Era uma daquelas ideias loucas, mas era simpática, bonita até. Quando ele voltasse a Portugal, haveria de regressar pelo mesmo exacto caminho, haveria de repisar estrada a estrada, batendo, casa por casa, à porta de quantos o tinham acolhido na fuga. Quando um dia regressasse. Se regressasse. Porque a situação nacional estava, assim parecia, com modos de durar.
Para seu próprio descanso, prometera-se logo dez, quinze, mais anos de exílio. Era moço, sentia-se velho. E era esse o sentimento em que teria morrido se, em vez de atirar-se à deserção, houvesse embarcado para a guerra. Porque, tanto era certo, em 1970. na Guiné, aquele bocado de mundo para onde iam mandá-lo guerrear, a morte acabava por ser, de todas as hipóteses, a mais realista. Operação no mato, uma bala já de olho nele, e pronto. «O oficial, lá, é sempre o primeiro.» Ouvira, e acreditara. «Gajo inseguro, óculos, mais idade. Não engana.» Era de uma lógica mortal.
Decidiu deixar o País no preciso instante em que, no quartel, aparecerm afixadas as notas daquele segundo mês da «especialidade». Decepcionantes. Ele era bom em algumas coisas, se metessem lérias por escrito. Tivera mesmo, com base nisso, planos de classificação vistosa. «Um tipo bem classificado tem grandes chances de não ir», afiançavam-lhe. «Ou só vai no fim, e então é que elas doem. Mas vale a pena arriscar.» Certo. Só que havia testes de desmontagem e montagem da espingarda (a G-3 era uma espingarda? hoje já não tem estas certezas), e esse desempenho, de resto fundamental, revelara-se um alçapão. E fossem ele só as armas! A componente física, ginástica e assim, também ela não dera notas brilhantes. Vendo bem, só os exercícios de orientação nocturna – dropping num pinhal, um mapa sumário e fé na estrela – só eles mereciam menção. O seu grupo, cinco cadetes amigos, era de longe o mais bem classificado. E na unidade todos sabiam, o alferes e o capitão incluídos, que era a ele, à sua incompreensível bússola interna, que se deviam as chegadas às horas e aos postos certos.
Mas o panorama total era alarmante. Nunca ficaria entre os cinco, mesmo os dez, primeiros, ainda que batesse a malta de Coimbra, aqueles quinze indisciplinados universitários que a sabedoria militar havia mantido juntos no seu pelotão. É que bastantes outros lhe passariam à frente: os paisanos, esses a quem a cultura não atrofiara nem o senso prático nem os músculos.
Só muitos anos depois saberia que, ainda ele não cruzara os Pirenéus, já os revoltosos coimbrões estavam de regresso às carteiras. A saída deles transtornava toda a classificação final, deixando mesmo os melhores à beira da mobilização. Nem a genica natural nem o esforçado cerrar de dentes, nada haveria valido aos pobres.
*
Abandonou o país por uma bela tarde de Março de 1970. Já conhecia Marvão, só nunca a imaginara cenário de relevo na sua vida. Era lá que alguém que agora ia ajudá-lo tinha uma casa, um arquitecto da capital, Nuno Teotónio Pereira, que só nesse dia viria a conhecer. Bastantes foragidos haviam, antes dele, saído dessa primorosa mansão para irem «comprar chocolates» a Espanha. Acto ilegal, fraqueza lamentável, mas tão humanos que qualquer guarda-fronteira fecharia os olhos.
Iam um grupinho. O arquitecto e a mulher, um filho deles, porventura dois, um casal amigo a caminho de Cáceres, e mais uma pessoa, Joel Pinto, o jovem tranquilo que, na manhã dessa sexta-feira, em Lisboa, se lhe apresentara como pastor protestante, e ele soubera ir ser seu colega de aventura. Dias depois, descobririam que o pai de um e o de outro eram colegas na CUF.
Dessa surtida em território espanhol, restam boas recordações e uma excelente fotografia de grupo, provavelmente tirada pelo arquitecto.
Quatro anos mais tarde, em Lisboa – porque o exílio afinal só duraria isso – encontraria ele o arquitecto num comício do MESm uma extrema-esquerda moderada. E ele haveria de abordá-lo, e de agradecer-lhe, como quem agradece a um santo. O arquitecto, simpático, sorriu, mas não se lembrava dele. Um santo, nem mais.
Os chocolates, único gasto seu naquele dia, acabaram deveras comprados, e alguns comidos. Mas, na reentrada no país, faltariam ele e o pastor. Foram escondidos num matagal, e ficaram esperando que um carro, pela fronteira legal, os viesse buscar. «Duas horitas, e a gente vem apanhá-los.» Procedimento banal, mas ele não o sabia. Cento e vinte minutos podem levar eternidades a passar. Nem por teima, era aquilo uma Sexta-feira Santa, à exacta hora em que também o Outro aguentara horas, e em piores condições.
A madrugada de sábado achou-os em Madrid. O casalinho – José Alberto Franco e a namorada – que os resgatara no matagal e estava para deixá-los em Cáceres acabou por levá-los à grande capital, a uma casa de padres, perturbados no sono, mas logo solícitos. Um deles, ainda o sol não rompera, pegou no carro e meteu-se com eles a caminho da longínqua Barcelona. «De comboio, pela fronteira, nunca. É um suicídio», diziam-lhes, querendo demovê-los do plano inicial: passar a fronteira em Irun, na legalidade. E mais lhes disseram que, em Barcelona, havia alguém, um padre também ele, que conhecia palmo a palmo os Pirenéus, onde nascera, e que os poria salvos em França.
[Aproveito para recordar um susto (e, informo, em toda esta vadiagem por Espanha não havia ainda um quilómetro de auto-estrada). Na viagem para Cáceres, fomos parados pela Guarda Civil. Na troca de palavras com o Zé Alberto, surgiu a palavra denuncia, que nós, compreensivelmente, interpretámos da pior maneira, mas que, ali, se relacionava com uma eventual multa].
Chegaram à tardinha desse Sábado Santo à capital catalã. Foram entregues em nova casa paroquial, tão suspeita politicamente como a de Madrid, se não mais. Os senhores priores, entre si, falavam um impenetrável catalão, mas com eles condescendiam no castelhano. O tal padre fronteiriço apareceu horas depois. Vinha exactamente de uma caminhada pelas montanhas natais. «Combinado», disse ele. «Eu ponho-vos em França. De hoje a oito dias.» Oito dias! Outra eternidade. Mas não sobrava alternativa.
O valium é uma grande invenção. Uma invenção triste, mas a vida, às vezes, é uma tristeza toda ela. Doze horas de sono podem ser, e no caso ali eram, uma prenda inestimável. E, depois, até ao perigo uma pessoa se habitua. Já ao quarto dia eles iniciavam a volta turística de Barcelona. As Ramblas, Montjuic, o trivial.
E chegou o dia aprazado da fuga definitiva, domingo, o primeiro domingo de Abril. Eram as cinco da tarde quando, a dois mil e quinhentos metros, no cocuruto do monte que haviam subido, se lhes desdobrou ante os olhos o mais deslumbrante dos panoramas. De Oeste a Leste, quanto a vista abarcava, uma cordilheira refulgia, rosa e laranja, ao sol declinando. Os Pirenéus.
Não, a liberdade pode vir na mais fria das brumas, ter o cheiro da imundície, e será sempre uma bênção. Não era preciso ela chegar assim, nesse assombroso esplendor.
Desceram até à primeira aldeia francesa, La Preste, onde novo carro e novo sacerdote os esperava. Foram dormir a Montpellier, a um convento de frades dominicanos. O companheiro, Joel, decidiu ficar. Iria em breve demandar a Suíça, onde estudos de teologia, e depois a mulher, Margarida, o esperariam.
Ele, não. Era o Norte que o atraía. Ao terceiro dia, meteram-lhe na mão uma bucha, um bilhete de comboio e um endereço de convento dos mesmos pregadores em Paris.
Só que Paris era o que já se conhecia de filmes e bilhetes-postais, e por isso rumou ainda mais a norte, a outros países, outras gentes. Guarda hoje, ciosamente, o bilhete até Amsterdam. Por lá ficaria 47 anos, mas isso não o sabia ele.
Chegou à capital holandesa com o exacto dinheiro com que partira de Lisboa. Cinco mil escudos. Uma fortuna, num escudo ainda forte, que um casal católico progressista do Lumiar lhe emprestara. Ao fim de três meses de salários nórdicos, conseguiu devolver por inteiro o empréstimo.
*
Quando pôde regressar, numa amnistia no Natal de 74, fê-lo banalmente de avião. O peregrinar por terra, que se havia proposto, não foi esquecido, mas estava impraticável. Não guardara moradas nem de Paris, nem de Montpellier, nem de Barcelona, nem de Madrid. Não tivera esse cuidado, ele que tão lindos planos concebera. Não havia, assim, meio de agradecer àquela santa gente.
E, depois, o mais certo era todos eles, como santos verdadeiros, já nem dele se lembrarem.
Um forte abraço, Joel.
Um eterno obrigado, Zé Alberto.
À memória do arquitecto Nuno Teotónio Pereira
Fernando Venâncio
Março de 2022