Por José Manuel Fernandes
Uma caracterização
Numa das investigações por Nuno Teotónio Pereira, publicada na obra Prédios e vilas de Lisboa (1) o autor refere no último capítulo a “Influência do Movimento Moderno – dos anos vinte à consolidação do ‘Estado Novo”. Neste capítulo, denomina de “estilo nacional” a arquitectura dos prédios erigidos nos anos de 1940 e 1950, subordinados a uma estilística virada para o passado, retrógrada, inpregnada de valores sobretudo formais, com símbolos nacionalistas. Dá o exemplo das edificações das avenidas Sidónio Pais / António Augusto de Aguiar, que servira à CML para determinar um suposto modelo de fachada evocativa do século XVIII, a ser seguido pelos arquitectos autores de novas edificações.
José Augusto França, no seu livro A Arte em Portugal no Século XX (2), refere igualmente esta área e época de Lisboa e as suas arquitecturas de “novo cânone tradicionalista” (3) – que viria a designar, com algum humor e ironia, de estilo “setecentesco”, entre o tentame de um setecentismo historicista e o grotesco de uma imitação de formas fora do seu tempo.
No meu Português Suave – Arquitecturas do Estado Novo (4) tentei caracterizar esta “nova” arquitectura dos prédios lisboetas, num capítulo dedicado a “Invenção: os arquétipos formais”, onde seriei e exemplifiquei as expressões construtivas e arquitectónicas mais frequentes, como a do chamado “portal barroquizante”. Noutro capítulo, “Estruturação e seriação: os tipos funcionais”, nas páginas dedicadas à habitação, procurei caracterizar este tipo de edificações em termos mais gerais, não só para a capital mas para todo o país, e até para as colónias desta época (5): “ O prédio de rendimento (…) de inspiração joanina e pombalina (…) a composição simétrica dos volumes, a sua inserção em sequências de lotes justapostos, a tendência para a utilização de elementos e materiais tradicionais, pouco salientes das fachadas habitualmente lisas e de longos panos verticais, fazem do prédio do ´Português Suave´ um paradigma da edílica anti-moderna, retrocesso nos modos do novo urbanismo e da nova arquitectura ensaiados nos anos 1930 e retomados depois nos anos 1950.”
Mais adiante, no mesmo livro, descrevo os aspectos visualmente mais definidores (6): “embasamento em pedra; janelas aquadradadas de peito, e vãos de sacada com varanda de ferro forjado decorativo (preferencialmente no ´andar nobre´); portais estilizados em pedra, nos vãos térreos; coberturas telhadas, por vezes amansardadas `à Pombalino`, com uso de coruchéus triangulares.(…). Por vezes (…) uso de pináculos de remate superior, ou de colunatas de pedra na fachada; mais raramente, por sugestão de frontões nas fachadas e cimalhas.”
Os exemplos
No meu livro segue-se uma enumeração exemplificativa deste tipo de prédios fachadistas, como (pp.152 a 163): na praça do Saldanha (arq. Carlos Ramos); no gaveto da rua Alexandre Herculano / rua de Santa Marta; na praça do Saldanha ns 31 e 31-a (por João Simões); na avenida Sidónio Pais n.6 (por Rodrigues Lima e Fernando Silva), n.14 (por Reis Camelo) e n.16 (por Pardal Monteiro); na avenida António Augusto de Aguiar n.9 (por Jacobetty Rosa); e na rua Artilharia 1 n.105 (por João Simões).
Refiro ainda, no mesmo livro, o célebre e monumental prédio por Cassiano Branco no gaveto da praça de Londres; o prédio na rua Rodrigues Sampaio, com uma fachada mais classicizante, por Victor Piloto; a frente urbana de Campo de Ourique, com uma série de frontarias lote a lote, defrontando a igreja do Santo Condestável, por Raul Tojal; as sequências de fachadas ao longo da Alameda de Afonso Henriques; e o edifício no gaveto da rua do Salitre com a rua Castilho.
Verifica-se deste modo que este tipo de arquitectura se disseminou fortemente por toda a cidade, desde o arranque da década de 1940 e sobretudo ao longo da de 1950, quer integrado em programas de conjunto, quer em lotes isoladamente erigidos – mostrando a capacidade municipal e estatal, para divulgar e colocar “em moda” este tipo de arquitectura genericamente neo-tradicional. Os programas edificatórios, de facto, foram levados a cabo sobretudo por privados e servindo o “prédio de rendimento”.
As designações
Constata-se também que os diferentes investigadores deste tema utilizaram várias designações para definir ou caracterizar uma mesma arquitectura – “nacional” (por NTP), “setecentesca” (por JAF), ou “neo-tradicional e neo-conservadora”, e “arquitectura do “Português Suave” e do “Estado Novo” (por JMF); verifica-se mesmo assim que há uma convergência de “olhar crítico”, por estes autores, para além do uso da diversa terminologia, e que essa convergência tende a considerar este tipo de obras como formalistas, evocativas de épocas passadas, visando de algum modo expressões arquitectónicas nacionalistas e monumentalizantes – ou seja, trata-se quase sempre de uma arquitetcura enfática, proclamativa, solene.
A rua D. João V
O caso do conjunto arquitectónico neo-tradicional da rua de D. João V ao Rato / Amoreiras, traduz-se num exemplo interessante destas tipologias e destes sistemas formais, embora menos conhecido e divulgado – de facto, como o dito conjunto se situa cerca do famoso “Bloco das Águas Livres” de NTP e Bartolomeu da Costa Cabral – de que é sensivelmente (quase) contemporâneo, podemos, por clara observação comparativa, verificar todo um sistema de oposições, espaciais, formais, urbanísticas que separa ambos os objectos, ou exemplos, ou conjuntos.
Embora o conjunto da rua D. João V seja no seu todo mais modesto do que os exemplos atrás referidos, quer na escala, quer na elaboração de cada fachada, não deixa por isso mesmo de se tornar aqui especialmente relevante, pois representou de algum modo a vulgarização e a aceitação do modelo “setecentesco” na mancha da cidade, pelos seus contrutores das “obras quotidianas”.
Em termos de oposições e contrastes “de partido” entre ambas as edificações e conjuntos, repare-se em primeiro lugar na distinta atitude urbanística – enquanto na rua D.João V temos um exemplo de loteamento convencional, executado lote a lote, com os prédios encostados entre si, formando a tradicional “rua canal”, com oposição nítida entre a fachada representativa e “de prestígio” ou ostentação, e as traseiras ocultas à cidade – no caso do Bloco das Águas Livres há a afirmação de uma concepção de cidade aberta, com uma edificação isolada de grande escala, formando em si um sistema e uma visão de urbe nova, sem contraste entre fachadas e traseiras, sem imposição de estilos do passado. Enfim, trata-se de um representante da chamada “Arquitectura Moderna” do pós-guerra, realizado inovadoramente no coração de Lisboa.
O aspecto tecnológico e de programa espacial é outro tema, gerador de contraste entre as edificações da rua D. João V e o Bloco das Águas Livres: enquanto nesta rua cada prédio apresenta cerca de 4 a 5 pisos, dispostos no sistema convencional de esquerdo-direito, com acesso a partir de uma caixa de escadas central e do átrio de entrada em posição simétrica, utilizando por regra espessas paredes portantes de alvenaria, tradicionais, e cobertura telhada – já no Bloco a opção é por um sistema inovador, em grandes apartamentos com acesso por amplos átrios e escadas, elevadores e galerias de serviço, com utilização de uma estrutura onde o betão armado e as novas tecnologias da época, em geral, pontificam. A cobertura, em vez de telhada, é em terraço, permitindo a solução inovadora de ocupação por ateliers. Representa a concepção do “edifício-cidade”, autónomo e de grande efeito na paisagem urbana.
Finalmente, é a expressão arquitectónica, formal e decorativa, que contrasta as duas tipologias em apreciação: na rua D. João V os prédios recorrem nas frontarias às habituais molduras e temas decorativos, por artesãos anónimos, de sentido historicista (portais barroquizantes, vãos moldurados em pedra, arcos redondos) – enquanto no Bloco vigora a expressão abstracta das formas arquitecturais modernas, estruturais, sem decoração convencional, e onde a intervenção plástica se traduz em obras específicas, assinadas por autores modernos, como as peças por Almada Negreiros.
Finalizando, constata-se deste modo um total contraste, nos aspectos urbanísticos, espaciais e de programa, bem como nos formais e estilístcos, entre as arquitecturas dos prédios da rua D. João V, representativos da chamada “Arquitectura do Estado Novo”, de cunho ”nacionalista, setecentesco”, e a do Bloco das Águas Livres, livre exactamente na sua afirmada modernidade.
Notas
1 com Irene Buarque, ed. Livros Horizonte, 1995 (esgotado) e Evolução das formas de habitação plurifamiliar na cidade de Lisboa, ed. Câmara Municipal de Lisboa, 2017
2 ed. Livraria Bertrand, 1974
3 op. cit., p.254
4 ed. IPPAR, 2003
5 op cit, p.152
6 op cit, p.154