Texto Habitação

Chegarão 100 anos para acabar com as barracas? (1993)

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Chegarão 100 anos para acabar com as barracas?”. Público, 23 set. 1993, p. 48.
Republicado em Tempos, Lugares, Pessoas. S.l.: Contemporânea e Jornal Público, 1996, pp. 27-31
Republicado em Lisboa: temas e polémicas. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2011, pp. 55-58


CHEGARÃO 100 ANOS PARA ACABAR COM AS BARRACAS?

Pelos fins do século passado, começaram a ouvir-se vozes contra as condições degradantes de habitação, principalmente nos grandes centros. Políticos como Augusto Fuschini e higienistas como Ricardo Jorge denunciavam no Parlamento e na imprensa as miseráveis condições em Lisboa e no Porto. Com o processo de industrialização destas cidades ao longo da segunda metade do século, as vagas de imigrantes rurais tinham engrossado a população citadina e o mercado de arrendamento convencional não podia satisfazer essa procura. Os bairros populares, como Alfama e o Barredo, ficaram sobrepovoados e os novos habitantes encontraram alojamento em condições improvisadas, como os pátios lisboetas, conventos desafectados e palácios arruinados. Em breve, mercê de construtores oportunistas, foi surgindo um novo mercado de arrendamento, constituído por módulos de habitação precários e de dimensões ínfimas, sem as mínimas condições de higiene, ocupando terrenos sobrantes no interior de quarteirões. Foram as ilhas do Porto e os pátios e depois as vilas de Lisboa. Era esta a situação denunciada, clamando-se pela intervenção dos poderes públicos, em nome da higiene e da moral.

Nessa época não haveria ainda barracas, senão talvez como construções esparsas, não constituindo aquilo a que veio chamar-se os bairros de lata. Estes terão começado a surgir nos primeiros anos do século actual, principalmente na periferia de Lisboa. Mas o Estado, às costas com défices crónicos do orçamento, demorava a intervir. Enquanto a situação se ia agravando, algumas iniciativas isoladas de carácter filantrópico eram lançadas nas duas cidades: Francisco Grandella e o banqueiro Cândido Sotto Mayor em Lisboa e o jornalista Bento Carqueja são alguns dos seus protagonistas.

Foi preciso esperar até 1918, quando no consulado de Sidónio Pais surgiram as primeiras medidas de protecção estatal à construção de habitações económicas. E logo no ano seguinte são lançados os primeiros “bairros sociais”, em Lisboa, no Arco do Cego e na Ajuda, que levaram no entanto mais de uma década a ficar concluídos.

Com o advento do Estado Novo, estas preocupações conhecem um novo impulso: em 1933 é criado o regime das “casas económicas”, de propriedade resolúvel, corporizando as ideias de Salazar quanto à família: casa própria, modesta e bem portuguesa – em conjuntos que pretendiam reproduzir a estrutura das aldeias, incrustados na cidade. Em 1938, pela mão de Duarte Pacheco, é assumido directamente o combate aos bairros de lata na capital, através do regime das “casas desmontáveis”, feitas de chapas de fibrocimento e para durarem 10 anos como alojamento temporário. Embora muitas tenham sido já substituídas, alguns núcleos ainda persistem passado meio século, nos bairros da Boavista e da Quinta da Calçada. Foi dessa maneira que se fez desaparecer o célebre Bairro das Minhocas, localizado perto do Rego. Acreditou-se então que o fenómeno das barracas era controlável a prazo, quando na verdade estava para lavar e durar.

Em 1945 são criadas as “casas para famílias pobres”, já que os habitantes das barracas não podiam aceder às “casas económicas”. E outras iniciativas surgem na década de 40, não já com o objecto de eliminar as barracas, mas de acudir a outros estratos sociais um pouco por todo o país, já que o problema da habitação se agravava: “casas de renda económica”, “casas de renda limitada”, “casas para pescadores”. Tiveram especial importância neste período as Caixas de Previdência, no tempo em que as prestações pagas por trabalhadores e empresas ainda se capitalizavam e investiam a um juro de sete por cento ao ano.

Entretanto é preciso esperar por 1956 para ver surgir uma acção de combate às ilhas do Porto: um programa de construção de seis mil habitações em 10 anos, destinadas aos moradores dessas ilhas.

Lá estão numerosos bairros municipais, mas as ilhas continuaram a existir na cidade. Entretanto, em Lisboa novos bairros de lata iam aparecendo, espalhando-se pelos concelhos limítrofes.

É então (1959), por decreto do Ministério da Presidência, ocupado por Pedro Teotónio Pereira, que é criado um Gabinete Técnico de Habitação na CML e se lança um programa específico de habitação social em termos integrados, de que resultaram os bairros de Olivais Norte e Sul e depois Chelas, este ainda em desenvolvimento.

Os dois bairros dos Olivais ficam na história de Lisboa como realizações positivas em termos de planeamento urbano, de prazos de execução, de integração de diferentes classes sociais e de intervenção de diversas entidades promotoras. É nestes bairros, e no do Viso, no Porto, que o regime se vê obrigado a abrir mão do ideal da casa unifamiliar para o regime de “casas económicas”.

Mas o fenómeno já era alarmante. Em 1963 o “Diário Popular” realizou um inquérito exaustivo ao problema da habitação, cujas conclusões foram organizadas em 19 artigos a publicar no jornal, e que foi realizado por uma equipa de reportagem composta por Urbano Carrasco, Mário Henriques, Corregedor da Fonseca e Nuno Rocha.

O primeiro artigo ainda chegou a ser publicado. No respectivo título dizia-se que o número de barracas em todo o país passara de 10 mil em 1959 para 50 mil em 64. Os restantes dezoito artigos foram todos cortados pela censura. Tenho na minha biblioteca um volume encadernado contendo as respectivas provas tipográficas que me foi oferecido por alguém de confiança no jornal. É um documento impressionante de como nesses tempos eram ocultadas aos portugueses as realidades do próprio país.

E no entanto a década de 60 viu ocorrer dois importantes fenómenos que actuaram como válvulas de escape na multiplicação das barracas: uma emigração maciça para a Europa, que absorveu fluxos populacionais habitualmente dirigidos para as duas áreas metropolitanas e, sobretudo, na região de Lisboa, a proliferação dos chamados bairros clandestinos, que fizeram desviar dos bairros de lata muitos dos que tinham alguma possibilidade de investimento. Em 1964 é pela primeira vez contemplada a habitação nos Planos de Fomento.

Durante o marcelismo, em que foram centralizadas todas as actividades do sector no Fundo de Fomento da Habitação, foram lançados os chamados “Planos Integrados” (Lisboa, Almada, Setúbal, Aveiro), com o objectivo de estender o exemplo dos Olivais, mas pouco se avançou. Um Colóquio sobre a Habitação e outro sobre o Urbanismo (1969) permitiram no entanto o arejamento dos diferentes problemas em aberto, até então demasiado circunscritos aos gabinetes ministeriais. Mas a Censura, agora denominada “Exame Prévio”, continuava a impedir que muitos dos aspectos sociais desta questão pudessem ser discutidos publicamente.

Veio o 25 de Abril e um processo que hoje podemos classificar de histórico veio ao de cima, com um dinamismo tal que se tornou possível uma vez mais prever o desaparecimento das barracas e das ilhas: o SAAL, Serviço de Apoio Ambulatório Local, criado por Nuno Portas, Secretário de Estado da Habitação dos primeiros governos provisórios.

Organizados os habitantes dos bairros degradados em comissões de moradores, estas desencadearam um processo de reivindicação de norte a sul do país sob a égide da palavra de ordem “Casas Sim, Barracas Não”. Com o apoio estatal, organizaram-se muitas dezenas de equipas técnicas pluridisciplinares, englobando desde arquitectos e engenheiros a sociólogos, economistas, geógrafos e trabalhadores sociais, que se encarregaram dos projectos, entretanto discutidos em assembleias gerais de moradores. As câmaras municipais, através de processos expeditos, iam disponibilizando os terrenos necessários.

Muitos destes projectos iniciaram a construção, embora a grande maioria não tivesse tido tempo de atingir essa fase. É que em 1976 o sistema foi repentinamente suspenso por decisão governamental, sendo ministro da Habitação Eduardo Pereira, no quadro da chamada normalização democrática: o SAAL foi considerado excessivamente revolucionário face ao sistema representativo, por se encontrarem no seu alicerce formas de democracia directa.

Atribuídas as competências do SAAL às Câmaras, sem qualquer apoio da Administração Central, alguns dos bairros puderam ainda ser continuados e certos terrenos aproveitados, mas o sistema tinha sido destruído. Foi o fim de um sonho de poder acabar com as barracas e com as ilhas. Assinados muitos dos projectos por alguns dos mais conceituados arquitectos portugueses, ficaram certas realizações como testemunho de muito do que se poderia ter feito e de uma forma política, social e tecnicamente inovadora para um problema que se arrastava há décadas.

Eram entretanto relançados os Planos Integrados, mas o Fundo de Fomento da Habitação, que os geria, acabou também por ser dissolvido, remetendo-se essencialmente para os mecanismos do mercado, com umas magras bonificações de juros, a resolução do problema habitacional. O Instituto Nacional de Habitação e o IGAPHE, entretanto criados, financiam algumas realizações municipais e cooperativas, mas o problema continua sem solução à vista.

Passadas duas décadas, o nível de vida das populações subiu, o parque automóvel cresceu, mas nem por isso as barracas e as ilhas viram reduzido o seu número. As que são eliminadas no decurso de programas de habitação social são muitas vezes substituídas por outras. Essas formas infra-humanas de habitação mostram assim constituir um problema estrutural da sociedade portuguesa. Ao longo dos últimos anos, a capacidade de realização de alguns municípios tem desenvolvido programas de habitação com a finalidade de acabar com o flagelo, mas a situação não dá mostras de melhorar, agravado o fenómeno com a vaga de emigração oriunda dos PALOP. Permanece como questão de fundo a enorme distância entre os valores pedidos pelo mercado e as possibilidades económicas de um vasto sector da população.

Como há 100 anos, torna-se evidente que só com uma forte intervenção da Administração Central será possível proporcionar habitações decentes às populações que delas necessitam. Foi isso que o Governo finalmente reconheceu ao lançar as medidas que vieram recentemente a público. Resta saber se será desta vez que as barracas vão acabar. E isto sem esquecer que o problema da habitação não se esgota nas barracas. Longe disso.