PEREIRA, Nuno Teotónio. “Capela do Rato: a rebelião católica”. Público, 31 dez. 1992.
Republicado em Tempos, Lugares, Pessoas. S.l.: Contemporânea e Jornal Público, 1996, pp. 111-113
Os acontecimentos que há 20 anos se deram na capela do Rato, em Lisboa, pode dizer-se que constituíram um ponto marcante na atitude da comunidade católica face à guerra que desde 1961 estalara em Angola e que em 63 e 64 se estendera à Guiné e a Moçambique. Num mundo em que as guerras de libertação (Argélia, Vietname) provocavam conflitos regionais que pagavam o seu tributo à guerra fria entre as super potências, a Igreja Católica decidia comprometer-se nos esforços de paz, apelando aos crentes a que se reunissem no primeiro dia de cada ano com aquela intenção.
Passados estes 20 anos, podemos interrogar-nos por que razão em Portugal esta directiva do Papa não encontrava eco na Igreja oficial, tão pressurosa em seguir as indicações do Vaticano noutros domínios. De facto, contrapôr à guerra a via do diálogo e da negociação, como insistentemente tinham reclamado os movimentos de libertação, era trair a Pátria una e indivisível. Colocada nesta encruzilhada, a Igreja portuguesa fez a sua opção: mandou às urtigas os apelos de Roma e preferiu obedecer a César, colaborando anos e anos na campanha de desinformação e de silêncio que rodeava as guerras de África.
Esta atitude, contra a qual os católicos mais conscientes se iam rebelando, tinha a sua explicação. Dizer que a Igreja estava feita com o regime salazarista é pouco: na verdade, ela era parte integrante desse regime. Por isso se compreende a mágoa e a raiva do ditador em falar em defecções, quando alguns grupos de fiéis e o bispo do Porto procurara distanciar-se após a campanha eleitoral de Humberto Delgado.
Na realidade o Estado Novo integrou na sua constituição uma Igreja sequiosa de uma restauração, após as vicissitudes de 1910 e Afonso Costa. Mas a tragédia dessa Igreja é que após a geração do cardeal Cerejeira não soube desvincular-se do regime para poder viver a sua missão apostólica. Por isso falhou o concílio Vaticano II e reprimiu o dinamismo de movimentos cristãos que então despertaram na sociedade portuguesa. Foi assim possível ao deputado Casal Ribeiro, no debate da Assembleia Nacional a seguir aos acontecimentos da capela do Rato, declarar com inegável razão que não se tratava de católicos, mas apenas de “alguns católicos”.
As consequências desta demissão face às directivas da Igreja Universal no que tocava à situação de guerra concreta que era vivida no País não podem ser ajuizadas com rigor. Mas não se andará longe da verdade se se pensar que uma tomada de consciência séria sobre as origens e a natureza dessa guerra face aos apelos do Vaticano poderia ter mudado o curso dos acontecimentos.
Dispondo de um poder e de uma liberdade únicas no regime ditatorial, a Igreja poderia ter-se feito ouvir no sentido de que a via do diálogo substituísse a linguagem das armas, fazendo parar a tempo uma guerra que fez incontáveis vítimas. Aquilo que as Forças Armadas fizeram já tardiamente em 74 poderia a Igreja tê-lo feito muito antes, se fizesse seus os apelos que no dia primeiro de cada ano emanavam de Roma. Poderá até supôr-se que as dramáticas consequências de uma descolonização precipitada e os conflitos devastadores que têm assolado alguns dos territórios até hoje teriam sido porventura evitados. O que foi feito da “missão profética da Igreja” e da leitura dos “sinais dos tempos” em que João XXIII tanto insistia?
Foi neste contexto que a vigília na Igreja de S. Domingos em Lisboa no 1º de Janeiro de 1969 – quatro anos antes da capela do Rato – apelando a uma tomada de consciência face aos problemas da guerra em África, caiu em saco roto.
Nesta velada de S. Domingos, que se iniciou após a missa da meia noite celebrada pelo cardeal Cerejeira, ao qual foi na altura dado conhecimento das intenções dos organizadores, e que durou até às 6 da manhã, a Pide, embora informada, entendeu sabiamente não intervir, do que resultou um menos impacto do acontecimento. Mas foi publicada nos jornais uma nota do Patriarcado condenando a iniciativa , dizendo que a mesma trazia “grave prejuízo à causa da Igreja e da verdadeira Paz”.
No manifesto dos organizadores dizia-se que “todos nos deixámos instalar nesta guerra; que a admitimos como inevitável e imposta; que nos acobardamos sob a desculpa dos riscos que corre quem ousar pôr dúvidas à sua justiça e à sua legitimidade; que somos todos cúmplices de uma conspiração de silêncio à sua volta.”
E no entanto, a situação era tanto mais paradoxal quando se sabia que os católicos enquanto tais e acusados de delitos de opinião ou de manifestação não eram sujeitos a maus-tratos ou torturas na Pide, ao contrário da maior parte daqueles que se opunham ao regime. As sanções mais fortes ocorreram só no rescaldo da capela do Rato, quando onze funcionários públicos foram vítimas de demissão compulsiva. Isto mostra a grande margem de manobra que então existia para os católicos e consequentemente para a Igreja, para não falar na abundância de lugares de culto e de reunião e de publicações não sujeitas à censura, e que poderiam ter sido utilizados a favor da paz.
Passados vinte anos sobre os acontecimentos da capela do Rato, custa-nos a compreender por que motivo uma simples vigília organizada num local de culto teve tão ampla repercussão no país. Não seria natural que houvesse iniciativas do género em muitas igrejas portuguesas, ao cabo de onze anos de uma guerra que parecia eternizar-se e obedecendo a uma directiva muito concreta vinda do Papa?
Na verdade, alguns outros actos isolados se verificaram. Refira-se por exemplo, a distribuição de um manifesto em igrejas do Porto na vigília de 1 de Janeiro de 1969 e as atitudes desassombradas do padre Mário de Oliveira em Macieira da Lixa, que o levaram à prisão. E ainda as corajosas homilias do padre Felicidade Alves nos Jerónimos, e em Moçambique a acção do bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto, e dos Padres Brancos, de Burgos e do Macuti, denunciando os massacres feitos pelas tropas portuguesas.
As linhas que se deixam escritas procuram ser um contributo para a compreensão do caso, que foi, para muitos efeitos, uma pedrada no charco do silêncio cúmplice de uma Igreja que teimava na infidelidade à missão a que era chamada.
Os treze longos anos da guerra , até ao 25 de Abril, foram ainda assim demasiado curtos para que se operasse uma conversão.