Texto Habitação

Habitação económica e reajustamento social (1948)

PEREIRA, N. Teotónio, MARTINS, M. Costa. “Habitação económica e reajustamento social”. 1º Congresso Nacional de Arquitectura: Maio-Junho de 1948: promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos com o patrocínio do Governo. 1948, pp. 243-249. Também editado como separata, 7 p.
Republicado em 1º Congresso Nacional de Arquitectura: Maio-Junho de 1948: promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos com o patrocínio do Governo. Ordem dos Arquitectos, 2008, pp. 243-249 [edição fac-similada].

HABITAÇÃO ECONÓMICA E REAJUSTAMENTO SOCIAL

É bem do conhecimento geral a premente necessidade de habitações – um dos mais tremendos problemas da época. Uma enorme parte da população está alojada em condições que não satisfazem as mais fundamentais exigências psico-fisiológicas do Homem. Por outro lado, a formação de novos lares em condições satisfatórias é dificultada pela mesma insuficiência, o que agrava progressivamente a situação, comprometendo a possibilidade de um futuro melhor.

O problema só poderá ser resolvido no quadro de uma planificação nacional que inclua uma nova localização das indústrias, e por meio de uma intensa e pertinaz acção conjugada de inúmeros sectores do saber e do trabalho humanos, da qual as ciências económicas e jurídicas e as técnicas construtivas participarão de modo decisivo.

Esta tese, não pretendendo contribuir directamente para a resolução do problema, procura definir – analisando sistematicamente as características da população das grandes cidades – as respectivas necessidades habitacionais na cidade e na casa, com vista a um reajustamento social.

Pensamos que, ao focar este importantíssimo aspecto do problema, poderemos contribuir para que seja grandemente aumentado o alcance social da apreciável obra de construção em curso.

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Os resultados da referida análise levaram-nos a distinguir, no panorama social observado, através de características peculiares, duas grandes classes bem diferenciadas, as quais designaremos por classe proletária e classe média. Essas características irão determinar, à luz de princípios orientadores, os correspondentes tipos de habitação e sua inter-relação na cidade.

Os indivíduos de que se compõe em grande maioria a classe proletária vivem em bairros miseráveis ou do próprio centro da cidade. Nos primeiros é enorme a percentagem de imigrantes, arrancados ao seu meio próprio – desenraizados. Por outro lado, as condições em que é exercido o trabalho, a actividade recreativa caracterizada por manifestações rudimentares e fechadas, e as possibilidades muito limitadas de actividade cultural (grande maioria de analfabetos), determinam uma quase total impossibilidade de elevação e de progresso, quer directamente através dos agentes próprios (jornal, cinema, livro) ou de instituições com essa finalidade, quer indirectamente pelo contacto com camadas mais elevadas da população. Vivendo à margem da cidade, em bairros reservados, não participam da vida que lhe é própria.

Por tudo isso possuem baixo nível cultural, sentido cívico atrofiado, menos respeito por si, pelo semelhante e pelas instituições; e certa carência de princípios morais – muitas vezes os mais elementares.

Pelo contrário, a classe média é formada por indivíduos que têm já uma tradição citadina, que estão integrados na cidade, que têm hábitos urbanos.

O próprio campo onde exercem a sua actividade – que nunca é predominantemente física – oferece oportunidades de relação e contribui assim para uma subida quotidiana do nível social e cultural, ainda reforçada pelos instrumentos de cultura e de recreio que têm ao seu alcance.

Possuem uma melhor compreensão do dever cívico, uma mais larga possibilidade de aproveitamento dos benefícios e de uso dos direitos proporcionados pela cidade, uma mais pronta e consciente aceitação das disciplinas impostas pela vida em comum.

Esta distinção de classes não se baseia em factores de ordem económica, e só em parte corresponderia a qualquer classificação que os tivesse por base, pois em ambas existem indivíduos de vida extremamente difícil e de vida relativamente desafogada. Grande parte dos componentes da classe média têm mesmo rendimentos absolutos inferiores a muitos indivíduos da classe proletária. Como o desafogo económico é dado pela relação rendimentos / necessidades, verificamos que a diferença entre rendimentos relativos de uma e de outra é ainda mais acentuada. Nível social não é o mesmo que nível económico.

No panorama social das grandes cidades notam-se dois movimentos contrários, um ascendente, outro descendente. O primeiro é caracterizado por uma evolução progressiva do estilo de vida – tornada possível pelo contacto e favorecida pelo desafogo económico – em que elementos do proletariado vão encorporar-se na classe média. O segundo consiste no abaixamento do nível geral da classe média, provocado na maior parte dos casos pela impossibilidade de satisfazer as necessidades correspondentes ao seu estilo de vida.

Entendemos que é preciso eliminar as causas do movimento descendente da classe média e acelerar e generalizar ao máximo o movimento ascendente da classe proletária.

Para o primeiro objectivo, uma contribuição poderosa e indispensável será a construção de habitações em quantidade e qualidade tais que satisfaçam as necessidades da classe média, de modo a esta poder manter o seu nível específico.

Com relação à classe proletária, os meios a empregar terão que ser mais amplos e radicais.

Antes de mais nada, como condição essencial há que recebê-la na cidade, o que, para além de um sentido meramente topográfico, quer dizer: colocá-la em contacto com os elementos que caracterizam esta socialmente. No entanto, isto deverá fazer-se em condições transitórias que permitam habilitá-la a participar um dia plenamente da sua vida. Além do seu significado profundamente humano, que deve ser realçado, isso proporcionará a única forma de estabelecer o preconizado contacto com a população de nível mais elevado, e acabar com a proscrição a que agora o proletariado se encontra sujeito.

Esse contacto, que fornecerá continuamente oportunidades de elevação, deverá ser em grau tal que permita a mais rápida subida de nível da classe proletária, sem contudo fazer baixar o da classe média. Essa também tirará daí o seu benefício, adquirindo um maior grau de compreensão humana e de consciência social.

Outro factor imprescindível será a realização de uma campanha, utilizando todos os meios de que hoje se dispõe, com uma finalidade educativa e de assistência social que, além de consequências directas, proporcionará aos elementos do proletariado a possibilidade de explorarem por si próprios novas fontes de elevação e de cultura.

Vejamos agora de que maneira as determinantes acima apontadas se poderão concretizar, primeiro na estrutura da cidade, e a seguir na da própria habitação.

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Para que seja possível o contacto preconizado, será preciso relacionar as habitações das duas classes de tal modo que possam estabelecer relações de vizinhança.

Mas para que o grau dessas relações permita o equilíbrio apontado, elas devem ser proporcionadas, não dentro da unidade habitacional (prédio), mas sim de uma unidade de vizinhança, base de uma comunidade que virá a ser uma nova e autêntica freguesia.

Essa unidade de vizinhança será composta por unidades habitacionais de uma e de outra classe, constituindo um todo a que será imprescindível juntar os instrumentos de carácter social tendentes a tornar possível, tanto uma urgente acção educativa – cuja finalidade é a elevação – como a realização das manifestações colectivas próprias da cidade. São elas: Escolas (Primária e Infantil), Igreja, Biblioteca, Administração local, Serviços Públicos, Clube Recreativo, Centro de Saúde, Cinema, Terrenos de Jogos, Café, Centro de juventude, Comércio, etc.

Em face dos graves inconvenientes, hoje universalmente reconhecidos, da grande extensão das cidades, torna-se urgentemente necessário aplicar em grande escala o princípio da construção em altura. Mas, considerando as características sociológicas da classe proletária atrás apontadas, e que não correspondem aos requisitos que uma grande aglomeração de fogos na mesma unidade exige; e dado ainda o carácter transitório que preconizamos para as habitações da mesma classe, cremos que as unidades habitacionais respectivas não podem ser desse tipo de construção.

Em contrapartida, entendemos que o mesmo princípio deve aplicar-se às habitações da classe média no máximo das suas possibilidades.

À medida que uma planificação nacional em grande escala for eliminando as causas que criaram o actual estado trágico das cidades, as habitações transitórias da classe proletária irão sendo substituídas.

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Estabelecidas assim as normas que condicionarão a estrutura da cidade, em função da análise sociológica e com vista aos objectivos propostos, vejamos algumas das suas repercussões na estrutura da habitação.

Para suster o já notado movimento de proletarização da classe média, concluímos que a construção de habitações em número suficiente e com as condições exigidas pelo seu estilo de vida, contribuirá poderosa e decisivamente.

Para promover a elevação da classe proletária, a construção de habitações adequadas será também um dos mais eficientes e indispensáveis meios. Tais habitações deverão tornar possível, já a plena satisfação das necessidades pré-existentes, já o despertar de outras necessidades, a satisfazer ainda de maneira rudimentar. De carácter provisório, serão o quadro de uma espécie de aprendizagem, obrigatoriamente completada por uma intensa acção educativa.

Posto isto, vamos analisar algumas das funções habitacionais requeridas por uma e outra classes.

Das funções individuais, há duas a que deve ser dada importância equivalente em ambos os casos – dormida e higiene, pois estas têm a satisfazer necessidades de ordem fisiológica em condições de recato – requisitos que são indispensáveis para uma boa saúde física e mental.

Entendemos que, neste caso, o estado transitório não deve ser considerado. Porque, não obstante os indivíduos da classe proletária estarem nas condições actuais muito longe de possuir necessidades higiénicas satisfatórias, reputamos ser condição essencial para a sua elevação – ao mesmo tempo que exigência imperativa da cidade – levá-los a adquiri-las em grau normal. Para isso é fundamental facultar-lhes meios de satisfação dessas necessidades, tão completos, pelo menos, como os que dispõe normalmente a classe média. E isto porque qualquer acção educativa exterior será infrutífera, se as condições proporcionadas não forem convidativas.

Há duas necessidades que são satisfeitas no quadro familiar: a de recreio, consubstanciada no serão, e a alimentar, concretizada na refeição. Estas funções – que implicam reunião – apresentam sensíveis diferenças em relação a uma e a outra classes, acentuadas neste caso pela existência, ou não, de criada.

A efectivação do serão em condições adequadas é fundamental para assegurar uma vida familiar plena. Enquanto esta instituição atinge na classe média o seu maior esplendor, quando existe na família proletária é em forma rudimentar; porque, se por um lado, a habitação actual da classe proletária não lhe proporciona o necessário enquadramento, por outro, a carência de meios de recreação não lhe fornece o indispensável alimento. A necessidade muito frequente de deitar cedo, e o cansaço motivado pelo trabalho físico, quase sempre violento, vêm ainda reforçar essa deficiência. De acordo com a forma transitória preconizada para a habitação proletária, ela deverá permitir a realização desta função, mas num grau pouco evoluído.

No que respeita à classe média, a não existência de criada introduz uma diferenciação bem marcada pois, nesse caso, será a mãe de família a executar todo o trabalho doméstico – muitas vezes ao mesmo tempo que no centro de reunião se passa o recreio familiar, do qual necessita de participar. Como o trabalho doméstico é na maior parte realizado na zona de serviço, terá que proporcionar-se uma ampla ligação entre esta e o local de reunião.

A refeição assume um carácter solene e simbólico que aumenta na mesma medida do nível social. Assim, a família da classe média exige para esta função um enquadramento apropriado. Dentro desta mesma classe, também a não existência de criada torna indispensável – e este é o caso da classe proletária – uma contiguidade perfeita entre a cozinha e o local da refeição.

As necessidades extra-familiares estão na base da chamada vida de relação, a qual é uma das características mais próprias da classe média, manifestando-se de uma forma atrofiada entre o proletariado. Essa vida de relação é representada, tanto pela simples visita provocada pela necessidade de reunião inter-familiar e afectiva, como pela visita cerimoniosa, motivada por convenções sociais ou por razões profissionais.

Geralmente, a primeira no próprio quadro da reunião familiar, o que quer dizer que a habitação, em qualquer dos casos, não necessita de local especialmente consagrado a esse fim. No que diz respeito às visitas da segunda espécie, verificamos que apenas na habitação da classe média deverá ser previsto o local para a sua efectivação.

Através dos casos apresentados, exemplificamos como poderá a habitação corresponder às necessidades observadas, permitindo ao mesmo tempo a realização dos objectivos propostos.

RESUMO E CONCLUSÕES

Em face da trágica necessidade de habitações, verificamos que O PROBLEMA SÓ PODERÁ SER RESOLVIDO NO QUADRO DE UMA PLANIFICAÇÃO NACIONAL E POR MEIO DE UMA ACÇÃO CONJUGADA DE INÚMEROS SECTORES DO SABER E DO TRABALHO HUMANOS.

Procuramos definir, com vista a um reajustamento social, algumas características da cidade a reformar e da habitação a construir.

Uma análise do corpo social das grandes cidades permite-nos distinguir dois grupos entre a população que sofre a falta de alojamentos.

Verificamos que um desses grupos – a classe proletária – vive à margem da cidade, constituindo nela um corpo estranho.

Constatada a existência de dois movimentos declaramos que é preciso acelerar e generalizar ao máximo o movimento ascendente da classe proletária, eliminando ao mesmo tempo as causas que motivam o movimento descendente da classe média.

Para tanto, pensamos que É CONDIÇÃO PRELIMINAR E ESSENCIAL INTEGRAR NA CIDADE AS HABITAÇÕES DA CLASSE PROLETÁRIA, ABANDONANDO-SE A CONSTRUÇÃO DE BAIRROS EXCLUSIVOS. UMA INTENSA ACÇÃO EDUCATIVA SERÁ INDISPENSÁVEL.

A concretização destas determinantes na estrutura da cidade leva-nos a concluir que É PRECISO CONSTITUIR UNIDADES DE VIZINHANÇA, FORMADA POR UNIDADES DE HABITAÇÃO DE UMA E OUTRA CLASSE, COMPLETANDO O CONJUNTO PELOS INDISPENSÁVEIS E VARIADOS INSTRUMENTOS DE CARÁCTER SOCIAL.

Verificamos ao mesmo tempo a conveniência de se APLICAR EM GRANDE ESCALA NAS HABITAÇÕES DA CLASSE MÉDIA O PRINCÍPIO DA CONSTRUÇÃO EM ALTURA, RESERVANDO-SE PARA A CLASSE PROLETÁRIA UNIDADES DE CARÁCTER MENOS DURADOURO E SEM GRANDE AGLOMERAÇÃO DE FOGOS.

Por consequência, DEVE ABANDONAR-SE A CONSTRUÇÃO DE PRÉDIOS DE MEIA ALTURA, SOCIALMENTE INCONVENIENTES PARA A CLASSE PROLETÁRIA E ECONOMICAMENTE PREJUDICIAIS PARA A CLASSE MÉDIA.

No que respeita à casa, pensamos que É NECESSÁRIO TENTAR RESOLVER AS FUNÇÕES HABITACIONAIS COM BASE NAS CARACTERÍSTICAS SOCIOLÓGICAS OBSERVADAS E À LUZ DOS PRINCÍPIOS ENUNCIADOS.

FINALMENTE, DECLARAMOS ACREDITAR QUE SERÁ NECESSÁRIO INCLUIR OBJECTIVOS DE REAJUSTAMENTO SOCIAL NUM PROGRAMA QUE PRETENDA A UMA AUTÊNTICA REFORMA DA CIDADE.