PEREIRA, Nuno Teotónio. “Habitações para o maior número”. Colóquio de Urbanismo, Funchal: Câmara Municipal, 1969, pp. 87-100.
Intervenção em colóquio realizado no Funchal, 8 jan. 1969.
Republicado em Arquitectura, nº 110, jul./ago. 1969.
Republicado em Escritos: 1947-1996: selecção. Porto: FAUP Publicações, 1996, pp. 78-97.
HABITAÇÕES PARA O MAIOR NÚMERO
Dimensão e natureza do problema
No processo de crescimento das cidades modernas, a habitação tende a desequilibrar a estrutura urbana tradicional: as zonas de residência aumentam desmesuradamente, desenvolvendo-se em sucessivos anéis ou estendendo-se em tentáculos, cavalgando rapidamente as barreiras administrativas e naturais e deixando para trás sucessivos planos de urbanização, aliás inoperantes.
Lisboa, poe exemplo, cresce hoje mais extramuros do que dentro da cidade, e tenderá a ser assim cada vez mais. Entre os censos de 1950 e 1960, a população de Lisboa-cidade aumentou apenas de 27.000 habitantes, enquanto que a do seu aglomerado suburbano subiu de 188.000[1]. Muito provavelmente, o censo de 1970 revelará que a população deste terá igualado a da própria cidade.
Como estes aglomerados suburbanos não dispõem senão de rudimentares (e por vezes inexistentes) zonas centrais, as cidades são cada vez maiores extensões de casario compacto, imagem materializada da especulação exaustiva do solo. A função habitacional em sentido restrito, isto é, reduzida ao âmbito exclusivo do alojamento familiar e ignorando os equipamentos complementares exigidos pela vida actual, toma uma preponderância patológica, que tanto deforma a estrutura urbana, como impossibilita a criação de um ambiente verdadeiramente citadino.
É nesta perspectiva que se deve enquadrar o problema da habitação para o maior número. Não se trata apenas de uma questão de quantidade; existe um aspecto qualitativo igualmente importante, gerado pela mesma quantidade, e que implica alterações estruturais, impostas pela passagem de uma sociedade de base rural apoiada em centros urbanos a uma sociedade de raiz urbana. A nova dimensão é assim que deve ser entendida.
Quer dizer: para enfrentar o problema da habitação para o maior número, será necessário construir muitas centenas de milhar de casas – aspecto quantitativo; mas, além disto, algo mais será necessário resolver: para quem as construir?; onde as construir?; como as construir? E mais ainda: construir, não somatórios exaustivos de habitações, mas conjuntos urbanos equilibradamente organizados e equipados.
Quem são o maior número
Quem são, como vivem, onde moram, aqueles que constituem o maior número que nos interessa?
Em primeiro lugar, a população mal alojada, em sentido restrito. Quer dizer: os que vivem em condições deficientes quanto às características da célula familiar. São, efectivamente, multidões. Na zona de Lisboa, por exemplo (cidade e aglomerado suburbano) contavam-se em 1960 163.000 famílias que viviam em partes de casa, em fogos superlotados ou em construções improvisadas, isto é, mais de 50% do número total de famílias residentes.[2] Mas as más condições de alojamento não se traduzem apenas em termos de capacidade. Alguns outros indicadores são conhecidos, como os que se referem ao grau de equipamento instalado nas casas de habitação. Com referência ao aglomerado suburbano de Lisboa, em 1960, ainda 39% dos 150 mil agregados domésticos inventariados não dispunham de água canalizada; 29% não tinham esgoto de qualquer natureza; e 34% não estavam ligados à rede eléctrica. Para a zona arrabaldina do Funchal (concelho com exclusão da cidade), as mesmas percentagens eram respectivamente de 76%, 45% e 46%.[3]
Mas estes números apenas entram em linha de conta com as condições de habitação em sentido restrito, pois carências por vezes mais graves são verificadas a outros níveis de observação, à escala do bairro, da unidade de residência, do próprio aglomerado.
Dois problemas se põem sobretudo a esta escala: as deficiências de infraestruturas e de equipamentos urbanos e a marginalidade das populações. Quantas pessoas vivem privadas daquilo que a cidade lhes devia dar no que respeita a transportes, a higiene e conforto, a equipamento escolar, a diversões, etc.? Dos 534.000 habitantes do aglomerado suburbano de Lisboa, para continuarmos com exemplos desta zona-teste do crescimento urbano, quantos disporão de equipamentos de base ao nível dos da capital?
Verifica-se assim uma situação de marginalidade que afecta um número crescente de pessoas, à medida que a imigração urbana se acelera, situação essa resultante da insuficiência dos recursos consagrados pela colectividade às necessidades das populações recém-chegadas, e que tende a acumular situações deficitárias.
Podem muitas famílias dispor de boas condições de habitação quanto ao alojamento restrito, mas as características do habitat envolvente serem extremamente precárias. Podem ainda ter atingido um estatuto socioprofissional relativamente elevado, mas continuarem privados de direitos elementares de cidadania no que se refere às condições efectivas de inserção territorial.
As situações de carência que foram referidas encontram as suas causas na incapacidade da nossa sociedade em criar estruturas urbanas para responder ao fenómeno da deslocação massiva de populações provocado pela passagem de uma sociedade agrária a uma sociedade industrial. Mas esta incapacidade radica-se directamente nas condições económicas da população envolvida neste processo de imigração: quantas famílias terão possibilidade de pagar um alojamento satisfatório inserido numa estrutura urbana adequadamente equipada?
De acordo com estudos realizados para o III Plano de Fomento[4], 90% da população portuguesa não aufere rendimentos suficientes para pagar a renda de uma habitação mínima com características adequadas e, portanto, com maioria de razão, para a adquirir. O desnível entre as necessidades de habitação e os recursos individuais para as satisfazer constitui o cerne do problema habitacional; desnível abrangendo camadas da população cada vez mais vastas, na medida em que é mais acentuado nos meios urbanos sujeitos a uma forte pressão da procura; e desnível ao mesmo tempo crescente, pois têm aumentado mais rapidamente os componentes do custo da habitação (terrenos, urbanização, construção) do que os salários da população carecida.
Este problema é certamente mais grave no Funchal, em comparação com as condições médias verificadas na Metrópole, dado o alto valor dos terrenos aqui praticado, os encargos adicionais que agravam o custo da construção (elevada percentagem de materiais importados) e o relativamente baixo nível dos rendimentos familiares.
Mas um aspecto fundamental deste fenómeno de carência é o seu carácter progressivo. A pressão demográfica nas zonas em processo de urbanização, provocada sobretudo pelo afluxo de populações rurais, é agravada por factores secundários: a redução da dimensão das famílias em meio urbano (e, portanto, a necessidade de mais habitações para uma dada população); a absorção de casas de habitação por actividades do sector terciário; a eliminação constante de residências por motivo de obras de urbanização ou outras; o envelhecimento provocado pela elevação constante dos padrões habitacionais, etc. Num país em vias de desenvolvimento, onde o processo da industrialização está apenas iniciado, este fenómeno não é acidental, mas corresponde a um processo contínuo em permanente aceleração. E quando não é correspondido por uma oferta paralela de novas habitações, a crise do alojamento tende a agravar-se.
Por esta razão, o problema habitacional não pode já hoje referir-se a determinadas categorias da população, chamadas as mais desfavorecidas ou economicamente débeis: a amplitude da crise tem abarcado constantemente novas camadas, e tornou-se hoje um fenómeno colectivo à escala da generalidade da população. Estes dois aspectos do problema – crescimento acelerado das necessidades e alargamento do seu âmbito – impõem uma perspectiva radicalmente diferente da que tem sido habitualmente encarada: perspectiva que supõe esquemas planeados de desenvolvimento urbano. O problema da habitação não pode resolver-se hoje com a construção de alguns bairros, como já não podia resolver-se ontem apenas com a construção de algumas casas. Eis por que o maior número não é uma realidade estática: há que reconhecer o seu dinamismo para o colocar numa perspectiva realista que permita forjar os instrumentos necessários à resolução dos problemas que o concernem.
Efectivamente, se a carência de recursos é um facto, a carência verificada de instrumentos de actuação ainda torna mais limitadas as possibilidades de que se dispõe. Faltam os mecanismos jurídicos indispensáveis à disposição de terrenos em condições adequadas de localização e de custo; faltam os mecanismos financeiros necessários para fazer convergir os capitais em operações programadas de envergadura; faltam as estruturas administrativas conducentes à coordenação dos empreendimentos nos diferentes níveis; faltam os dispositivos que permitam superar as limitações que afectam a indústria da construção, em materiais, mão-de-obra e processos de construção; faltam, enfim, os instrumentos que permitam congregar esforços, fazer convergir recursos, minimizar os encargos.
Seria relativamente fácil mostrar que os estrangulamentos que afectam os nossos programas de habitação resultam antes de mais na falta de instrumentos adequados: a celebrada carência de recursos será apenas uma segunda barreira, que muitas vezes nem sequer é atingida.
Muito esquematicamente, traçaram-se assim alguns contornos desse grupo humano que, do ponto de vista habitacional, constitui o maior número: mal alojados; mantidos à margem do meio urbano que os atraiu; sem recursos para obter uma habitação adequada dentro dos esquemas convencionais. Grupo humano que engrossa permanentemente, com a chegada de ondas migratórias e de novas gerações à idade adulta.
Mas, algo mais: vítima também de estruturas jurídicas e administrativas que constituem obstáculos para a superação das privações a que está sujeito, e cujo carácter artificial torna manifesta a sua invalidade; dos quais o estatuto soberano da propriedade privada do solo para construção é bem a pedra de escândalo.
Construir para o maior número
Das considerações acabadas de fazer, podem extrair-se, com as cautelas que o carácter sumário do método aconselha, alguns critérios que permitam orientar acções ou empreendimentos habitacionais efectivamente dirigidos ao maior número. E à luz desses critérios fazer a seguir alguns comentários à experiência portuguesa neste domínio.
Na realidade, tem sido frequente que os empreendimentos dirigidos exactamente às populações mais mal alojadas sejam implantados em lugares segregados, fora dos circuitos de transportes públicos, desprovidos de equipamento básico. Muitas vezes ainda obedecendo a sistemas de construção precários, sem qualquer possibilidade de melhoria ulterior: os bairros de fibrocimento ou mesmo de tijolo para as chamadas classes pobres ou para os habitantes de barracas são exemplos de uma visão errada na construção para o maior número.
Efectivamente, programas habitacionais dirigidos ao maior número implicam necessariamente uma certa dimensão – o factor quantitativo não pode ser deixado de lado – ou ainda uma pressionante urgência; mas não serão empreendimentos isolados, ainda que vastos ou de emergência, que poderão contribuir para a solução do problema, tal como foi exposto atrás. Tais programas beneficiarão sempre (e talvez de forma precária) uma pequena percentagem das massas de população carecida em ritmo crescente. E podem criar a ilusão (e isto tem acontecido) de que se está a fazer algo para debelar realmente o mal.
Só serão na realidade dirigidas ao maior número as acções que se inscrevam num processo rápido de superação da situação de crise actual, bem como da absorção das necessidades previsíveis em futuro próximo; processo que considere as necessidades de habitação não apenas quanto aos aspectos quantitativos, mas também qualitativos (nível das rendas, inserção urbana, etc.); e que se encaminhe para a maximização dos recursos disponíveis e a minimização dos encargos, inserindo-se numa perspectiva de resolução progressiva.
Segundo os últimos dados conhecidos, referentes a 1967[5], a construção de habitações atingiu nesse ano, depois de uma estagnação nos dois anos anteriores, a cifra de 41.000, muito distante ainda do número médio anual necessário para a eliminação do défice habitacional em 20 anos, que é de 65.000[6], mas mesmo assim um volume jamais atingido no nosso País. Mas, pergunta-se: destes milhares de novas habitações, quantas foram, efectivamente para benefício do maior número, sabendo-se que a percentagem de fogos construídos pelo sector público e, portanto, mais dirigidos às populações necessitadas e mais ordenadamente inseridos (na maioria dos casos) em expansões urbanas planeadas, não deve ter ultrapassado os crónicos 5%? Pois sabe-se como são, em geral, os restantes 95%: ou habitações construídas pelos próprios, disseminadas pelo território, ou casas de rendimento, produto da actividade especulativa nas regiões de maior procura.
Podem, portanto, atingir-se volumes elevados de construção, sem que, necessariamente, se esteja a construir para o maior número. E pode, inversamente, construir-se relativamente pouco (num número inicial), construindo-se para o maior número, desde que, por exemplo, os investimentos sejam concentrados em empreendimentos-piloto de carácter inovador ou aplicados em programas de expansão urbana ordenada ou inseridos em reformas estruturais do sector; concorrendo em qualquer caso para a obtenção de instrumentos técnicos, jurídicos ou administrativos suceptíveis de permitirem um aumento rápido da produção de habitações, no âmbito de um crescimento ordenado das cidades, integrando ao mesmo tempo franjas marginais e recuperando zonas degradadas.
Nesta perspectiva, caberiam, por exemplo: a adopção de regimes legais permitindo a utilização do solo urbano por forma a fazer prevalecer o interesse geral sobre os interesses particulares; a organização de sistemas de financiamento e de locação que reduzissem substancialmente a distância entre os encargos com a habitação e as possibilidades económicas dos utentes; a utilização de métodos de programação, de desenho, de gestão, de execução cada vez mais rápidos, rigorosos e produtivos. Isto quer dizer também que, do ponto de vista do maior número, contam não apenas a quantidade e a qualidade dos empreendimentos, mas o seu efeito multiplicador ou generalizador, num processo em que cada acção deve beneficiar das experiências anteriores e procurar traduzir-se em novas aquisições instrumentais, de alcance cada vez mais amplo. Considerando o plano específico da expansão urbana, só este processo permitirá superar a situação actual, que consiste na chamada acção disciplinadora ou correctiva a que o planeamento tenta obrigar os mecanismos da produção, integrando ao invés estes mesmos mecanismos na expansão ordenada da cidade.
Visando mais directamente o tema geral do Colóquio, que trata do planeamento físico do Funchal, sublinham-se dois aspectos, aliás inter-relacionados, que têm a ver com a problemática da habitação e cuja acuidade aqui salta mais à vista.
Um desses aspectos é a inter-relação das unidades familiares de alojamento; na verdade, o carácter urbano que se considera condição para uma integração citadina não se alcança com a repetição exaustiva de moradias unifamiliares independentes, obedecendo a padrões herdados do habitat rural. Um índice de ocupação do solo compatível com a rentabilidade não só financeira mas social dos recursos investidos em casas e equipamentos implica formas de agrupamento das habitações, sob pena de se criarem condições de habitabilidade e de urbanização precárias. Os requisitos de privacidade, como os de sociabilidade e os de economia, exigem o agrupamento ordenado, que assumirá formas diferentes de acordo com a topografia, a estrutura da propriedade, o sistema de locação, etc. Por outro lado, as funções habitacionais não se satisfazem unicamente entre as quatro paredes de uma casa: a interdependência entre a habitação e os espaços que a envolvem, entre a casa e os equipamentos colectivos é uma característica da estrutura urbana que a evolução social tem acentuado incessantemente. Daí a necessidade da interpenetração de espaços, a dificuldade de demarcar linhas divisórias nítidas. Daí ainda a importância cada vez maior das infra-estruturas e das instalações de interesse geral para a fruição de condições de habitabilidade satisfatórias.
A experiência portuguesa
Ao longo de quase 40 anos de legislação e de realizações, a nossa experiência em matéria habitacional é variada e susceptível de uma apreciação de conjunto, que aliás tem sido feita, nomeadamente nos estudos preparatórios dos últimos planos de fomento.
Além de uma acentuada timidez nas tentativas de alteração estrutural, caracteriza-se sobretudo pela falta de continuidade: as acções empreendidas, algumas de certa amplitude, têm geralmente carácter pontual, não se aproveitando o cabedal de experiências de umas para outras.
Nas considerações que se seguem, procurar-se-á, de uma forma sucinta, passar em revista a experiência nacional, à luz dos critérios antes expostos relativos à construção para o maior número, sendo aliás fácil verificar que muito do potencial que se criou em inovação e experiência não foi depois aproveitado; e que uma boa parte dos recursos investidos, em legislação, iniciativa, estudos, financiamento, etc., não têm sido convergentes, o que se traduz necessariamente numa fraca rentabilidade.
O regime chamado das Casas Económicas, criado em 1933, teve aspectos altamente inovadores – acesso à propriedade, seguro de vida, para além do facto também novo, de se traduzir em empreendimentos programados e realizados.
Mas a sua limitada amplitude é bem patente: em 33 anos de permanente actuação (1934 a 1967), construiram-se em todo o País cerca de 13.500 habitações neste regime, o que dá a modesta média de 400 fogos por ano.
O reforço que a certa altura os capitais da Previdência vieram trazer ao sistema não resultou em aumento do ritmo das construções, pois os financiamentos do Estado, que no período inicial tinham alimentado em exclusivo este regime, foram praticamente reduzidos a zero nos últimos anos. O único passo em frente que esta modalidade registou, ao longo de décadas e realizações de rotina, foi o abandono da moradia unifamiliar e do bairro fechado como soluções tidas por obrigatórias até há bem pouco tempo.
O período do pós-guerra foi prolífero, sobretudo em matéria de legislação. Criaram-se as Casas para Famílias Pobres e as Casas de Renda Económica em 1945, os Casais Agrícolas e as Casas para Pescadores em 1946, as Casas de Renda Limitada em 1947.
As duas primeiras modalidades têm tido uma expressão quantitativa já de maior significado (respectivamente 600 e 500 fogos por ano entre 1949 e 1967) e alargadas a todo o território; as Casas para Famílias Pobres, congregando subsídios do Estado com recursos locais, e as Casas de Renda Económica, investindo importantes capitais da Previdência Social. Quanto aos restantes regimes, o seu alcance tem sido diminuto (Casas para Pescadores), praticamente nulo (Casais Agrícolas) e passageiro (Casas de Renda Limitada). Entre os anos de 1949 e 1960 – pois a partir deste ano a modalidade deixou praticamente de ter aplicação – ainda se construíram em Lisboa cerca de 800 fogos por ano ao abrigo do regime de Renda Limitada, o que mostra a respectiva potencialidade. Verificada, porém, a existência de manobras especulativas, não se quis utilizar contra elas os instrumentos previstos na própria Lei, preferindo-se o abandono puro e simples do sistema. Iniciada sob os melhores auspícios, até com projectos elaborados pelo próprio Município, este regime mostrou a possibilidade de conferir ao investimento de capitais privados na habitação um maior alcance social. Uma nova regulamentação, promulgada em 1958 com o fim de combater a especulação, que impunha até às Câmaras a obrigatoriedade de reservarem para Renda Limitada pelo menos 50% dos lotes vendidos em hasta pública, e na qual se anunciavam medidas drásticas no caso de não se atingirem os objectivos propostos, não teve qualquer aplicação, tendo-se deixado perder uma oportunidade de verificar até que ponto, e partindo da experiência já adquirida, se poderia contar com a rentabilidade social da aplicação de capitais privados na habitação.
Alguns anos antes da proliferação legislativa a que se fez referência, algo se realizou de maior importância com vista a uma política da habitação: a Câmara Municipal de Lisboa, sob o impulso do então Presidente Duarte Pacheco, iniciou uma vasta operação de compra de terrenos em toda a periferia da cidade. Foi esta operação, continuada em anos subsequentes, que tornou possível a realização dos importantes programas habitacionais levados a efeito mais tarde, nomeadamente Alvalade e Olivais; programas do maior significado na experiência portuguesa em matéria de habitação social.
O bairro de Alvalade, inteiramente planeado pelo Município e iniciado por volta de 1947, integrou variados regimes de construção, desde as Casas de Renda Económica financiadas pela Previdência até às Casas de Renda Limitada e de renda livre, e incluindo mesmo uma importante parcela construída por cooperativas de habitação. Os aspectos inovadores desta realização foram numerosos: planeamento do conjunto perfeitamente integrado na cidade e operado sobre terrenos totalmente disponíveis; tecido urbano diversificado, equipamento previsto e executado, convergência de iniciativa e de capitais de variada proveniência.
Como núcleo deste empreendimento, foi construído um conjunto de Casas de Renda Económica, com métodos totalmente inéditos, e que não voltaram a ser utilizados, nem sequer nas obras congéneres dos Olivais: elaboração de projectos-tipo, construção prévia de um grupo experimental, desdobramento da obra em empreitadas de volume industrial (500 fogos), fornecimento em conjunto de certos materiais e elementos da construção, e criação de estaleiros para o seu fabrico.
Nos empreendimentos dos Olivais (Norte e Sul), iniciados em 1960 e agora em conclusão (com excepção dos equipamentos colectivos, ainda praticamente inexistentes), os aspectos inovadores foram dados sobretudo no plano da legislação. Efectivamente, o Decreto-Lei 42 454 fixou rigidamente certas características, por forma a garantir o alcance social do empreendimento, tais como as rendas máximas por categorias, as percentagens de cada uma destas, os valores máximos a atribuir ao custo dos terrenos, etc. No plano da realização, abandonou-se toda a experiência acumulada em Alvalade, embora algo de interesse se tenha ensaiado, como a participação de um maior número de entidades na construção e uma ampla distribuição na encomenda dos projectos. Deve constatar-se, embora, que a crise da construção civil ocorrida na década de 60 apanhou em cheio este empreendimento.
Outra realização que interessa referir é a do programa para a eliminação das chamadas ilhas na cidade do Porto, prevendo a construção de 6 000 fogos em 10 anos, a partir de 1956. Os aspectos inovadores deste empreendimento, caracterizado por austeridade e disciplina por um lado limitativas, mas que permitiram a sua realização integral no prazo estipulado, traduziram-se sobretudo no plano do financiamento (pela conjugação de fontes e regimes muito diversos, incluindo subsídios do Estado e empréstimos da Caixa Geral de Depósitos) e no cumprimento rigoroso dos objectivos.
Alguma coisa interessa ainda referir quanto ao regime de mais recente instituição: os empréstimos da Previdência para a construção, aquisição ou beneficiação de casas, regime criado pela Lei 2 092 em 1958. Este sistema, cuja característica essencial se centra no apoio a particulares (indivíduos, empresas e Casas do Povo), tem mostrado um dinamismo crescente: cerca de 12 000 fogos financiados até 1967, dos quais perto de 10 mil (2 700 em 1967) para a construção ou aquisição de casa própria. Apoiando a iniciativa individual e aproveitando as pequenas poupanças, a utilidade do sistema no conjunto da legislação portuguesa é indiscutível, aí residindo o seu carácter inovador. Mas a falta de critérios selectivos na concessão dos empréstimos está a tornar-se desastrosa no plano da ordenação urbana: concebido para as zonas rurais, contribui de forma crescente para o caos das cinturas urbanas em crescimento. E o que é mais grave, alimenta a especulação e a construção de má qualidade, sobretudo através da modalidade de aquisição em propriedade horizontal, que regista uma subida vertiginosa.
Conservando os méritos do sistema, seria necessário condicionar os empréstimos a mínimos de qualidade urbana, por forma a estimular a construção de conjuntos residenciais bem localizados e organizados e adequadamente equipados. Por outro lado, deveria ser encorajado o agrupamento de Beneficiários da Previdência em cooperativas de habitação, o que está aliás no espírito da própria lei, mas não chegou a ser regulamentado.
As lacunas desta lei são típicas do que se passa com o conjunto da legislação portuguesa em matéria de habitação: a intervenção oficial faz-se por sectores independentes e segundo ângulos de visão parciais e incompletos. A criação do Instituto Nacional da Habitação, insistentemente reclamada nos últimos anos e já prevista nos recentes planos de Fomento, parece condição indispensável para que se ponha em prática uma política urbana, cuja ausência tem permitido a extensão progressiva de males a que cada vez será mais difícil dar remédio. Uma política da habitação que ignore os aspectos ligados à organização do solo nunca poderá servir efectivamente o maior número, ficando condenados todos os investimentos e esforços a uma rentabilidade social bem precária.
Os recursos não aproveitados
Toda a experiência nacional, em matéria de promoção habitacional, que foi sucintamente relatada, ignora sistematicamente os recursos potenciais das populações a alojar. E isto tanto no que se refere a habitações com carácter definitivo, como a construções intencionalmente provisórias, como os bairros de fibrocimento dos anos 40, ou ainda os programas de emergência para os desalojados pelas obras da ponte sobre o Tejo ou as vítimas das cheias de 1967 na região de Lisboa. Mesmo com sumárias condições de habitabilidade, as casas têm sido construídas integralmente pelas entidades promotoras e assim entregues aos moradores, sem qualquer possibilidade de ampliação ou completamento ulteriores.
Em consequência, como se referiu atrás, dadas por um lado as limitações de capitais e de iniciativa das entidades promotoras, e por outro o desnível entre o poder aquisitivo das populações e o custo de uma habitação normal, tudo se conjuga para que os défices habitacionais se mantenham, se é que não aumentam. Verifica-se, por outro lado, que as populações entregues aos seus recursos, têm sido muitas vezes capazes de, pelas próprias mãos, conseguirem precárias habitações que pouco a pouco vão melhorando. Este fenómeno, largamente verificado nas regiões rurais, é particularmente visível na região suburbana de Lisboa, através dos aglomerados de casas abarracadas ou dos bairros chamados clandestinos. Embora muitas das construções efectuadas nestas condições sejam o produto de pequenos industriais-negociantes, uma larga percentagem é obra dos próprios moradores que, tendo encontrado um terreno (normalmente por aluguer e outras vezes por compra) aí improvisam um abrigo que, com o andar dos tempos e a elevação progressiva do nível de vida, vão ampliando e melhorando. Um exemplo deste processo é o Bairro da Liberdade, nas encostas de Monsanto, em Lisboa, que, iniciado como aglomerado de barracas no princípio do século, é hoje uma zona habitacional com características quase de normalidade.
É este capital, produto da iniciativa, dos esforços e das pequenas poupanças de grandes massas de população, e que rapidamente pode atingir valores consideráveis, que urge aproveitar ao máximo, canalizar de forma ordenada e orientar no sentido de uma expansão urbana gradual.
Países de economia subdesenvolvida, ou com défices habitacionais muito grandes, têm precisamente praticado uma política habitacional visando o apoio a este tipo de autoconstrução, logrando através dela, não apenas a edificação massiva de novas habitações, mas a promoção social das populações interessadas, através do enquadramento e da racionalização do seu esforço. Os exemplos mais concludentes encontram-se em países do Norte de África, do Médio Oriente e da América Latina.
Podem encontrar-se algumas razões para a inexistência entre nós de realizações dentro desta via: por um lado, o facto de a crise habitacional se expressar mais através da superlotação de edifícios normais do que da extensão desmesurada de bairros de lata, o que favorece uma imagem do défice bastante benévola em relação à realidade; por outro lado, a nossa legislação revela uma convicção de que a crise será debelada com o novo regime que se põe em vigor, pois desconhece o carácter contínuo e inelutável do processo de urbanização; por outro lado ainda, o espírito do legislador tem sido avesso a soluções que impliquem a aglutinação de forças populares com vista à solução dos seus problemas, preferindo sistematicamente métodos paternalistas ou autoritários.
As realizações levadas a efeito em muitos países e os estudos que sobre os mesmos têm sido feitos mostram que a atitude das entidades públicas, por um lado, e o ponto de aplicação da respectiva contribuição, por outro, têm de ser radicalmente diferentes do que se verifica nos programas de habitação convencionais. A distribuição dos papéis far-se-á consoante aquilo que cada qual pode dar, contribuindo naturalmente os moradores com a construção da célula familiar e as autoridades com o planeamento do conjunto, os terrenos e os equipamentos colectivos. Muitas vezes, o apoio das autoridades vai até ao ponto de fornecer assistência técnica (projectos, técnicas de construção, etc.) e mesmo certos materiais ou elementos da construção (por exemplo, pré-fabricados produzidos em série). Os moradores começam por construir , ou uma célula inicial susceptível de ser aumentada e completada, ou uma construção provisória destinada a ser mais tarde substituída.
Nestas condições, os recursos financeiros e técnicos das entidades públicas podem atingir um número muito maior de famílias do que os programas correntes, e assim contribuir muito mais rapidamente para a atenuação dos défices existentes.
É evidente que estas soluções não evitariam certos problemas de grande dificuldade nas condições e com a legislação actual: aquisição de terrenos (que seriam cedidos a prazo ou alugados aos moradores, e não vendidos), urbanização e equipamento de vastas áreas, planeamento urbanístico, etc. Mas permitiriam integrar no processo de expansão urbana, de forma ordenada e portanto útil, recursos de enorme vulto que têm sido, ou desperdiçados, ou aceites irremediavelmente em condições de impossível recuperação ulterior.
A experiência acumulada noutros países é já muito importante nesta via: mas ela não poderá ser seguida entre nós sem a realização de empreendimentos-piloto; e ainda sem uma mentalidade capaz de trocar a obra acabada, mas para poucos, pelo trabalho sempre imperfeito, mas progressivo, de uma colectividade lançada num empreendimento comum; e capaz sobretudo de rejeitar uma imagem da cidade dividida em fachadas e traseiras, aceitando uma outra onde todos tenham lugar, dentro de esquemas ordenados de desenvolvimento.
As oportunidades para o Funchal
Na perspectiva do que ficou dito – e no que se refere à promoção habitacional feita pelo Município com o concurso activo, tanto de particulares como de entidades públicas – só soluções conjugando recursos de variada proveniência poderão efectivamente contribuir para a resolução do problema habitacional, entendida esta resolução, como não pode deixar de sê-lo, no quadro de um desenvolvimento urbano ordenado.
As condições económicas particularmente desfavoráveis que ocorrem no Funchal só poderão ser vencidas mediante o aproveitamento de todos os recursos disponíveis e a redução possível dos encargos correspondentes. A obtenção de terrenos por preços não sobrecarregados por mais-valias, que nunca devem reverter para benefício de particulares, pois foram criadas pela colectividade; o planeamento de unidades de habitação que reduza os encargos de urbanização e infra-estruturas; a canalização de recursos financeiros de várias fontes para um mesmo empreendimento, incluindo subsídios ou empréstimos; a contribuição da iniciativa e dos pequenos capitais dos próprios moradores; a aplicação de capitais privados em regime lucrativo, mas condicionados a uma certa disciplina; tudo isto são factores que não poderão ser desprezados; e tanto mais quanto mais adversas forem as condições económicas da conjuntura.
A experiência nacional nesta matéria é já rica e variada; nas lacunas que apresenta, exemplos estrangeiros poderão fornecer ensinamentos. Trata-se de fazer render essa experiência e de saber correr o risco da inovação arrojada, para que cada vez mais possa ser enriquecida e aproveitada com melhor resultado.
- Raul da Silva Pereira – Habitação e urbanismo em Portugal, Lisboa, 1966. Edição do autor ↑
- Raul da Silva Pereira – idem. ↑
- Raul da Silva Pereira – Conferência no Colóquio de Urbanismo, Funchal, 1969. ↑
- Trabalhos Preparatórios do III Plano de Fomento – Relatório do Grupo de Trabalho nº 8 – Habitação e Urbanização ↑
- Estatística Industrial, 1967 – Instituto Nacional de Estatística ↑
- Trabalhos Preparatórios do III Plano de Fomento – Relatório citado ↑