 2/Vol. 75 (Fev. 1957). ↑
- John C. Turner – Recursos habitacionais na América do Sul in Architectural Design, nº 8/1963. ↑
- Segundo novo inquérito realizado em 1960, este número subiu para 41% dos agregados domésticos vivendo nessas condições. ↑
- São os seguintes os trabalhos referidos:
– Eng.º GASTÃO RICOU – II Colóquio Nacional do Trabalho, da Organização Corporativa e da Previdência Social (4ª Secção) – Comunicações / 1962
– RAUL DA SILVA PEREIRA – Problemática da Habitação em Portugal, separata da revista Análise Social / 1963
– Plano Intercalar de Fomento, relatório do Grupo de Trabalho nº 7, citado no Parecer Subsidiário da Câmara Corporativa, in Actas da Câmara Corporativa, nº 82 / 1964
– NELSON MONTES e A. VAZ PINTO – Aspectos do Desenvolvimento da Indústria da Construção em Portugal – O Colóquio da Produtividade na Indústria da Construção, 1964
– HENRIQUE VEIGA DE MACEDO – Comunicação à Assembleia Nacional in Diário das Sessões, nº 169 / 1964 ↑ - Plano Intercalar de Fomento – Relatório do Grupo de Trabalho nº 7 /Habitação, p. 181 ↑
- Cf. Plano Intercalar de Fomento para 1965-1967, Volume I – Lisboa, 1964, pp. 467 a 483
Actas da Câmara Corporativa, nº 82, 17 de Novembro de 1964 – Parecer sobre o Projecto de Plano Intercalar de Fomento – pp. 893 a 900. ↑

O CASAMENTO
Resposta ao inquérito lançado pela revista O Tempo e o Modo, tema central do número 2, 1968
A minha resposta será sobretudo baseada numa realidade pessoal, numa experiência vivida e em convicções próprias.
Projecções possíveis para o futuro, pistas de evolução com base em comportamentos observados nos outros, serão mais da competência de sociólogos, psicólogos, moralistas, etc. Posso exprimir uma interrogação ou aventar uma hipótese, pouco mais.
CONCEITO DE CASAMENTO
No questionário, não aparece uma única vez a palavra amor. É uma palavra gasta, também. Interessa, porém, reabilitá-la, mais do que suprimi-la.
Casamento, fidelidade, sexo, são formas de concretizar, viver o amor. Só através dele têm sentido. Mas importa, então, depurar o conceito que essa palavra implica. Uma das formas de amor mais minimizadas é “o amor de si próprio”. Confunde-se vulgarmente com egoísmo. Ora se alguém por espírito de doação ou sacrifício mal entendido, acaba por se aniquilar, se reduzir a zero como pessoa, deixa de poder oferecer ao outro um ser construtivo, dialogante. Só há relações inter-pessoais quando existem duas pessoas inteiras. Essa, uma das bases fundamentais do casamento. Assim, o casamento é para mim hoje a possibilidade de uma realização pessoal primeiro, para como pessoas realizar cada um com o outro e um pelo outro, a construção de uma comunidade.
NECESSIDADE DO CASAMENTO – (hipótese baseada apenas numa intuição. Há implicações sociais, morais, psicológicas, etc.)
Uma distinção: uma união de homem e mulher pode ser ou não ser institucionalizada; conforme interessa apenas os dois ou se projecta para o futuro implicando outros.
Enquanto vivida como busca, como encontro temporário, como tentativa ou experiência, a união pode não ser institucionalizada (ou não deverá mesmo sê-lo?). Estão apenas comprometidos os dois, não está a sociedade. Trata-se de uma união que não deve implicar responsabilidade perante terceiros. A nossa sociedade não concede lugar a estas uniões e todavia julgo que elas são pedidas a um tempo pela evolução social e pela natureza. Se na adolescência o ser humano está apto para a relação sexual, as condições sociais hoje implicam uma responsabilidade a dois para com os filhos a que só a união indissolúvel pode dar resposta. Porém, essa responsabilidade a dois só é viável na idade adulta, efectuada já a inserção social do homem e da mulher e a sua afirmação como pessoas. Só então elas estão aptas a fazer uma escolha definitiva compatível com a fundação da comunidade familiar.
A institucionalização é então necessária.
Do mesmo modo, no plano religioso, não será que o sacramento matrimonial adquire então, e só então, toda a sua plenitude?
FIDELIDADE
Considero a fidelidade sexual apenas um aspecto da fidelidade global, que é para mim a construção do amor através de situações que se vão sucedendo. Estão sempre em jogo dois valores igualmente importantes: liberdade e responsabilidade. Se nalguns momentos coincidem, não se põe problemas. Mas a maior parte das vezes a noção de responsabilidade está no oposto da liberdade. Há então que optar, como pessoa que se constrói precisamente através dessas opções. Parar, reflectir e tomar o peso de ambos os valores, optando continuamente. Escolher umas vezes a liberdade (que terá sempre de ser responsável), outras a responsabilidade (que deverá sempre ser livremente aceite). Portanto, fidelidade global é uma vivência permanentemente assumida: fiel a si próprio, fiel ao outro, fiel aos outros. Fidelidade não é um conceito que se arruma duma vez para sempre. É algo de fundamental que se vive.
Quanto ao aspecto particular da fidelidade conjugal (entendida só no aspecto sexual) parece-me indispensável para a “construção duma comunidade realizada um com o outro e um pelo outro”.
Quanto aos limites nos modos como se realiza a expressão sexual dentro do casamento, como em tudo, julgo serem apenas as que advêm do recto esclarecimento da consciência de cada um: o que é amor ou o que é egoísmo.
DIVÓRCIO
Até agora a procriação era uma consequência inelutável das relações de um homem com uma mulher, o que significava a indissolubilidade do casamento. A partir de hoje, em que os meios anti-concepcionais passam a estar ao dispor de todos (e por forma a não violentar a natureza nem a destruir a vida) torna-se necessário fazer a distinção já referida, entre união experimental, temporária ou acidental e união conscientemente projectada no futuro, implicando a formação de uma comunidade que ultrapassa o casal. Por isso esta última deve requerer certas condições que permitam reduzir as probabilidades de insucesso: idade francamente adulta e preparação consciente. Nesta perspectiva, em que os filhos não são um acidente nem um facto marginal, mas uma escolha deliberada nascida no âmago da própria união e inseparável dela, a indissolubilidade do casamento não se pode deles dissociar: é a criação duma nova vida, é a responsabilidade livremente assumida para com terceiros, que justifica e exige a indissolubilidade. O filho é um laço que permanece vitalmente e que não pode ser anulado, da união de um homem com uma mulher.
No plano religioso, considerando a ordem sacramental, poderá talvez admitir-se que estando o casamento ordenado também (mas não só) fundamentalmente para a criação de novas vidas, só com elas atingiria a sua total realização. Assim, no momento do compromisso mútuo, o sacramento realizar-se-ia como que em semente, que frutificaria quando uma nova vida nascesse da união, adquirindo assim a sua plenitude e por isso a sua irreversibilidade.
EXPERIÊNCIAS PRÉ-MATRIMONIAIS
Deste conceito de casamento e das condições que ele requer, as chamadas experiências pré-nupciais assumem uma grande importância, se ordenadas normalmente para uma escolha consciente e definitiva. Elas tornar-se-iam a modalidade corrente do namoro, correspondendo a uma aprendizagem e a uma selecção, o que seria de extrema importância numa preparação para o casamento. Na evolução do namoro, desde o que era feito por correspondência e de janela, passando pelo namoro de convívio exterior que é já dos nossos dias, seria esta uma forma mais completa e por isso mais profunda.
No entanto, para se inscreverem realmente numa lista de preparação estas experiências não se limitariam a relações sexuais furtivas: deveriam ter um estatuto reconhecido pelos costumes e supor uma coabitação temporária, não para prefigurarem o casamento, o que seria impossível, mas para um maior conhecimento mútuo.
Esta evolução dos costumes, se possibilita maior liberdade de relações, também implica maior responsabilidade, inserindo-se assim numa linha de progresso social, de liberdade crescente das pessoas e no afrouxamento dos condicionalismos sociais: poderia, ainda, resolver o problema ancestral das relações sexuais dos adolescentes, podendo mesmo prever-se o desaparecimento da prostituição.
Corresponderia ainda à libertação da mulher do fardo da maternidade não desejada, agora possível com a generalização de contraceptivos que não atingem a dignidade humana.
Maria Natália Duarte Silva
O casamento: resposta ao inquérito de «O Tempo e o Modo» (1968)

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Habitações para o maior número”. Colóquio de Urbanismo, Funchal: Câmara Municipal, 1969, pp. 87-100.
Intervenção em colóquio realizado no Funchal, 8 jan. 1969.
Republicado em Arquitectura, nº 110, jul./ago. 1969.
Republicado em Escritos: 1947-1996: selecção. Porto: FAUP Publicações, 1996, pp. 78-97.
HABITAÇÕES PARA O MAIOR NÚMERO
Dimensão e natureza do problema
No processo de crescimento das cidades modernas, a habitação tende a desequilibrar a estrutura urbana tradicional: as zonas de residência aumentam desmesuradamente, desenvolvendo-se em sucessivos anéis ou estendendo-se em tentáculos, cavalgando rapidamente as barreiras administrativas e naturais e deixando para trás sucessivos planos de urbanização, aliás inoperantes.
Lisboa, poe exemplo, cresce hoje mais extramuros do que dentro da cidade, e tenderá a ser assim cada vez mais. Entre os censos de 1950 e 1960, a população de Lisboa-cidade aumentou apenas de 27.000 habitantes, enquanto que a do seu aglomerado suburbano subiu de 188.000[1]. Muito provavelmente, o censo de 1970 revelará que a população deste terá igualado a da própria cidade.
Como estes aglomerados suburbanos não dispõem senão de rudimentares (e por vezes inexistentes) zonas centrais, as cidades são cada vez maiores extensões de casario compacto, imagem materializada da especulação exaustiva do solo. A função habitacional em sentido restrito, isto é, reduzida ao âmbito exclusivo do alojamento familiar e ignorando os equipamentos complementares exigidos pela vida actual, toma uma preponderância patológica, que tanto deforma a estrutura urbana, como impossibilita a criação de um ambiente verdadeiramente citadino.
É nesta perspectiva que se deve enquadrar o problema da habitação para o maior número. Não se trata apenas de uma questão de quantidade; existe um aspecto qualitativo igualmente importante, gerado pela mesma quantidade, e que implica alterações estruturais, impostas pela passagem de uma sociedade de base rural apoiada em centros urbanos a uma sociedade de raiz urbana. A nova dimensão é assim que deve ser entendida.
Quer dizer: para enfrentar o problema da habitação para o maior número, será necessário construir muitas centenas de milhar de casas – aspecto quantitativo; mas, além disto, algo mais será necessário resolver: para quem as construir?; onde as construir?; como as construir? E mais ainda: construir, não somatórios exaustivos de habitações, mas conjuntos urbanos equilibradamente organizados e equipados.
Quem são o maior número
Quem são, como vivem, onde moram, aqueles que constituem o maior número que nos interessa?
Em primeiro lugar, a população mal alojada, em sentido restrito. Quer dizer: os que vivem em condições deficientes quanto às características da célula familiar. São, efectivamente, multidões. Na zona de Lisboa, por exemplo (cidade e aglomerado suburbano) contavam-se em 1960 163.000 famílias que viviam em partes de casa, em fogos superlotados ou em construções improvisadas, isto é, mais de 50% do número total de famílias residentes.[2] Mas as más condições de alojamento não se traduzem apenas em termos de capacidade. Alguns outros indicadores são conhecidos, como os que se referem ao grau de equipamento instalado nas casas de habitação. Com referência ao aglomerado suburbano de Lisboa, em 1960, ainda 39% dos 150 mil agregados domésticos inventariados não dispunham de água canalizada; 29% não tinham esgoto de qualquer natureza; e 34% não estavam ligados à rede eléctrica. Para a zona arrabaldina do Funchal (concelho com exclusão da cidade), as mesmas percentagens eram respectivamente de 76%, 45% e 46%.[3]
Mas estes números apenas entram em linha de conta com as condições de habitação em sentido restrito, pois carências por vezes mais graves são verificadas a outros níveis de observação, à escala do bairro, da unidade de residência, do próprio aglomerado.
Dois problemas se põem sobretudo a esta escala: as deficiências de infraestruturas e de equipamentos urbanos e a marginalidade das populações. Quantas pessoas vivem privadas daquilo que a cidade lhes devia dar no que respeita a transportes, a higiene e conforto, a equipamento escolar, a diversões, etc.? Dos 534.000 habitantes do aglomerado suburbano de Lisboa, para continuarmos com exemplos desta zona-teste do crescimento urbano, quantos disporão de equipamentos de base ao nível dos da capital?
Verifica-se assim uma situação de marginalidade que afecta um número crescente de pessoas, à medida que a imigração urbana se acelera, situação essa resultante da insuficiência dos recursos consagrados pela colectividade às necessidades das populações recém-chegadas, e que tende a acumular situações deficitárias.
Podem muitas famílias dispor de boas condições de habitação quanto ao alojamento restrito, mas as características do habitat envolvente serem extremamente precárias. Podem ainda ter atingido um estatuto socioprofissional relativamente elevado, mas continuarem privados de direitos elementares de cidadania no que se refere às condições efectivas de inserção territorial.
As situações de carência que foram referidas encontram as suas causas na incapacidade da nossa sociedade em criar estruturas urbanas para responder ao fenómeno da deslocação massiva de populações provocado pela passagem de uma sociedade agrária a uma sociedade industrial. Mas esta incapacidade radica-se directamente nas condições económicas da população envolvida neste processo de imigração: quantas famílias terão possibilidade de pagar um alojamento satisfatório inserido numa estrutura urbana adequadamente equipada?
De acordo com estudos realizados para o III Plano de Fomento[4], 90% da população portuguesa não aufere rendimentos suficientes para pagar a renda de uma habitação mínima com características adequadas e, portanto, com maioria de razão, para a adquirir. O desnível entre as necessidades de habitação e os recursos individuais para as satisfazer constitui o cerne do problema habitacional; desnível abrangendo camadas da população cada vez mais vastas, na medida em que é mais acentuado nos meios urbanos sujeitos a uma forte pressão da procura; e desnível ao mesmo tempo crescente, pois têm aumentado mais rapidamente os componentes do custo da habitação (terrenos, urbanização, construção) do que os salários da população carecida.
Este problema é certamente mais grave no Funchal, em comparação com as condições médias verificadas na Metrópole, dado o alto valor dos terrenos aqui praticado, os encargos adicionais que agravam o custo da construção (elevada percentagem de materiais importados) e o relativamente baixo nível dos rendimentos familiares.
Mas um aspecto fundamental deste fenómeno de carência é o seu carácter progressivo. A pressão demográfica nas zonas em processo de urbanização, provocada sobretudo pelo afluxo de populações rurais, é agravada por factores secundários: a redução da dimensão das famílias em meio urbano (e, portanto, a necessidade de mais habitações para uma dada população); a absorção de casas de habitação por actividades do sector terciário; a eliminação constante de residências por motivo de obras de urbanização ou outras; o envelhecimento provocado pela elevação constante dos padrões habitacionais, etc. Num país em vias de desenvolvimento, onde o processo da industrialização está apenas iniciado, este fenómeno não é acidental, mas corresponde a um processo contínuo em permanente aceleração. E quando não é correspondido por uma oferta paralela de novas habitações, a crise do alojamento tende a agravar-se.
Por esta razão, o problema habitacional não pode já hoje referir-se a determinadas categorias da população, chamadas as mais desfavorecidas ou economicamente débeis: a amplitude da crise tem abarcado constantemente novas camadas, e tornou-se hoje um fenómeno colectivo à escala da generalidade da população. Estes dois aspectos do problema – crescimento acelerado das necessidades e alargamento do seu âmbito – impõem uma perspectiva radicalmente diferente da que tem sido habitualmente encarada: perspectiva que supõe esquemas planeados de desenvolvimento urbano. O problema da habitação não pode resolver-se hoje com a construção de alguns bairros, como já não podia resolver-se ontem apenas com a construção de algumas casas. Eis por que o maior número não é uma realidade estática: há que reconhecer o seu dinamismo para o colocar numa perspectiva realista que permita forjar os instrumentos necessários à resolução dos problemas que o concernem.
Efectivamente, se a carência de recursos é um facto, a carência verificada de instrumentos de actuação ainda torna mais limitadas as possibilidades de que se dispõe. Faltam os mecanismos jurídicos indispensáveis à disposição de terrenos em condições adequadas de localização e de custo; faltam os mecanismos financeiros necessários para fazer convergir os capitais em operações programadas de envergadura; faltam as estruturas administrativas conducentes à coordenação dos empreendimentos nos diferentes níveis; faltam os dispositivos que permitam superar as limitações que afectam a indústria da construção, em materiais, mão-de-obra e processos de construção; faltam, enfim, os instrumentos que permitam congregar esforços, fazer convergir recursos, minimizar os encargos.
Seria relativamente fácil mostrar que os estrangulamentos que afectam os nossos programas de habitação resultam antes de mais na falta de instrumentos adequados: a celebrada carência de recursos será apenas uma segunda barreira, que muitas vezes nem sequer é atingida.
Muito esquematicamente, traçaram-se assim alguns contornos desse grupo humano que, do ponto de vista habitacional, constitui o maior número: mal alojados; mantidos à margem do meio urbano que os atraiu; sem recursos para obter uma habitação adequada dentro dos esquemas convencionais. Grupo humano que engrossa permanentemente, com a chegada de ondas migratórias e de novas gerações à idade adulta.
Mas, algo mais: vítima também de estruturas jurídicas e administrativas que constituem obstáculos para a superação das privações a que está sujeito, e cujo carácter artificial torna manifesta a sua invalidade; dos quais o estatuto soberano da propriedade privada do solo para construção é bem a pedra de escândalo.
Construir para o maior número
Das considerações acabadas de fazer, podem extrair-se, com as cautelas que o carácter sumário do método aconselha, alguns critérios que permitam orientar acções ou empreendimentos habitacionais efectivamente dirigidos ao maior número. E à luz desses critérios fazer a seguir alguns comentários à experiência portuguesa neste domínio.
Na realidade, tem sido frequente que os empreendimentos dirigidos exactamente às populações mais mal alojadas sejam implantados em lugares segregados, fora dos circuitos de transportes públicos, desprovidos de equipamento básico. Muitas vezes ainda obedecendo a sistemas de construção precários, sem qualquer possibilidade de melhoria ulterior: os bairros de fibrocimento ou mesmo de tijolo para as chamadas classes pobres ou para os habitantes de barracas são exemplos de uma visão errada na construção para o maior número.
Efectivamente, programas habitacionais dirigidos ao maior número implicam necessariamente uma certa dimensão – o factor quantitativo não pode ser deixado de lado – ou ainda uma pressionante urgência; mas não serão empreendimentos isolados, ainda que vastos ou de emergência, que poderão contribuir para a solução do problema, tal como foi exposto atrás. Tais programas beneficiarão sempre (e talvez de forma precária) uma pequena percentagem das massas de população carecida em ritmo crescente. E podem criar a ilusão (e isto tem acontecido) de que se está a fazer algo para debelar realmente o mal.
Só serão na realidade dirigidas ao maior número as acções que se inscrevam num processo rápido de superação da situação de crise actual, bem como da absorção das necessidades previsíveis em futuro próximo; processo que considere as necessidades de habitação não apenas quanto aos aspectos quantitativos, mas também qualitativos (nível das rendas, inserção urbana, etc.); e que se encaminhe para a maximização dos recursos disponíveis e a minimização dos encargos, inserindo-se numa perspectiva de resolução progressiva.
Segundo os últimos dados conhecidos, referentes a 1967[5], a construção de habitações atingiu nesse ano, depois de uma estagnação nos dois anos anteriores, a cifra de 41.000, muito distante ainda do número médio anual necessário para a eliminação do défice habitacional em 20 anos, que é de 65.000[6], mas mesmo assim um volume jamais atingido no nosso País. Mas, pergunta-se: destes milhares de novas habitações, quantas foram, efectivamente para benefício do maior número, sabendo-se que a percentagem de fogos construídos pelo sector público e, portanto, mais dirigidos às populações necessitadas e mais ordenadamente inseridos (na maioria dos casos) em expansões urbanas planeadas, não deve ter ultrapassado os crónicos 5%? Pois sabe-se como são, em geral, os restantes 95%: ou habitações construídas pelos próprios, disseminadas pelo território, ou casas de rendimento, produto da actividade especulativa nas regiões de maior procura.
Podem, portanto, atingir-se volumes elevados de construção, sem que, necessariamente, se esteja a construir para o maior número. E pode, inversamente, construir-se relativamente pouco (num número inicial), construindo-se para o maior número, desde que, por exemplo, os investimentos sejam concentrados em empreendimentos-piloto de carácter inovador ou aplicados em programas de expansão urbana ordenada ou inseridos em reformas estruturais do sector; concorrendo em qualquer caso para a obtenção de instrumentos técnicos, jurídicos ou administrativos suceptíveis de permitirem um aumento rápido da produção de habitações, no âmbito de um crescimento ordenado das cidades, integrando ao mesmo tempo franjas marginais e recuperando zonas degradadas.
Nesta perspectiva, caberiam, por exemplo: a adopção de regimes legais permitindo a utilização do solo urbano por forma a fazer prevalecer o interesse geral sobre os interesses particulares; a organização de sistemas de financiamento e de locação que reduzissem substancialmente a distância entre os encargos com a habitação e as possibilidades económicas dos utentes; a utilização de métodos de programação, de desenho, de gestão, de execução cada vez mais rápidos, rigorosos e produtivos. Isto quer dizer também que, do ponto de vista do maior número, contam não apenas a quantidade e a qualidade dos empreendimentos, mas o seu efeito multiplicador ou generalizador, num processo em que cada acção deve beneficiar das experiências anteriores e procurar traduzir-se em novas aquisições instrumentais, de alcance cada vez mais amplo. Considerando o plano específico da expansão urbana, só este processo permitirá superar a situação actual, que consiste na chamada acção disciplinadora ou correctiva a que o planeamento tenta obrigar os mecanismos da produção, integrando ao invés estes mesmos mecanismos na expansão ordenada da cidade.
Visando mais directamente o tema geral do Colóquio, que trata do planeamento físico do Funchal, sublinham-se dois aspectos, aliás inter-relacionados, que têm a ver com a problemática da habitação e cuja acuidade aqui salta mais à vista.
Um desses aspectos é a inter-relação das unidades familiares de alojamento; na verdade, o carácter urbano que se considera condição para uma integração citadina não se alcança com a repetição exaustiva de moradias unifamiliares independentes, obedecendo a padrões herdados do habitat rural. Um índice de ocupação do solo compatível com a rentabilidade não só financeira mas social dos recursos investidos em casas e equipamentos implica formas de agrupamento das habitações, sob pena de se criarem condições de habitabilidade e de urbanização precárias. Os requisitos de privacidade, como os de sociabilidade e os de economia, exigem o agrupamento ordenado, que assumirá formas diferentes de acordo com a topografia, a estrutura da propriedade, o sistema de locação, etc. Por outro lado, as funções habitacionais não se satisfazem unicamente entre as quatro paredes de uma casa: a interdependência entre a habitação e os espaços que a envolvem, entre a casa e os equipamentos colectivos é uma característica da estrutura urbana que a evolução social tem acentuado incessantemente. Daí a necessidade da interpenetração de espaços, a dificuldade de demarcar linhas divisórias nítidas. Daí ainda a importância cada vez maior das infra-estruturas e das instalações de interesse geral para a fruição de condições de habitabilidade satisfatórias.
A experiência portuguesa
Ao longo de quase 40 anos de legislação e de realizações, a nossa experiência em matéria habitacional é variada e susceptível de uma apreciação de conjunto, que aliás tem sido feita, nomeadamente nos estudos preparatórios dos últimos planos de fomento.
Além de uma acentuada timidez nas tentativas de alteração estrutural, caracteriza-se sobretudo pela falta de continuidade: as acções empreendidas, algumas de certa amplitude, têm geralmente carácter pontual, não se aproveitando o cabedal de experiências de umas para outras.
Nas considerações que se seguem, procurar-se-á, de uma forma sucinta, passar em revista a experiência nacional, à luz dos critérios antes expostos relativos à construção para o maior número, sendo aliás fácil verificar que muito do potencial que se criou em inovação e experiência não foi depois aproveitado; e que uma boa parte dos recursos investidos, em legislação, iniciativa, estudos, financiamento, etc., não têm sido convergentes, o que se traduz necessariamente numa fraca rentabilidade.
O regime chamado das Casas Económicas, criado em 1933, teve aspectos altamente inovadores – acesso à propriedade, seguro de vida, para além do facto também novo, de se traduzir em empreendimentos programados e realizados.
Mas a sua limitada amplitude é bem patente: em 33 anos de permanente actuação (1934 a 1967), construiram-se em todo o País cerca de 13.500 habitações neste regime, o que dá a modesta média de 400 fogos por ano.
O reforço que a certa altura os capitais da Previdência vieram trazer ao sistema não resultou em aumento do ritmo das construções, pois os financiamentos do Estado, que no período inicial tinham alimentado em exclusivo este regime, foram praticamente reduzidos a zero nos últimos anos. O único passo em frente que esta modalidade registou, ao longo de décadas e realizações de rotina, foi o abandono da moradia unifamiliar e do bairro fechado como soluções tidas por obrigatórias até há bem pouco tempo.
O período do pós-guerra foi prolífero, sobretudo em matéria de legislação. Criaram-se as Casas para Famílias Pobres e as Casas de Renda Económica em 1945, os Casais Agrícolas e as Casas para Pescadores em 1946, as Casas de Renda Limitada em 1947.
As duas primeiras modalidades têm tido uma expressão quantitativa já de maior significado (respectivamente 600 e 500 fogos por ano entre 1949 e 1967) e alargadas a todo o território; as Casas para Famílias Pobres, congregando subsídios do Estado com recursos locais, e as Casas de Renda Económica, investindo importantes capitais da Previdência Social. Quanto aos restantes regimes, o seu alcance tem sido diminuto (Casas para Pescadores), praticamente nulo (Casais Agrícolas) e passageiro (Casas de Renda Limitada). Entre os anos de 1949 e 1960 – pois a partir deste ano a modalidade deixou praticamente de ter aplicação – ainda se construíram em Lisboa cerca de 800 fogos por ano ao abrigo do regime de Renda Limitada, o que mostra a respectiva potencialidade. Verificada, porém, a existência de manobras especulativas, não se quis utilizar contra elas os instrumentos previstos na própria Lei, preferindo-se o abandono puro e simples do sistema. Iniciada sob os melhores auspícios, até com projectos elaborados pelo próprio Município, este regime mostrou a possibilidade de conferir ao investimento de capitais privados na habitação um maior alcance social. Uma nova regulamentação, promulgada em 1958 com o fim de combater a especulação, que impunha até às Câmaras a obrigatoriedade de reservarem para Renda Limitada pelo menos 50% dos lotes vendidos em hasta pública, e na qual se anunciavam medidas drásticas no caso de não se atingirem os objectivos propostos, não teve qualquer aplicação, tendo-se deixado perder uma oportunidade de verificar até que ponto, e partindo da experiência já adquirida, se poderia contar com a rentabilidade social da aplicação de capitais privados na habitação.
Alguns anos antes da proliferação legislativa a que se fez referência, algo se realizou de maior importância com vista a uma política da habitação: a Câmara Municipal de Lisboa, sob o impulso do então Presidente Duarte Pacheco, iniciou uma vasta operação de compra de terrenos em toda a periferia da cidade. Foi esta operação, continuada em anos subsequentes, que tornou possível a realização dos importantes programas habitacionais levados a efeito mais tarde, nomeadamente Alvalade e Olivais; programas do maior significado na experiência portuguesa em matéria de habitação social.
O bairro de Alvalade, inteiramente planeado pelo Município e iniciado por volta de 1947, integrou variados regimes de construção, desde as Casas de Renda Económica financiadas pela Previdência até às Casas de Renda Limitada e de renda livre, e incluindo mesmo uma importante parcela construída por cooperativas de habitação. Os aspectos inovadores desta realização foram numerosos: planeamento do conjunto perfeitamente integrado na cidade e operado sobre terrenos totalmente disponíveis; tecido urbano diversificado, equipamento previsto e executado, convergência de iniciativa e de capitais de variada proveniência.
Como núcleo deste empreendimento, foi construído um conjunto de Casas de Renda Económica, com métodos totalmente inéditos, e que não voltaram a ser utilizados, nem sequer nas obras congéneres dos Olivais: elaboração de projectos-tipo, construção prévia de um grupo experimental, desdobramento da obra em empreitadas de volume industrial (500 fogos), fornecimento em conjunto de certos materiais e elementos da construção, e criação de estaleiros para o seu fabrico.
Nos empreendimentos dos Olivais (Norte e Sul), iniciados em 1960 e agora em conclusão (com excepção dos equipamentos colectivos, ainda praticamente inexistentes), os aspectos inovadores foram dados sobretudo no plano da legislação. Efectivamente, o Decreto-Lei 42 454 fixou rigidamente certas características, por forma a garantir o alcance social do empreendimento, tais como as rendas máximas por categorias, as percentagens de cada uma destas, os valores máximos a atribuir ao custo dos terrenos, etc. No plano da realização, abandonou-se toda a experiência acumulada em Alvalade, embora algo de interesse se tenha ensaiado, como a participação de um maior número de entidades na construção e uma ampla distribuição na encomenda dos projectos. Deve constatar-se, embora, que a crise da construção civil ocorrida na década de 60 apanhou em cheio este empreendimento.
Outra realização que interessa referir é a do programa para a eliminação das chamadas ilhas na cidade do Porto, prevendo a construção de 6 000 fogos em 10 anos, a partir de 1956. Os aspectos inovadores deste empreendimento, caracterizado por austeridade e disciplina por um lado limitativas, mas que permitiram a sua realização integral no prazo estipulado, traduziram-se sobretudo no plano do financiamento (pela conjugação de fontes e regimes muito diversos, incluindo subsídios do Estado e empréstimos da Caixa Geral de Depósitos) e no cumprimento rigoroso dos objectivos.
Alguma coisa interessa ainda referir quanto ao regime de mais recente instituição: os empréstimos da Previdência para a construção, aquisição ou beneficiação de casas, regime criado pela Lei 2 092 em 1958. Este sistema, cuja característica essencial se centra no apoio a particulares (indivíduos, empresas e Casas do Povo), tem mostrado um dinamismo crescente: cerca de 12 000 fogos financiados até 1967, dos quais perto de 10 mil (2 700 em 1967) para a construção ou aquisição de casa própria. Apoiando a iniciativa individual e aproveitando as pequenas poupanças, a utilidade do sistema no conjunto da legislação portuguesa é indiscutível, aí residindo o seu carácter inovador. Mas a falta de critérios selectivos na concessão dos empréstimos está a tornar-se desastrosa no plano da ordenação urbana: concebido para as zonas rurais, contribui de forma crescente para o caos das cinturas urbanas em crescimento. E o que é mais grave, alimenta a especulação e a construção de má qualidade, sobretudo através da modalidade de aquisição em propriedade horizontal, que regista uma subida vertiginosa.
Conservando os méritos do sistema, seria necessário condicionar os empréstimos a mínimos de qualidade urbana, por forma a estimular a construção de conjuntos residenciais bem localizados e organizados e adequadamente equipados. Por outro lado, deveria ser encorajado o agrupamento de Beneficiários da Previdência em cooperativas de habitação, o que está aliás no espírito da própria lei, mas não chegou a ser regulamentado.
As lacunas desta lei são típicas do que se passa com o conjunto da legislação portuguesa em matéria de habitação: a intervenção oficial faz-se por sectores independentes e segundo ângulos de visão parciais e incompletos. A criação do Instituto Nacional da Habitação, insistentemente reclamada nos últimos anos e já prevista nos recentes planos de Fomento, parece condição indispensável para que se ponha em prática uma política urbana, cuja ausência tem permitido a extensão progressiva de males a que cada vez será mais difícil dar remédio. Uma política da habitação que ignore os aspectos ligados à organização do solo nunca poderá servir efectivamente o maior número, ficando condenados todos os investimentos e esforços a uma rentabilidade social bem precária.
Os recursos não aproveitados
Toda a experiência nacional, em matéria de promoção habitacional, que foi sucintamente relatada, ignora sistematicamente os recursos potenciais das populações a alojar. E isto tanto no que se refere a habitações com carácter definitivo, como a construções intencionalmente provisórias, como os bairros de fibrocimento dos anos 40, ou ainda os programas de emergência para os desalojados pelas obras da ponte sobre o Tejo ou as vítimas das cheias de 1967 na região de Lisboa. Mesmo com sumárias condições de habitabilidade, as casas têm sido construídas integralmente pelas entidades promotoras e assim entregues aos moradores, sem qualquer possibilidade de ampliação ou completamento ulteriores.
Em consequência, como se referiu atrás, dadas por um lado as limitações de capitais e de iniciativa das entidades promotoras, e por outro o desnível entre o poder aquisitivo das populações e o custo de uma habitação normal, tudo se conjuga para que os défices habitacionais se mantenham, se é que não aumentam. Verifica-se, por outro lado, que as populações entregues aos seus recursos, têm sido muitas vezes capazes de, pelas próprias mãos, conseguirem precárias habitações que pouco a pouco vão melhorando. Este fenómeno, largamente verificado nas regiões rurais, é particularmente visível na região suburbana de Lisboa, através dos aglomerados de casas abarracadas ou dos bairros chamados clandestinos. Embora muitas das construções efectuadas nestas condições sejam o produto de pequenos industriais-negociantes, uma larga percentagem é obra dos próprios moradores que, tendo encontrado um terreno (normalmente por aluguer e outras vezes por compra) aí improvisam um abrigo que, com o andar dos tempos e a elevação progressiva do nível de vida, vão ampliando e melhorando. Um exemplo deste processo é o Bairro da Liberdade, nas encostas de Monsanto, em Lisboa, que, iniciado como aglomerado de barracas no princípio do século, é hoje uma zona habitacional com características quase de normalidade.
É este capital, produto da iniciativa, dos esforços e das pequenas poupanças de grandes massas de população, e que rapidamente pode atingir valores consideráveis, que urge aproveitar ao máximo, canalizar de forma ordenada e orientar no sentido de uma expansão urbana gradual.
Países de economia subdesenvolvida, ou com défices habitacionais muito grandes, têm precisamente praticado uma política habitacional visando o apoio a este tipo de autoconstrução, logrando através dela, não apenas a edificação massiva de novas habitações, mas a promoção social das populações interessadas, através do enquadramento e da racionalização do seu esforço. Os exemplos mais concludentes encontram-se em países do Norte de África, do Médio Oriente e da América Latina.
Podem encontrar-se algumas razões para a inexistência entre nós de realizações dentro desta via: por um lado, o facto de a crise habitacional se expressar mais através da superlotação de edifícios normais do que da extensão desmesurada de bairros de lata, o que favorece uma imagem do défice bastante benévola em relação à realidade; por outro lado, a nossa legislação revela uma convicção de que a crise será debelada com o novo regime que se põe em vigor, pois desconhece o carácter contínuo e inelutável do processo de urbanização; por outro lado ainda, o espírito do legislador tem sido avesso a soluções que impliquem a aglutinação de forças populares com vista à solução dos seus problemas, preferindo sistematicamente métodos paternalistas ou autoritários.
As realizações levadas a efeito em muitos países e os estudos que sobre os mesmos têm sido feitos mostram que a atitude das entidades públicas, por um lado, e o ponto de aplicação da respectiva contribuição, por outro, têm de ser radicalmente diferentes do que se verifica nos programas de habitação convencionais. A distribuição dos papéis far-se-á consoante aquilo que cada qual pode dar, contribuindo naturalmente os moradores com a construção da célula familiar e as autoridades com o planeamento do conjunto, os terrenos e os equipamentos colectivos. Muitas vezes, o apoio das autoridades vai até ao ponto de fornecer assistência técnica (projectos, técnicas de construção, etc.) e mesmo certos materiais ou elementos da construção (por exemplo, pré-fabricados produzidos em série). Os moradores começam por construir , ou uma célula inicial susceptível de ser aumentada e completada, ou uma construção provisória destinada a ser mais tarde substituída.
Nestas condições, os recursos financeiros e técnicos das entidades públicas podem atingir um número muito maior de famílias do que os programas correntes, e assim contribuir muito mais rapidamente para a atenuação dos défices existentes.
É evidente que estas soluções não evitariam certos problemas de grande dificuldade nas condições e com a legislação actual: aquisição de terrenos (que seriam cedidos a prazo ou alugados aos moradores, e não vendidos), urbanização e equipamento de vastas áreas, planeamento urbanístico, etc. Mas permitiriam integrar no processo de expansão urbana, de forma ordenada e portanto útil, recursos de enorme vulto que têm sido, ou desperdiçados, ou aceites irremediavelmente em condições de impossível recuperação ulterior.
A experiência acumulada noutros países é já muito importante nesta via: mas ela não poderá ser seguida entre nós sem a realização de empreendimentos-piloto; e ainda sem uma mentalidade capaz de trocar a obra acabada, mas para poucos, pelo trabalho sempre imperfeito, mas progressivo, de uma colectividade lançada num empreendimento comum; e capaz sobretudo de rejeitar uma imagem da cidade dividida em fachadas e traseiras, aceitando uma outra onde todos tenham lugar, dentro de esquemas ordenados de desenvolvimento.
As oportunidades para o Funchal
Na perspectiva do que ficou dito – e no que se refere à promoção habitacional feita pelo Município com o concurso activo, tanto de particulares como de entidades públicas – só soluções conjugando recursos de variada proveniência poderão efectivamente contribuir para a resolução do problema habitacional, entendida esta resolução, como não pode deixar de sê-lo, no quadro de um desenvolvimento urbano ordenado.
As condições económicas particularmente desfavoráveis que ocorrem no Funchal só poderão ser vencidas mediante o aproveitamento de todos os recursos disponíveis e a redução possível dos encargos correspondentes. A obtenção de terrenos por preços não sobrecarregados por mais-valias, que nunca devem reverter para benefício de particulares, pois foram criadas pela colectividade; o planeamento de unidades de habitação que reduza os encargos de urbanização e infra-estruturas; a canalização de recursos financeiros de várias fontes para um mesmo empreendimento, incluindo subsídios ou empréstimos; a contribuição da iniciativa e dos pequenos capitais dos próprios moradores; a aplicação de capitais privados em regime lucrativo, mas condicionados a uma certa disciplina; tudo isto são factores que não poderão ser desprezados; e tanto mais quanto mais adversas forem as condições económicas da conjuntura.
A experiência nacional nesta matéria é já rica e variada; nas lacunas que apresenta, exemplos estrangeiros poderão fornecer ensinamentos. Trata-se de fazer render essa experiência e de saber correr o risco da inovação arrojada, para que cada vez mais possa ser enriquecida e aproveitada com melhor resultado.
- Raul da Silva Pereira – Habitação e urbanismo em Portugal, Lisboa, 1966. Edição do autor ↑
- Raul da Silva Pereira – idem. ↑
- Raul da Silva Pereira – Conferência no Colóquio de Urbanismo, Funchal, 1969. ↑
- Trabalhos Preparatórios do III Plano de Fomento – Relatório do Grupo de Trabalho nº 8 – Habitação e Urbanização ↑
- Estatística Industrial, 1967 – Instituto Nacional de Estatística ↑
- Trabalhos Preparatórios do III Plano de Fomento – Relatório citado ↑

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Reflexões sobre a ocupação da Capela do Rato”. Original dactilografado, dez. 1982, 4 p.
Revista Reflexão Cristã, nº 56, 2023 (no prelo)
1. A ocupação da Capela do Rato como manifestação de cristãos contra a Guerra Colonial vem na sequência de uma longa marcha dos católicos portugueses face à ditadura salazarista (ou de alguns católicos, como sustentaram, não sem uma certa razão, os deputados Tenreiro e Casal Ribeiro durante o debate que a Assembleia fascista foi obrigada a fazer acerca da Capela do Rato).
As raízes dessa longa marcha remontam aos primeiros anos quarenta, quando um pequeno número de jovens cristãos amigos de António Sérgio publicava os Cadernos Metanoia, nos quais eram divulgados os ideais franciscanos e o estilo de vida das comunidades cristãs primitivas. Isto enquanto o padre Joaquim Alves Correia era obrigado a partir para o exílio, donde não mais voltaria, com o conivente silêncio dos seus superiores eclesiásticos.
Foi preciso que chegassem as primeiras “eleições” a que a oposição foi autorizada a concorrer – mercê da derrota fascista na II Grande Guerra – para que viesse a público uma tomada de posição inédita e insólita: a do Dr. José Vieira da Luz que, em entrevista ao Diário de Lisboa, se declarava simultaneamente católico e democrata. Estava-se em 1945, isto é, 19 anos após a instauração de uma ditadura implacável.
Pois foram precisos ainda mais 13 anos para que surgissem – como reflexo da viragem provocada pela campanha de Humberto Delgado – os primeiros abaixo-assinados de católicos pondo em causa o regime. Foi aliás este mesmo contexto que provocou a carta do Bispo do Porto a Salazar, numa atitude que o levou ao exílio e que nenhuma solidariedade encontrou da parte dos seus colegas na hierarquia (a ponto de por eles ter sido marginalizado durante a celebração do Concílio Vaticano II).
Este facto e aquele espaço de tempo mostram como Igreja e Ditadura eram unha-com-carne: foram assim necessários nada menos de 32 anos de supressão das liberdades, de censura total, de partido único, de deportações e torturas, para que um punhado de fiéis, meia dúzia de padres e um bispo, iniciassem – e timidamente – a contestação da ditadura.
É assim que a partir de Humberto Delgado (1958), este movimento vai ganhando lentamente adesões, ao mesmo tempo que a participação de católicos em acções contra o salazarismo se radicaliza e diversifica, ultrapassando-se finalmente a fórmula do abaixo-assinado: revoltas da Sé e de Beja, cooperativas Pragma e Confronto, publicação clandestina do “Direito à Informação” (1963/69) e do jornal “Igreja Presente” (1964), furando a censura do governo e a auto-censura da Igreja. Entre outros, padres como Abel Varzim, Adriano Botelho e Costa Pio, perseguidos pela PIDE, marginalizados e até exilados pela hierarquia, não podem ser esquecidos nesta fase.
Mas foi ainda preciso o eclodir da guerra colonial, com a prisão de padres patriotas angolanos e as acções de genocídio contra as populações, foi ainda preciso João XXIII e a sua “Pacem in Terris”, foi preciso o fortalecimento das lutas de estudantes, operários e intelectuais para que o combate contra o colonial-fascismo ganhasse novas camadas de cristãos. Tornava-se assim mais difícil manter completamente obediente e calado o rebanho, perante as cada vez mais gritantes contradições entre a doutrina apregoada e a prática política concreta dos hierarcas da Igreja, de aliança clara ou mal disfarçada com o regime.
É neste contexto que surgem as tomadas de posição de um agora já numeroso grupo de cristãos nas eleições de 1965, de missionários em Moçambique a partir deste mesmo ano e do prior de Belém, padre Felicidade, em 1968/69, a ocupação da igreja de S. Domingos na noite de 31 de Dezembro de 1968 para o 1º de Janeiro de 1969, a acção desassombrada do padre Mário de Oliveira (1970/74), a divulgação sistemática de publicações clandestinas anti-colonialistas (1971/73).
2. A resistência de alguns sectores minoritários da Igreja ao regime, e sobretudo ao prosseguimento da guerra colonial, já vinha assim de há uns anos. Mas a ocupação da Capela do Rato significou uma viragem nessa luta, provocando uma alteração qualitativa. Em primeiro lugar, pela adopção de uma forma de luta aberta, na linha da resistência passiva. Em segundo lugar com a inclusão de acções de agitação preparadas clandestinamente, mediante a colaboração das Brigadas Revolucionárias. Em terceiro lugar, com a abertura do debate na capela expressamente a cristãos e não cristãos, dada a dimensão nacional dos problemas em causa. Finalmente, face ao impacto público conseguido, obrigando o governo a noticiar os acontecimentos na imprensa censurada e a aceitar um debate sobre os mesmos na chamada Assembleia Nacional, imposto por deputados da ala liberal.
Essa alteração foi possível porque o contexto político se tinha modificado substancialmente: morte do velho ditador, evidência cada vez maior da impossibilidade de uma vitória militar nas colónias, crescente condenação internacional, agudização das contradições internas, tanto no seio da ditadura, como no seio da própria Igreja.
3. Perante esta cronologia é oportuno fazer algumas reflexões. E há uma pergunta que logo salta: porquê tudo tão tarde? Porque se fez a ocupação da Capela do Rato quando já iam decorridos 12 anos de guerra colonial? A pergunta tem razão de ser, pois é fácil imaginar que, se acção semelhante tivesse ocorrido alguns anos mais cedo, outro poderia ter sido o curso dos acontecimentos. Face a esta pergunta, algumas pistas de resposta podem ser avançadas.
Em primeiro lugar – quem éramos nós? Donde vínhamos?
Como mero exemplo – que não se pretende generalizar, mas que considero significativo – o meu próprio caso:
– aos 15 anos: dos primeiros inscritos voluntários na Mocidade Portuguesa, logo graduado em alta patente; participante entusiasta num comboio automóvel de abastecimento para a zona franquista no início da guerra civil em Espanha, confraternizando com militares alemães e italianos em Sevilha;
– aos 30 anos: devoto católico, anti-comunista convicto, mas sem querer meter-me em política; preocupado (mas não ocupado) com os problemas sociais; como profissional, ausente das Exposições Gerais de Artes Plásticas, onde muitos colegas militavam na oposição à ditadura. Eu militava antes na conversão da Igreja à Arte Moderna…
Em segundo lugar: a tomada de consciência foi lenta, mas foi possível mercê de influências exteriores de dois tipos.
Por um lado, os acontecimentos políticos: na luta contra o salazarismo, a campanha de Humberto Delgado, embora a ditadura já contasse 32 anos. Na luta anti-colonial, a eclosão das lutas armadas desencadeadas pelos movimentos de libertação: só alguns anos depois é que sectores cristãos, a exemplo do que acontecia com a oposição democrática, começaram a denunciar com clareza o colonialismo; no entanto, ele era bem antigo…
Por outro lado, os contactos com o estrangeiro, onde não se entendia, mesmo em meios católicos, como aqui aceitávamos tão docilmente o salazarismo, e sobretudo a guerra colonial. Jovens padres, que regressavam de estudos lá fora, ou dirigentes da Acção Católica, que participavam em reuniões internacionais, ou ainda a leitura da imprensa católica estrangeira mais aberta aos valores evangélicos, muito contribuíram para essa lenta evolução. À minha conta, muito fiquei a dever à leitura do semanário “Témoignage Chrétien” que assinei durante uns dez anos, que cobriram todo o período da descolonização francesa e sobretudo da guerra da Argélia, que sectores católicos franceses denunciaram com coragem.
Em terceiro lugar: a constante vigilância montada pelo aparelho eclesiástico, desencorajando, reprimindo, depurando, censurando – numa acção que prolongava e desdobrava a PIDE e os outros órgãos de repressão do regime. Desde o exílio puro e simples para o estrangeiro de padres considerados incómodos, até à sua nomeação para lugares isolados da província e à suspensão de ordens, passando pela oferta de bolsas de estudo fora do país (“pois eram inteligências que se estavam aqui a perder”) – tudo isto e muito mais foi feito.
4. A ocupação da Capela do Rato foi uma acção de massas na linha da não-violência, assumindo a forma mais típica das lutas dos cristãos contra a opressão, e que no nosso tempo tem conhecido um grande desenvolvimento em muitos países. E aqui pergunta-se: porque não houve mais, e mais cedo, com idêntica projecção? As razões também serão várias; apontam-se algumas.
Primeiro, era necessário que se ultrapassasse a dimensão do pequeno grupo ultra-minoritário e disperso, à base de intelectuais e sem qualquer inserção institucional. Face a esta limitação, havia o receio da repressão que uma acção aberta provocaria, privilegiando-se então a luta clandestina no domínio da informação e da consciencialização – tarefa aliás indispensável para que a corrente engrossasse. Era no entanto infundado aquele receio, pois ignorava a situação de privilégio a que os católicos, enquanto tais, gozavam face à repressão, sobretudo os de diploma universitário ou ligados a famílias conhecidas da burguesia – como era o caso da maioria dos que se opunham ao regime.
Entretanto, à medida que o número aumentava, outra dificuldade aparecia: a generalidade dos que se iam radicalizando, ia do mesmo passo desdenhando das formas de luta não-violenta, propugnando (o que só poucos aliás praticaram) a luta armada, numa visão incorrecta porque exclusiva.
Finalmente, o processo de radicalização política fazia com que muitos se afastassem da Igreja (ou pelo menos de uma prática intensiva) – ou por decisão própria, ou porque a tal eram compelidos pelo aparelho eclesiástico – afrouxando assim os laços com a massa praticante.
Chegou-se assim a um paradoxo: os mais convictamente não-violentos tinham medo da repressão e por isso não arriscavam participar em acções abertas; os que estavam dispostos a arriscar (e muitos arriscaram mesmo) ou desdenhavam da não-violência ou já estavam demasiado desligados do meio católico para aí desenvolverem uma acção eficaz.
Na ocupação da Capela do Rato foi possível pela primeira vez superar estas contradições. E o seu êxito ficou a provar que os católicos só muito tardiamente foram capazes de utilizar uma forma de luta que o regime temia (e com razão) e a que foi poupado durante anos e anos.
5. A intensificação da luta anti-colonial por parte de alguns sectores católicos, de que é exemplo a ocupação da Capela do Rato, e que conheceu desenvolvimentos posteriores, foi o resultado de uma opção estratégica de que os acontecimentos se encarregaram de comprovar a justeza: a de que a derrota da guerra movida contra os movimentos de libertação pelo poder colonial-fascista acarretaria inevitavelmente a sua queda. Parecendo hoje óbvia esta opção, ela não o era na altura, havendo sectores que sustentavam que se tornava necessário primeiro derrubar o regime para depois acabar com a guerra colonial. Sem de modo algum diminuir o valor da luta directa contra o fascismo travada por diferentes sectores da oposição ao regime, parece correcto, à luz da História a que pertence já o caso da Capela do Rato, assinalar esta facto.

Pereira, Nuno Teotónio. “Optimizar o parque habitacional”. Original com notas manuscritas, 1985, 9 p.
Notas para intervenção em debate no Centro de Reflexão Cristã, mar. 1985
OPTIMIZAR O PARQUE HABITACIONAL
A situação actual em termos de carências, quantitativas e qualitativas, deve fazer colocar como prioridade a optimização do parque habitacional existente.
É evidente que, para a superação da crise, a construção nova não pode ser abandonada, terá mesmo de ser incentivada e orientada. Mas a prioridade à optimização do parque habitacional impõe-se:
a) porque os seus efeitos sobre as carências são muitíssimo mais rápidos. Veja-se o nosso esforço que não atinge os 40.000 fogos/ano. Para absorver o déficit num horizonte de 20 ou 30 anos, será preciso atingir os 70 ou 80 mil fogos/ano – uma política concertada sobre o parque existente pode abranger em poucos anos muitas dezenas de milhar de fogos;
b) porque as necessidades de investimento são muitíssimo mais reduzidas. E sabe-se como os encargos de financiamento pesam enormemente sobre o custo final da habitação. E ainda porque o capital não necessita de ser concentrado para esses investimentos: ele seria muito mais directamente canalizado das pequenas poupanças para o investimento;
c) porque os encargos com terrenos e com infraestruturas, que também pesam enormemente, seriam praticamente anulados – e com eles os custos económicos e sociais da expansão urbana, que são pesadíssimos, sobretudo nas grandes cidades (periferias, transportes, equipamentos, etc.);
d) energia, etc.
Potenciar o parque habitacional.
– Uma nova realidade: os interesses comuns superam hoje os interesses antagónicos;
– a antinomia inquilino/senhorio está ultrapassada e não pode ser resposta em termos significativos: o aumento de rendas social e economicamente compatíveis não chegará para ressarcir os senhorios; e sobretudo: não chegará para acudir às despesas de manutenção do imóvel;
– os interesses comuns: ambos estão interessados na conservação (e até os inquilinos mais do que os senhorios): daí que tenha de ser criado um mecanismo susceptível de integrar essa realidade;
– co-propriedade?
– hoje é ao nível do prédio que as soluções têm de ser encontradas, como na produção é ao nível da empresa;
– a lei das rendas ignora isto, pretende irrealisticamente “repor as coisas no seu lugar”; 50 anos de congelamento + crise económica não o permitem;
– os inquilinos, após muitos anos de benfeitorias interiores, vêem agora as casas a cair de velhas, os desmoronamentos são cada vez mais frequentes, o próprio estatuto social é atingido.
1. Definir com clareza, por zonas, o destino dos prédios:
a) aqueles onde é possível uma reconstrução, com demolição (permitindo aumento de volume ou não);
b) os restantes, onde não será permitido qualquer aumento de volume.
2. Nas zonas b), mecanismos de entendimento senhorio/inquilinos, para comparticipação nos encargos de manutenção, vinculando para esse efeito parte do aumento das rendas e até nos encargos de gestão. Neste caso passa a haver interesses comuns: evitar a degradação do património.
Caracterizar a situação actual de bloqueio total, maximizando o sub-aproveitamento do parque, com exemplos: pessoas sós ou idosos; pessoas com emprego na província (ou nas capitais) e medo de perderem a casa primitiva; sobre-ocupação…
Mecanismos de mobilidade do parque habitacional
– evitar casas sub-ocupadas ou desocupadas
– arrendamentos temporários (por exemplo para quem vive um período fora de casa)
– incentivos, garantias…
Conjunto de medidas concertadas, tendo como objectivo claramente visado a optimização do parque habitacional
1. Preservação do parque habitacional – física e funcional
Evitar a ruína, suster a degradação, reduzir as demolições fundamentalmente a situações de patologia construtiva incurável. Suster a destruição. Quebrar as expectativas pela demarcação de zonas onde [não será possível] o aumento de volume.
2. Mobilidade do parque habitacional
Casas sub-ocupadas versus sobre-ocupadas.
Casas fechadas (arrendamentos e sub-arrendamentos temporários – pelos proprietários / pelos inquilinos).
Política de incentivos e de garantias de reocupação.
3. Recuperação física e funcional do parque habitacional
Conservação + beneficiação.
4. Rentabilização do espaço
a) do espaço existente: subdivisão de fogos grandes
b) aproveitamento do terreno: aumento de andares versus demolição
5. Utilização rápida das casas recém-construídas
O regime jurídico de arrendamento está em crise
– daí o ser impossível ou improvável a recuperação em termos de promoção;
– daí também a necessidade de liquidar, cautelosamente, esse regime no parque existente. Como?
– Qualquer coisa do tipo de os senhorios serem indemnizados, ficando o prédio em co-propriedade, mediante regimes de transição; o regime de financiamento desta operação suporia:
a) uma certa actualização das rendas;
b) a canalização de uma parte das rendas para indemnização ao senhorio;
c) a canalização de outra parte para obras de manutenção.
– Haveria que ser exercida uma certa tutela durante o regime de transição (por exemplo, os Serviços Municipais de Habitação, que poderiam ser desdobrados ao nível de freguesia nas cidades centrais).
– Findo o período de transição, o prédio ficaria em co-propriedade (condomínio) plano, com a liquidação da indemnização ao senhorio.
Análise breve da evolução e causas da crise
Quanto à promoção estatal
– promoção descentralizada, mas planificada em Lisboa: Previdência, G.T.H., C.E.
– concentração marcelista no F.F.H. (gigantismo dos órgãos e operações)
– o relâmpago SAAL / o PRID / o apoio às cooperativas
– desmantelamento do F.F.H. em vez da sua reconversão
– o apoio exclusivo e indiscriminado à promoção privada lucrativa
– a fúria da privatização lucrativa (distinguir)
Agora: iniciativas em várias direcções, mas desconexas. Um exemplo é a lei das rendas.
Falta uma política global e integrada.
Objectivos simultâneos laterais:
– dinamizar a indústria da construção nos vários graus de dimensão
– desemprego
– ambiente, qualidade de vida (planeamento)
– defesa do património, imagem da cidade e da habitação nos próprios locais.
Final
Os adversários desta política são poderosos e estão muito bem organizados: os grandes empreiteiros, os negociantes de terrenos, têm dirigido toda a política urbana dos últimos anos.
A lei das rendas inverteu os objectivos: o aumento do rendimento dos senhorios não vai resolver os problemas de fundo: é um objectivo vago e sem horizontes. O que devem ser os verdadeiros objectivos são contemplados com disposições laterais e complementares.