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Elogio do doutorando Honoris Causa, por Nuno Portas (2003)

Elogio do doutorando Honoris Causa Nuno Teotónio Pereira, por Nuno Portas
Universidade do Porto – Faculdade de Arquitectura, 22 de Janeiro de 2003

Incumbido de apresentar nesta ocasião os perfis de dois personagens maiores da arquitectura europeia do último meio século – que, por proposta da Faculdade de Arquitectura, a Universidade do Porto escolheu homenagear para exemplo dos mais novos – e de justificar o sentido dessa escolha, peço antecipadamente a vossa compreensão para a inabilidade com que o farei: por ter vivido demasiado perto de um e por ter estado demasiado longe de outro e também porque a admiração e o afecto que me ligam há muito a ambos me tornar difícil retratar um e outro nos breves quartos de hora protocolares desta cerimónia. Que me desculpem as falhas os nossos doutores e os nossos convidados.

Uma palavra inicial para explicar porque propusemos juntar no mesmo acto estes dois reconhecidos protagonistas ainda que sediados em países diversos, que raras vezes se terão cruzado, e que tiveram papéis profissionais e teóricos notoriamente distintos embora, a meu ver, mais paralelos do que divergentes.

E a razão mais simples reside no papel que, em ocasiões diferentes, ambos assumiram de reconhecimento da escola de arquitectos do Porto, tornando-a mais visível num caso ao país, noutro à Europa.

Primeiro no tempo, Teotónio Pereira foi um “regionalista critico” (avant la lettre…) que, desde a saída da escola de Lisboa, teve a percepção das afinidades com as preocupações dos seus companheiros de geração da escola do Porto e por isso estabeleceria em diversas ocasiões as primeiras pontes entre Norte e Sul, já então em torno do dualismo da modernidade e da tradição – do global e do local, ou do glocal, como hoje diríamos.

Depois Vittorio Gregotti que se iniciaria como crítico e publicista numa das mais influentes revistas de tendência da altura, defendendo a pluralidade do “moderno”, quer das suas origens quer das suas geografias, e que uma década mais tarde, através de o novo ponto focal de Barcelona, descobriria o grupo da escola do Porto e o grupo “sem escola” de Lisboa.
Ambos não abandonariam as pontes então lançadas e ambos estão aqui como prova do nosso reconhecimento ou seja, da nossa memória.

 

Nuno Teotónio Pereira, nascido nos primeiros anos da década de vinte – tal como Távora ou Taínha, entre outros arquitectos a diferentes títulos notáveis (de tal forma que poderíamos falar de um verdadeiro “vintage”!) – inicia a vida pública de jovem arquitecto aparecendo no histórico Congresso Nacional dos Arquitectos de 48 a tratar da questão da habitação após ter co-traduzido para o português, a Carta de Atenas de Le-Corbusier e enquanto projectava uma notável igreja no interior do País que constituiria (se não erro), o primeiro sinal do confronto assumido positivamente entre “modernidade” e “tradição”.
Não pretendo, nem poderia fazê-lo, percorrer o rosário das suas numerosas obras significativas , mas simplesmente lembrar o que para muitos de nós, mais novos, foi um exemplo de contínuo compromisso com o país real – e de luta, até ao sacrifício pessoal, para mudar o contexto social e político, das arquitecturas e de muito mais que a Arquitectura. E, em paralelo, de compromisso com a própria arquitectura, confrontando as pessoas e os sítios através de um método aberto que tornou possível o projecto de grupo envolvendo nas suas obras diferentes gerações e disciplinas. Para os que com ele colaboraram, essa prática foi a “escola” que os de Lisboa não tínhamos tido – sem que essa arquitectura de investigação colectiva paciente e crítica tivesse por isso que ser menos arquitectura com autor.

A investigação sobre a casa e o bairro – o tema mais constante do anos 50 aos 90 – pode ser lida em dezena e meia de conjuntos habitacionais de promoção pública em varias cidades e regiões – primeiro nas Caixas de Previdência, depois nos Olivais Norte e Sul e no Restelo, em Lisboa e finalmente no programa PER em Oeiras, formando uma riquíssima e consciente experimentação sobre a tipologia, a construção e os traçados urbanos.

A que há que juntar ainda no início dos anos 50, o emblemático edifício colectivo das Águas Livres inovador a vários níveis, do programa à organização e à linguagem (cor) não por acaso permitido por um claro plano de pormenor de Manuel Taínha que, infelizmente, não pode apadrinhar este acto.

Se me é permitido um testemunho pessoal diria que sem esse trabalho laboratorial que Teotónio Pereira nos propiciou, não teria sido provável, por exemplo, a abertura no LNEC de um sector de investigação interdisciplinar a partir de 63, devido à iniciativa de RJG [Ruy José Gomes] e para onde levei metade do n/atelier… nem a experiência do programa SAAL dos anos da Revolução, que ambos tínhamos imaginado possível, nem talvez a criação dos GAT que tinham tido um precedente na desconcentração de técnicos com autonomia para as várias regiões posta em prática quando Teotónio Pereira era consultor da Federação das Caixas de Previdência em pleno Estado Novo e por onde passaram nomes depois notáveis que me abstenho de enumerar.

Em paralelo com a habitação, Teotónio Pereira tinha , como lembrei, construído a primeira igreja “reformadora” – do conceito litúrgico até à linguagem arquitectónica – e a partir dos anos 50 polariza uma rede de jovens arquitectos e eclesiásticos que se propõe conjugar esforços na linha e João XXIII e, entre outros, do então Bispo do Porto, e lançar o Movimento de Renovação da Arte Religiosa que influenciou, através de exposições e debates, as mentalidades dominantes e daria à arquitectura moderna portuguesa (neste caso dos edifícios ou de assembleia colectivos) numerosas oportunidades de projectos interessantes que a encomenda oficial então negava. Para esse acervo ele próprio contribuiria ao longo da década de 60 com as conhecidas igrejas de Almada e, sobretudo, pela sua complexidade, a do centro da capital.

Também neste campo a procura de uma linguagem arquitectónica que se queria mais realista (ou menos abstracta em relação ao contexto geográfico, histórico, sócio-cultural) – e o adjectivo realista, se não erro, é do seu companheiro de geração talvez mais próximo, Manuel Tainha – não pode separar-se da atitude de intervenção que Teotónio Pereira manteve incansavelmente – antes mas também depois do 25 de Abril – quer no ambiente da profissão e da cultura, quer no dos direitos cívicos e pela paz, de Angola e de Timor.

E ainda posso testemunhar como o período de mais intensa produção de um atelier que sempre foi pequeno e coeso, coincidiu com o tempo dos maiores riscos do seu líder na luta pelas liberdades e contra a guerra colonial que o empenhou pessoalmente até à cadeia, de que o 25 de Abril o libertaria e na qual chegaria a desenhar peças importantes, como o sacrário, para Igreja em construção.

Conquistada a democracia, Teotónio Pereira não deixa de, a par de uma actividade de projectista agora menos intensa, se desdobrar ao serviço da organização da profissão (lançando um processo que levaria à Ordem dos Arquitectos) e a publicar artigos de opinião com maior frequência sobre as políticas urbanas e regionais e, até a realizar trabalho de investigação à habitação popular desde a 1ª industrialização em Lisboa.

Sinto que não terei dado o retrato que Teotónio Pereira merecia na hora deste acto académico que é de admiração e de justiça a alguém que, nunca tendo sido académico (porque não procurou sê-lo e não o deixaram sê-lo) foi um mestre de gerações (dos que trabalhassem ou não com ele) que aprenderam como a racionalidade dialogante que ele praticava podia ser a condição do compromisso realista que sempre defendeu – o da linguagem arquitectónica com a sociedade que a pede e dela se apropria. E ainda pelo que fez por um país mais livre e solidário e uma profissão como a nossa mais responsável.