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O casamento: resposta ao inquérito de «O Tempo e o Modo» (1968)

O CASAMENTO
Resposta ao inquérito lançado pela revista O Tempo e o Modo, tema central do número 2, 1968

A minha resposta será sobretudo baseada numa realidade pessoal, numa experiência vivida e em convicções próprias.
Projecções possíveis para o futuro, pistas de evolução com base em comportamentos observados nos outros, serão mais da competência de sociólogos, psicólogos, moralistas, etc. Posso exprimir uma interrogação ou aventar uma hipótese, pouco mais.

CONCEITO DE CASAMENTO
No questionário, não aparece uma única vez a palavra amor. É uma palavra gasta, também. Interessa, porém, reabilitá-la, mais do que suprimi-la.

Casamento, fidelidade, sexo, são formas de concretizar, viver o amor. Só através dele têm sentido. Mas importa, então, depurar o conceito que essa palavra implica. Uma das formas de amor mais minimizadas é “o amor de si próprio”. Confunde-se vulgarmente com egoísmo. Ora se alguém por espírito de doação ou sacrifício mal entendido, acaba por se aniquilar, se reduzir a zero como pessoa, deixa de poder oferecer ao outro um ser construtivo, dialogante. Só há relações inter-pessoais quando existem duas pessoas inteiras. Essa, uma das bases fundamentais do casamento. Assim, o casamento é para mim hoje a possibilidade de uma realização pessoal primeiro, para como pessoas realizar cada um com o outro e um pelo outro, a construção de uma comunidade.

NECESSIDADE DO CASAMENTO – (hipótese baseada apenas numa intuição. Há implicações sociais, morais, psicológicas, etc.)

Uma distinção: uma união de homem e mulher pode ser ou não ser institucionalizada; conforme interessa apenas os dois ou se projecta para o futuro implicando outros.

Enquanto vivida como busca, como encontro temporário, como tentativa ou experiência, a união pode não ser institucionalizada (ou não deverá mesmo sê-lo?). Estão apenas comprometidos os dois, não está a sociedade. Trata-se de uma união que não deve implicar responsabilidade perante terceiros. A nossa sociedade não concede lugar a estas uniões e todavia julgo que elas são pedidas a um tempo pela evolução social e pela natureza. Se na adolescência o ser humano está apto para a relação sexual, as condições sociais hoje implicam uma responsabilidade a dois para com os filhos a que só a união indissolúvel pode dar resposta. Porém, essa responsabilidade a dois só é viável na idade adulta, efectuada já a inserção social do homem e da mulher e a sua afirmação como pessoas. Só então elas estão aptas a fazer uma escolha definitiva compatível com a fundação da comunidade familiar.

A institucionalização é então necessária.

Do mesmo modo, no plano religioso, não será que o sacramento matrimonial adquire então, e só então, toda a sua plenitude?

FIDELIDADE
Considero a fidelidade sexual apenas um aspecto da fidelidade global, que é para mim a construção do amor através de situações que se vão sucedendo. Estão sempre em jogo dois valores igualmente importantes: liberdade e responsabilidade. Se nalguns momentos coincidem, não se põe problemas. Mas a maior parte das vezes a noção de responsabilidade está no oposto da liberdade. Há então que optar, como pessoa que se constrói precisamente através dessas opções. Parar, reflectir e tomar o peso de ambos os valores, optando continuamente. Escolher umas vezes a liberdade (que terá sempre de ser responsável), outras a responsabilidade (que deverá sempre ser livremente aceite). Portanto, fidelidade global é uma vivência permanentemente assumida: fiel a si próprio, fiel ao outro, fiel aos outros. Fidelidade não é um conceito que se arruma duma vez para sempre. É algo de fundamental que se vive.

Quanto ao aspecto particular da fidelidade conjugal (entendida só no aspecto sexual) parece-me indispensável para a “construção duma comunidade realizada um com o outro e um pelo outro”.

Quanto aos limites nos modos como se realiza a expressão sexual dentro do casamento, como em tudo, julgo serem apenas as que advêm do recto esclarecimento da consciência de cada um: o que é amor ou o que é egoísmo.

DIVÓRCIO
Até agora a procriação era uma consequência inelutável das relações de um homem com uma mulher, o que significava a indissolubilidade do casamento. A partir de hoje, em que os meios anti-concepcionais passam a estar ao dispor de todos (e por forma a não violentar a natureza nem a destruir a vida) torna-se necessário fazer a distinção já referida, entre união experimental, temporária ou acidental e união conscientemente projectada no futuro, implicando a formação de uma comunidade que ultrapassa o casal. Por isso esta última deve requerer certas condições que permitam reduzir as probabilidades de insucesso: idade francamente adulta e preparação consciente. Nesta perspectiva, em que os filhos não são um acidente nem um facto marginal, mas uma escolha deliberada nascida no âmago da própria união e inseparável dela, a indissolubilidade do casamento não se pode deles dissociar: é a criação duma nova vida, é a responsabilidade livremente assumida para com terceiros, que justifica e exige a indissolubilidade. O filho é um laço que permanece vitalmente e que não pode ser anulado, da união de um homem com uma mulher.

No plano religioso, considerando a ordem sacramental, poderá talvez admitir-se que estando o casamento ordenado também (mas não só) fundamentalmente para a criação de novas vidas, só com elas atingiria a sua total realização. Assim, no momento do compromisso mútuo, o sacramento realizar-se-ia como que em semente, que frutificaria quando uma nova vida nascesse da união, adquirindo assim a sua plenitude e por isso a sua irreversibilidade.

EXPERIÊNCIAS PRÉ-MATRIMONIAIS
Deste conceito de casamento e das condições que ele requer, as chamadas experiências pré-nupciais assumem uma grande importância, se ordenadas normalmente para uma escolha consciente e definitiva. Elas tornar-se-iam a modalidade corrente do namoro, correspondendo a uma aprendizagem e a uma selecção, o que seria de extrema importância numa preparação para o casamento. Na evolução do namoro, desde o que era feito por correspondência e de janela, passando pelo namoro de convívio exterior que é já dos nossos dias, seria esta uma forma mais completa e por isso mais profunda.

No entanto, para se inscreverem realmente numa lista de preparação estas experiências não se limitariam a relações sexuais furtivas: deveriam ter um estatuto reconhecido pelos costumes e supor uma coabitação temporária, não para prefigurarem o casamento, o que seria impossível, mas para um maior conhecimento mútuo.
Esta evolução dos costumes, se possibilita maior liberdade de relações, também implica maior responsabilidade, inserindo-se assim numa linha de progresso social, de liberdade crescente das pessoas e no afrouxamento dos condicionalismos sociais: poderia, ainda, resolver o problema ancestral das relações sexuais dos adolescentes, podendo mesmo prever-se o desaparecimento da prostituição.

Corresponderia ainda à libertação da mulher do fardo da maternidade não desejada, agora possível com a generalização de contraceptivos que não atingem a dignidade humana.

Maria Natália Duarte Silva