Texto Habitação

O problema da habitação e os outros problemas (1964)

PEREIRA, Nuno Teotónio. “O problema da habitação e os outros problemas”. Boletim da JUC, jan. 1964.

O PROBLEMA DA HABITAÇÃO E OS OUTROS PROBLEMAS

1 – Para muitos de nós, que temos o privilégio de dispor de casa, em uso exclusivo[1] e ao abrigo da intempérie, o Natal fornece anualmente a oportunidade de espaçados contactos com o mundo dos mal-alojados, que habitam velhos pardieiros nos bairros antigos ou barracas primitivas nos arrabaldes. E nessa ocasião, perante a persistência e até o desenvolvimento bem visível dos bairros de lata,[2] certas interrogações não puderam mais uma vez deixar de ser feitas: porque razão não se resolve esta trágica situação? Porque razão o problema parece até ter tendência para se agravar? Por quanto tempo estarão os pobres ainda sujeitos a estas condições degradantes? E no entanto aquilo que nos é dado observar apenas nos mostra um aspecto restrito da enorme dimensão do problema.

2 – A civilização industrial deu origem ao chamado problema da crise da habitação, que assume aspectos quantitativos provocados pelo surto demográfico e pela deslocação maciça de populações; e aspectos qualitativos por ter tornado possível o aparecimento de altos padrões de vida e o desenvolvimento tecnológico, aumentando assim as exigências de conforto. O problema é agudo, e com tendência para agravar-se, nas regiões sub-desenvolvidas ou em vias de industrialização, e está a atenuar-se (ou mesmo a resolver-se) nos países já desenvolvidos.

Trata-se pois de um mal até certo ponto inevitável da nossa sociedade actual; e a sua persistência, mesmo o seu agravamento, são consequências de um caminhar penoso e desordenado na senda da industrialização. A solução da crise habitacional está assim ligada à marcha de toda a nossa economia: só quando for atingido um determinado grau de desenvolvimento é que será possível atacar a fundo a miséria do nosso habitat e porventura chegar a anular as suas carências quantitativas e qualitativas. E isto pela razão de que os investimentos necessários atingem valores tão volumosos que só poderão ser suportados por uma economia desenvolvida.

Mas estaremos assim condenados a esperar por esse dia ainda tão afastado que não se enxerga, sofrendo o empilhamento crescente de famílias nas zonas urbanas e as condições primitivas de um habitat rural arruinado? Estará assim tão dependente do crescimento económico a melhoria das condições de habitação, tanto no campo como na cidade?

3 – O problema tem de ser encarado através de um prisma diferente: a chave não está exclusivamente no montante dos recursos disponíveis: pelo menos durante alguns decénios, estará na forma como estes forem utilizados e distribuídos os respectivos benefícios.

Na verdade, um país em processo de desenvolvimento não pode consagrar à habitação senão uma pequena parte do seu investimento e, muito provavelmente, os 20% do investimento nacional bruto que temos consagrado à construção de casas nos últimos anos, são considerados, do ponto de vista económico, como excessivos e prejudiciais às urgentes necessidades do investimento directamente reprodutivo.

Por outro lado, verifica-se que “é possível melhorar o alojamento independentemente da melhoria geral do nível de vida; com efeito, em todos os países sub-desenvolvidos, os habitantes sabem construir casas por processos tradicionais, utilizando materiais estritamente locais, e por outro lado, nesses mesmos países, há mão-de-obra desempregada (e sub-empregada). É possível provocar o emprego (ou aumentá-lo) desta mão-de-obra, ao mesmo tempo que a melhoria das técnicas tradicionais através de um certo número de meios relativamente pouco custosos”.[3]

A utilização dos chamados recursos latentes, é considerada, para os países em desenvolvimento, uma exigência fundamental para ajudar a resolver (ou pelo menos não agravar) o problema da habitação.[4] Tais recursos, que ficam desaproveitados, tanto nos empreendimentos lucrativos como nos estatais, abrangem fundamentalmente três modalidades: a construção pelo próprio, a construção em regime de esforço próprio e ajuda mútua (grupos de auto-construção)e a construção através de cooperativas de habitação.

A potencialidade destes mecanismos tem dado as suas provas em diferentes partes do mundo e a adopção de métodos deste tipo, que encontram a sua melhor expressão no quadro das técnicas de Desenvolvimento Comunitário, é instantemente recomendada por toda a parte.

Entre nós, se a construção pelo próprio começa apenas a beneficiar de algum apoio legislativo, a grande massa de energia despendida é dissipada anarquicamente nos milhares de construções clandestinas que, à margem dos regulamentos e da vida urbana, se constroem nos arrabaldes miseráveis das cidades, em vez de ser incorporada organicamente em estruturas urbanas evolutivas mas planificadas. Quanto aos grupos de auto-construção e às cooperativas, a sua actividade é apenas simbólica e muitas vezes fora do verdadeiro espírito que deveria animar a sua actividade. Efectivamente, nem existe legislação adequada, nem se estimulam e orientam certos empreendimentos, nem o clima político-social é propício a este género de iniciativas, que representam, no sector da habitação, “a tendência (para os seres humanos) se associarem com o fim de alcançar objectivos que superam as capacidades e os meios de que podem dispor os indivíduos isoladamente”.[5]

Porque, na realidade, segundo a doutrina da Igreja, “no desenvolvimento das formas de organização da sociedade contemporânea, a ordem realiza-se cada vez mais com o equilíbrio renovado entre a exigência de autónoma e activa colaboração de todos, indivíduos e grupos, e uma acção oportuna de coordenação e orientação da parte do poder político”.[6]

4 – Falámos dos recursos latentes, que não são aproveitados. Mas que dizer daqueles (e são já vultuosos) que têm sido e estão sendo aplicados à habitação? Põe-se aqui um problema de justa distribuição, acerca do qual a doutrina da Igreja também é clara.[7]

Este problema pode exprimir-se em três aspectos: prioridades na atribuição das novas habitações, adopção de limites máximos e compensação de encargos com a habitação entre as várias camadas da população. Qualquer destes pontos tem sido geralmente considerado de grande importância em estudos e reuniões de carácter internacional.

No que respeita ao estabelecimento de uma ordem de prioridades, que defenda os direitos das famílias de fracos recursos mais carecidas de uma casa, a sua necessidade é imperiosa, e deve abranger não só a construção oficial, mas toda a construção de habitações, pelo menos aquela que é objecto de medidas proteccionistas. E esta prioridade será tanto mais acentuada quantos maiores forem os desequilíbrios existentes.

Na mesma perspectiva e com a mesma justificação, se inscrevem as medidas tendentes a limitar ou mesmo a suprimir as chamadas construções de luxo, que mobilizam consideráveis recursos em benefício de muito poucos.[8]

Nesta ordem de preocupações, temos ainda o problema de uma distribuição equitativa dos encargos com a habitação, que pode aliás exceder o âmbito deste sector e ter repercussão no plano nacional.

Com efeito, uma mais equilibrada distribuição dos rendimentos e dos encargos faz hoje parte dos programas de qualquer governo. Mas a sua aplicação revela-se extremamente difícil, exigindo a intervenção de complicados mecanismos tributários de compensação.

É hoje ponto assente[9] que as populações de fracos recursos não podem suportar por si sós os encargos com uma habitação decente; há que preencher a diferença entre a capacidade de pagamento e o custo das construções. Um sistema compensador aparentemente simples poderia deslocar para esta finalidade recursos que se iriam buscar às camadas de rendimentos mais elevados e que seriam aplicados sob a foram de subvenções à construção ou de subsídios de renda. Deste modo se poderia, não só resolver um problema de justa distribuição no sector do alojamento, como atenuar, por via disso, os enormes desequilíbrios existentes.

5 – Tocamos agora um aspecto que, para além de ser dos mais importantes, é certamente o mais flagrantemente injusto, o mais escandalosamente desumano, quando se trata de países de fracos recursos. Referimo-nos ao problema dos terrenos, que por toda a parte neste País, de uma forma ou outra, atesta o egoísmo dos proprietários, a ganância dos especuladores, a impotência ou a conivência das autoridades. Numa vila do Alentejo (este caso é geral) a população empilha-se nas casas enquanto novos casais, que se dispunham a construir uma casita à custa de grandes sacrifícios, não o podem fazer porque da meia dúzia dos proprietários que cercam o aglomerado não há um que esteja disposto a vender por preço razoável os metros quadrados necessários, para não fraccionar a propriedade. Em toda a grande cintura de Lisboa, os tratos de terreno são transaccionados sucessivamente até atingirem o preço compensador (juntamente com manobras e pressões junto das entidades responsáveis pelo planeamento urbano), que na maior parte dos casos já ultrapassa o próprio valor da construção.[10] E por toda a parte as autoridades ou simplesmente se negam a qualquer esforço para vencer a dificuldade, ou quando o fazem deparam com uma legislação retrógrada e insuficiente.

Este problema verdadeiramente basilar, que entre nós constitui certamente o maior obstáculo à realização de certos programas oficiais e a causa principal do contínuo agravamento das rendas nas zonas urbanas, tem sido agitado e referido, mesmo em reuniões de carácter oficial.[11] Mas sucede que os nossos órgãos executivos ou legislativos, mercê certamente dos condicionamentos estruturais a que estão sujeitos, têm sido incapazes de promulgar as medidas necessárias para ao menos atenuar este estado de coisas.

E no entanto, quando o assunto é objecto de discussão, é invocado o direito de propriedade para defender o regime existente. Mas a doutrina da Igreja, mais uma vez é bem clara: o direito de propriedade privada tem uma função social que lhe é intrinsecamente inerente e quando não a desempenha, cessa necessariamente o próprio direito.[12]

Trata-se do problema das mais-valias e de fazer prevalecer o princípio de que, na sua totalidade, não devem ser subtraídas às populações que as produziram.[13] O facto de ser possível defender e legalizar este latrocínio e defendê-lo em nome de um princípio basilar do Direito Natural é bem o retrato de uma sociedade corrupta.

6 – O problema da habitação está assim ligado a outros problemas: são os problemas de uma economia em crise, de uma economia velha. E é preciso que saibamos, quando se nos depara o quadro trágico de um habitat infra-humano, como numa visita aos pobres em dia de Natal, porquê esse problema não tem encontrado sequer um princípio de solução.

Na sua 1ª Mensagem de Natal, Paulo VI falou do problema da fome em termos que não atenuam a gravidade do assunto, antes a põem claramente diante das nossas consciências. Torna-se necessário, diz o Papa, promover uma economia nova, ao serviço dos pobres, para que acabe a fome no Mundo. Para o problema da casa, a solução não pode ser outra, para além de tudo o que seja possível fazer nos estreitos horizontes da nossa sociedade actual. E apetece-nos terminar com uma citação da Pacem in Terris: “Pois, quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão da sua dignidade; nos demais, no dever de reconhecer e respeitar tais direitos”.

  1. Na cidade de Lisboa, segundo o Inquérito às Condições de Habitação do IX Recenseamento Geral da População (1950), 27,8% das famílias viviam em partes de casa. Não se conhecem ainda os resultados referentes ao Censo de 1960.
  2. Na cidade de Lisboa, onde o aumento percentual é possivelmente menos elevado do que em alguns concelhos dos arredores, existiam em 1961 5.679 barracas destinadas a habitação, quando em 1950 apenas 4.112 famílias habitavam as chamadas construções provisórias ou não dispunham de habitação.
  3. G. Blachère: “L’Habitat des pays sous-développés” in Cahiers du Centre Scientifique et Technique du Bâtiment – Paris.
  4. A mobilização de todas as iniciativas locais, com vista à construção do maior número possível de habitações, é particularmente importante nos países em vias de desenvolvimento e as possibilidades destes países nesse domínio são consideravelmente maiores do que nos países mais desenvolvidos”, das conclusões do Seminário promovido pelas Nações Unidas em Zagreb, 1961. In Enquêtes sur les habitations et l’établissement des programmes de construction de logements, notamment dans les pays em cours d’industrialisation, nº 62. II. E/Mim. 8, Genève 1962, p. 38
  5. Mater et Magistra – cap. II
  6. Idem
  7. Donde se segue que a riqueza económica dum povo não resulta somente da abundância total dos bens, mas também, e mais ainda, da sua real e eficaz distribuição conforme a justiça”. Idem.
  8. Uma política que procure a construção do maior número possível de alojamentos, poderá utilmente prever medidas tendentes a reduzir a construção de habitações luxuosas, que não contribuem para o desenvolvimento económico.” Nações Unidas, ob. citada, p. 38.
  9. Na maior parte dos países democráticos chegou-se de vez à conclusão que tem de considerar-se normal que no sector da habitação social os poderes públicos devam suportar, de uma maneira ou de outra, uma parte dos encargos de alojamento de uma fracção considerável da população.” L. Wynen, relatório apresentado à Comissão da Habitação Social da U.I.O.F. (in Familles dans le Monde, sept.-déc. 1962).
  10. É por isto que muitas casas não encontram inquilinos que possam pagar as rendas (só na Amadora há cerca de 1.000 fogos nestas condições), ou então obrigam à instalação de várias famílias na mesma habitação.
  11. Não podendo aceitar-se que uma comunidade seja permanentemente privada da melhor utilização do seu terreno urbano, só porque entre ela e esse terreno de que precisa se interpõe um particular que especula com uma valorização resultante afinal de obras feitas por essa mesma comunidade, torna-se indispensável que se ponha em prática uma política eficaz do solo, permitindo obter a tempo os terrenos indispensáveis, nas condições de preço compatíveis com os objectivos sociais dos empreendimentos, e por forma a garantir a respectiva urbanização e a construção dos edifícios complementares” – das Conclusões do 2º Colóquio Nacional do Trabalho, da Organização Corporativa e da Previdência Social – Lisboa, 1962.
  12. Um outro ponto de doutrina constantemente proposto pelos Nossos Predecessores é que ao direito de propriedade privada sobre os bens é intrinsecamente inerente uma função social.” – Mater et Magistra, cap. II“O direito de propriedade privada está subordinado ao direito de todos os homens a usar dos bens terrenos, isto é: a fruir do bem-estar que a sociedade de facto lhes pode oferecer. É um instrumento jurídico ao serviço de uma exigência mais profunda do Direito Natural; na ordem prática (nas suas formas concretas) justifica-se na medida em que serve efectivamente essa exigência”. Adérito Sedas Nunes – Princípios de Doutrina Social, 1ª edição, p. 106.
  13. “… Não pode haver dúvidas nenhumas sobre a circunstância de que entre os vários factores da produção não se encontram certamente os proprietários das áreas que beneficiam de mais-valias: a sua atribuição aos proprietários resulta na subtracção de uma quota parte do rendimento nacional às categorias, quem quer que sejam, que as produziram. É este um fenómeno que numa sociedade bem ordenada não pode ser consentido.” Prof. Pasquale Saraceno – Relatório da Comissão italiana para o Plano – 1963.