PEREIRA, Nuno Teotónio. “O longo caminho até à Capela do Rato”. Original dactilografado, 30 dez. 1992, 6 p. Não publicado.
A ocupação da capela do Rato não foi um acontecimento isolado: só foi possível porque se inseriu num processo de tomada de consciência cada vez mais alargado e que foi promovendo iniciativas e encontrando formas organizativas adaptadas às circunstâncias e às capacidades do movimento que entretanto se ia desenvolvendo e ramificando.
1. Este movimento teve alguns profetas:
– O padre Joaquim Alves Correia, autor da “Largueza do reino de Deus”, dos Missionários do Espírito Santo, exilado pelos seus superiores para os Estados Unidos na década de 40. Viveu aí na solidão e na pobreza, vindo a morrer no exílio.
– O padre Manuel Rocha, assistente da LOC, apóstolo do movimento operário, colaborador do jornal “O Trabalhador” – órgão da LOC silenciado pelo Governo anos depois sem nenhum protesto da Hierarquia. Também exilado para os Estados Unidos pelo cardeal Cerejeira no início da década de 50, foi pastorear uma paróquia de luso-americanos na cidade de Ludlow, no Massachusetts.
– O padre Abel Varzim, também assistente da LOC e companheiro de Manuel Rocha em Lovaina, onde tomaram ambos contacto com o movimento jocista, e antigo deputado à Assembleia Nacional indicado pela Igreja, como era habitual. Rapidamente se tornou numa pessoa suspeita para o regime, por ter promovido um aviso prévio que ficou célebre sobre a miséria imerecida dos operários. Ouvi uma vez meu Tio, Pedro Theotónio Pereira, que foi ministro de Salazar, tratá-lo de comunista. Director de “O Trabalhador” e depois pároco da Encarnação, em Lisboa, onde desenvolveu uma obra social notável, acabou por ser também ele desterrado pelo cardeal para a sua aldeia natal de Cristelo, perto de Barcelos, onde morreu.
Eram todos vozes incómodas para a ditadura, e por estes casos se vê que a repressão na Igreja não era exercida directamente pelo Estado, mas pelas autoridades eclesiásticas. E assim foi sendo.
Também pode ser apontado um pequeno movimento percursor – a Metanoia – impulsionado por João Sá da Costa e Fernando Ferreira da Costa, discípulos de António Sérgio que procurava, sob inspiração franciscana, viver o Evangelho. Editava uns pequenos cadernos.
Há também um profeta leigo, José Vieira da Luz, que na campanha eleitoral de 1945, a primeira em que foi admitida pelo Estado Novo uma temporária liberdade de Imprensa, declarava ao “Diário de Lisboa” que era católico e democrata – coisa nunca vista até então.
2. Pode dizer-se que o movimento teve início após a campanha eleitoral de Humberto Delgado em 1958, com uma carta datada de Maio às “Novidades”, órgão oficioso da Igreja, protestando contra a parcialidade do jornal face às eleições.
Logo em Julho sai a carta do bispo do Porto, António Ferreira Gomes, a Salazar, marcando as suas distâncias em relação ao regime e colocando questões de ordem política e social que deixaram o ditador furioso, a ponto de não o deixar regressar ao País, quando mais tarde se deslocou ao estrangeiro. Essa carta foi distribuída pelo bispo a alguns amigos, que logo a puseram a circular.
Em 1959 dois documentos redigidos por Francisco Lino Neto continuaram a série de abaixo-assinados. O primeiro, intitulado “As relações entre o Estado e a Igreja e a liberdade dos católicos”, foi assinado por 43 pessoas, onde se contavam seis padres: Abel Varzim, Adriano Botelho (desterrado depois pelo cardeal para a Patagónia, onde esteve dois anos e nomeado a seguir pároco de S. João de Brito), António Jorge Martins (anos mais tarde mandado estudar para Estrasburgo), César Teixeira da Fonte (exilado da Madeira por ter apoiado um movimento de protesto dos agricultores), João Perestrelo de Vasconcelos, pároco do arsenal do Alfeite, e José da Costa Pio.
O outro documento era uma carta enviada a Salazar sobre os serviços de repressão do regime, apelando à sua consciência de católico. Nela se relatavam com documentos casos de tortura e de assassinato de presos políticos. Era assinado por 45 pessoas, entre as quais os mesmos seis padres. Não teve qualquer resposta.
Cópias destes documentos foram entregues pessoalmente por uma delegação dos subscritores ao cardeal Cerejeira. Este, como era seu costume, dissertou sobre variadíssimos assuntos, contando histórias do seu relacionamento com Salazar e afirmando a independência da Igreja , mas evitou tocar no teor dos documentos. No final, advertiu os presentes de que “não deviam deitar mais achas para a fogueira” e deviam ter cuidado nos seus procedimentos, pois tinham famílias a seu cargo e carreiras a defender.
3. Nos anos seguintes, o movimento alarga-se e diversifica-se, com a chegada de novas gerações.
Os católicos estavam habituados a reunirem-se apenas entre si, nas actividades paroquiais, nos retiros espirituais, nas equipas de casais, nos cursos de cristandade e nos movimentos da Acção Católica. Até no campo artístico criaram um grupo próprio, de vanguarda, chamado Movimento de Renovação da Arte Religiosa.
Contrariando este hábito, são então lançadas pontes pelo Movimento para outros sectores da Sociedade:
– para o movimento operário e sindical, com João Gomes, Manuel Bidarra, Fernando Abreu e Manuel Lopes;
– para o movimento estudantil, com Vítor Wengorovius;
– para o movimento cooperativo, com Edmundo de Jesus Costa;
– para o meio cultural e intelectual, com António Alçada Baptista, João Benard da Costa, Nuno Bragança e Nuno Portas;
– para o meio universitário, com Luís Filipe Lindley Cintra e Francisco Pereira de Moura (mais tarde).
Também se estabeleceram laços com o movimento ecuménico, através do bispo D. Luís Pereira, da Igreja Lusitana, e o pastor Dimas de Almeida da Igreja Presbiteriana.
A leitura assídua de jornais e revistas estrangeiros, especialmente franceses, torna-se um alimento especialmente importante. “Esprit”, de Jean-Marie Domenach, “La Lettre”, “Témoignage Chrétien”, “Informations Catholiques Internationales” e mais tarde “Cuadernos para el Diálogo” e “Concilium”, fazem-nos respirar ao ritmo das correntes que animam a renovação da Igreja.
A Livraria Moraes, de Alçada Baptista, edita livros de actualidade religiosa e torna-se um centro de encontro entre católicos e outros sectores da sociedade, animado pela revista “O Tempo e o Modo”, que desempenha um papel fulcral na vida cultural do país.
Sob a inspiração de João XXIII e em pleno Concílio Vaticano II, o início dos anos 60 é uma época plena de iniciativas.
Nasce em 1963 o “Direito à Informação”, caderno policopiado clandestino, em que trabalham, entre outros, Ana Vicente, Maria Vitória Vaz Patto, Conceição Neuparth e Maria Natália Teotónio Pereira.
Surge a cooperativa Pragma em 1964, no 1º aniversário da encíclica “Pacem in Terris”, constituída legalmente ao abrigo de um decreto da 1ª República, ainda não revogado pelo Estado Novo, em que se permitia a livre organização de cooperativas,as quais, ao contrário das restantes associações, não tinham de ter os seus órgãos sociais aprovados pelo Governo. A Pragma, dotada de sede própria na rua da Glória, interliga as várias componentes do Movimento e alarga as suas actividades ao exterior do mundo católico, promovendo sessões de divulgação e debate, exposições temáticas e actividades de formação, inclusivamente para jovens. É assaltada e encerrada pela Pide em 1967. Nela militam, para além de activistas já conhecidos, Mário Murteira e Eduardo Veloso, bem como jovens, entre os quais se recordam Cesário Borga e Vítor Constâncio.
São entretanto realizados congressos da JUC e da JOC, alvo de restrições por parte do regime ou mesmo de distanciamento por parte das autoridades religiosas.
4. Com a revolta do 4 de Fevereiro de 1961 em Luanda é iniciada a Guerra Colonial, entretanto alargada em 1963 e 64 à Guiné e a Moçambique e que só terminaria após o 25 de Abril.
A prisão e o desterro para Portugal de nove padres angolanos patriotas, que ficaram com residência fixa em seminários e casas religiosas, pôs em contacto os meios católicos mais inquietos com testemunhos discretos mas eloquentes das injustiças do sistema colonial com as aspirações às independências dos povos ultramarinos.
Foi chocante o ostracismo a que estes Sacerdotes foram condenados pelas autoridades da Igreja e isto avivou em muitos a urgência da luta contra o regime. Recordam-se os seus nomes, publicados no “Direito à Informação”: Franklim da Costa, hoje arcebispo do Lubango; Alexandre Nascimento, hoje cardeal de Luanda; Vicente Rafael; Domingos; Manuel Joaquim das Neves, organizador da revolta do 4 de Fevereiro, e que morreu em Braga, sendo enterrado em segredo durante a noite; Alfredo Osório Gaspar; Martinho Samba; Lino Guimarães, que obteve mais tarde permissão para voltar a Angola, tendo sido assassinado no mato; Joaquim Pinto de Andrade, preso por várias vezes, exilado na ilha do Príncipe, novamente preso, julgado e condenado em Portugal, laureado há pouco com o Prémio Pax Christi Internacional.
5. O Movimento alargara-se entretanto a alguns pontos do País, especialmente à cidade do Porto, onde um núcleo cada vez mais numeroso e combativo colaborava nas diferentes actividades. Em 1965 é divulgado nesta cidade um documento assinado por 54 universitários católicos: “Quando os Direitos da Pessoa Humana estão em Jogo”.
Alguns dominicanos, entre os quais Bento Domingues, apoiam algumas iniciativas e constituem um grupo que há-de estar sempre presente e activo até ao 25 de Abril.
Também em 1965, por ocasião das eleições para a Assembleia Nacional a que concorre a Oposição, é lançado o Manifesto dos 101, cobrindo todos os sectores sociais, no qual é contestada a política do Governo e são denunciadas as práticas da Polícia política e da Censura. Por ser de clara intervenção política, no número de subscritores não entram Sacerdotes.
Ainda em 1965, Paulo VI faz uma viagem à União indiana, país que tinha ocupado Goa em 1961. Salazar impõe um total silêncio acerca desta visita à Imprensa e à própria Igreja, que cumpre docilmente a proibição. Uma equipa faz imprimir um jornal em Madrid, intitulado “Igreja Presente”, que é passado clandestinamente na fronteira do Caia e depois distribuído à saída das missas do dia 8 de Dezembro, desde o Porto até ao Algarve. Eduardo Veloso, João Correia Rebelo, João José Malato e Manuel Tierno Bagulho são alguns dos elementos que participam na operação, para além de muitos outros.
Anteriormente um grupo ligado ao Movimento tinha-se deslocado a Madrid, onde participou num Encontro com católicos anti-franquistas realizado num convento da capital espanhola. Este encontro iniciou uma colaboração que perdurou até ao 25 de Abril.
Mais tarde, em 1967, é a vez de Paulo VI fazer uma viagem a Fátima, na qual pretendia restabelecer as boas relações com Portugal. Com grande mágoa nossa, refere-se num discurso ao “Portugal d’Aquém e d’Além Mar”. É-lhe entregue, através de um secretário, um documento pondo em causa a cumplicidade entre a Igreja e o Estado em Portugal, subscrito por elementos responsáveis de vários movimentos, incluindo a Acção Católica. Como condição colocada por alguns dos signatários esse documento não é divulgado, nem sequer em círculos restritos. A única cópia existente foi apreendida em minha casa pela Pide numa das suas rusgas.
6. Em 1968 dá-se a contestação à guerra desencadeada pelo padre Felicidade Alves na paróquia de Belém, que leva ao seu afastamento. O ano é fértil em acontecimentos , como o Maio de 68 em França e o desaparecimento de Salazar da vida política. A guerra do Vietname, como antes na Argélia, faz explodir as contradições no mundo ocidental.
No último dia do ano, depois da missa pela paz celebrada pelo cardeal Cerejeira, um grupo numeroso decide permanecer na igreja de S. Domingos, em vigília de reflexão acerca da guerra. O cardeal, informado por uma delegação no próprio momento, mostra a sua contrariedade, mas não tem outro remédio senão conformar-se com a decisão do grupo; mas encarrega o pároco, padre Asseca, de controlar os acontecimentos, o que este não consegue, apesar de toda a obstrução feita. Sophia de Melo Breyner tinha composto um poema especialmente para a ocasião intitulado “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, e que foi musicado para ser cantado pela assembleia. Ao longo da noite foram dados testemunhos e fornecidas informações sobre a guerra nas colónias. O grupo sai da igreja às 6 da manhã, já sob os olhos da Pide que sabiamente, se absteve de intervir. Uma nota do Patriarcado condenava daí a dias a ocorrência. Perdeu-se ou foi apreendida uma gravação de toda a vigília.
Em 1 de Fevereiro de 1969 sai o primeiro número dos Cadernos GEDOC, que se publica até ao ano seguinte. Os seus responsáveis são detidos e julgados mais tarde (1973) em Tribunal Plenário, sendo absolvidos.
No final do ano realizam-se eleições para a Assembleia, as primeiras da era marcelista. A oposição concorreu com muito maior força e organização do que anteriormente, embora tenha sido vencida pela viciação dos cadernos eleitorais e da contagem dos votos, como era habitual.
Apesar de ser proibido tocar no problema colonial durante as sessões de propaganda e na Imprensa, alargava-se a tomada de consciência face às guerras de África, onde era patente a impossibilidade de uma solução militar favorável ao regime.
O Movimento alarga-se, ramifica-se e consolida-se. Na aldeia distante de Macieira da Lixa, o padre Mário de Oliveira inicia uma denúncia da guerra face aos princípios do Evangelho, numa acção extremamente corajosa que o há-de levar várias vezes à prisão e a julgamento.
7. Em 1970, em resultado do estreitamento [de relações] com as correntes da Oposição, é constituída a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, ao abrigo de uma disposição esquecida do Código Civil para situações de emergência ou calamidade nacional. Os cristãos formam o núcleo central da Comissão, assegurando a presença de socialistas, comunistas pró-soviéticos e maoístas, que se guerreavam na cena política. Dela fazem parte 48 pessoas de todas as correntes de opinião, entre as quais os padres Agostinho Jardim Gonçalves, José Augusto Pereira Neto, Abílio Tavares Cardoso, Bento Domingues, Bernardo Domingues, José da Felicidade Alves, Marcos Valentim Vilar e Martinho Franco de Carvalho, alem do pastor Dimas de Almeida.
Nunca tendo sido reconhecida a sua legalidade, e sendo objecto de obstrução as suas actividades públicas, a Comissão pôde desenvolver um importante trabalho de solidariedade até ao 25 de Abril, publicando boletins periódicos que circulavam de mão-em-mão e concretizando acções de ajuda aos presos e suas famílias.
Organizavam-se entretanto, todos os 3ºs sábados de cada mês, celebrações e convívios numa casa religiosa junto ao Campo Pequeno, procurando alargar o número de participantes e trocar informações e testemunhos. As viagens de contacto alargavam-se a todo o País e estabelecem-e ligações com o estrangeiro, nomeadamente com o Angola Comité, sediado em Amsterdão, que era o centro de toda a actividade contra o colonialismo português. Paul Staal, delegado dessa organização, passa a vir com frequência a Portugal.
8. Obtido um espaço independente em casa de Luiza Sarsfield Cabral, na Lapa, para centro de operações clandestino, as possibilidades de actuação ampliam-se, ao mesmo tempo que se desenvolve a rede de contactos, internos e externos, para obter informações que a Censura não deixava passar.
São assim publicados os “Sete Cadernos sobre a Guerra Colonial”, contendo uma súmula de transcrições, informações e testemunhos e fornecendo uma visão de conjunto sobre o problema colonial. A guerra nas colónias tornara-se o problema fulcral de roda a sociedade portuguesa. Foram feitos centenas de exemplares, distribuídos selectivamente.
Em 1972 inicia-se a publicação do BAC – “Boletim Anti-Colonial”, que substitui o “Direito à Informação”. Os nove números, saídos nesse ano e no seguinte, foram impressos pelo padre Ismael Nabais Gonçalves na sua paróquia de Igreja Nova, perto de Mafra. A coordenação da redacção e da distribuição estava a cargo de Luís Moita.
Nesse mesmo ano são organizadas duas distribuições de panfletos contra a guerra. A primeira, durante as festas de S. João no Porto. A outra, realizada em 13 de Maio, por ocasião da grande peregrinação anual, em Fátima, é assegurada por uma equipa de dezenas de activistas, entre eles alguns exteriores ao Movimentos, como Francisco Louçã.
Entretanto aproxima-se mais um Dia Mundial da Paz. Desta vez Paulo VI não pode ser mais claro: “A paz é possível, a paz é obrigatória.” Durante o mês de Dezembro, enquanto se prepara a vigília na capela do Rato, três aldeias de Moçambique são arrasadas e queimadas com as populações pelo exército português.
Bibliografia
– “Direito à Informação” (policopiado) – Nºs 1 (1963) a 18 (1969)
– “Cadernos GEDOC” (policopiado) – Nºs 1 e 2 (1969)
– Idem (impresso) – Nºs 3 a 10 (1969/70)
– Idem (policopiado) – Nº 11 (1970)
– “Católicos e política” – edição e apresentação do P. José da Felicidade Alves (s/data)
– “Presos políticos/documentos 1969/71” – edição da C.N.S.P.P., sob responsabilidade de Armando de Castro, Francisco Pereira de Moura e Luís Filipe Lindley Cintra (1972)
– Idem/documentos 1972/4 – Iniciativas Editoriais (1974)
– “Boletim Anti-Colonial” – 1 a 9, Afrontamento (1975)