PEREIRA, Nuno Teotónio. “O problema da habitação”. Original dactilografado, mar. 1944, 6 p.
O PROBLEMA DA HABITAÇÃO
O problema da habitação parece que caminha finalmente para um desfecho. É chegada a hora de definir directrizes, de traçar planos e de lançar as bases para sua execução. Mas para que a decisão final seja na medida do possível acertada e segura, é indispensável admitir todas as propostas razoáveis e estudar todas as soluções possíveis, à luz dos princípios éticos, sociais e económicos que regem a vida nacional.
Seria imperdoável que se cometesse o erro de fechar os olhos a certas soluções que já existem, rejeitando-as a priori, sem as submeter a um estudo cuidadoso e eficaz. As gerações futuras, desgraçadamente herdeiras dos nossos pecados, haviam de amaldiçoar o nosso espírito acanhado e a nossa falta de coragem para resolver de maneira radical o problema urbano em geral e o problema da habitação em particular. Se as directrizes que forem agora traçadas para o futuro estiverem alicerçadas no erro, as consequências serão verdadeiramente catastróficas.
Na construção de grandes blocos de habitações familiares está a chave que permite resolver eficazmente todos os problemas da cidade moderna. E, à frente desses, o problema da habitação – a célula natural de todo o organismo urbano, como a família é a célula natural de todo o organismo social.
Não só a construção de habitações económicas em grandes blocos traz enormes vantagens de toda a ordem, como pode mesmo dizer-se que a construção em larga escala de vivendas unifamiliares ou quase, equivale ao suicídio das cidades. O que está agora em jogo não é somente um conjunto de regalias morais e materiais que o indivíduo e a colectividade devem e podem usufruir. É mais do que isso: é a própria vida dos grandes aglomerados urbanos.
Este tipo de construção em blocos precisa de ser reabilitado entre nós. Está ultrajado, está caluniado. De um conhecimento imperfeito das suas possibilidades de resolver todos os problemas urbanos e de dar satisfação quase completa às necessidades morais e materiais do homem individual e colectivo, resultou a sua condenação. É preciso que isto fique bem assente: os grandes blocos de habitações de que se fala, nada têm que ver com quaisquer tipos de blocos já construídos no País e muito menos com os arranha-céus de Nova-York, negação completa de todas as necessidades humanas. Pode dizer-se, em relação ao primeiro caso, que na cidade de Lisboa não existe bloco algum de construções modernas satisfazendo as condições de habitabilidade que há o direito de exigir como um mínimo neste ano de 44. Nem mesmo os maciços de carácter luxuoso e de rendas astronómicas que ultimamente têm sido construídos nos bairros mais novos do eixo da cidade.
A casa unifamilar, que ainda hoje é aconselhável sem reservas nos campos e defensável até certo ponto nos pequenos aglomerados urbanos, mostrou ser impraticável nas grandes cidades do nosso século. Mesmo entre nós, onde este tipo de construção foi apontado como o ideal pelos dirigentes do País, tendo sido adoptado inicialmente nos primeiros bairros económicos do Estado Novo, já teve que ser abandonado e substituído por casas para duas famílias. É evidente que, se se transigiu neste ponto capital de doutrina, foi porque os inconvenientes mostraram ser decisivos.
Os próprios princípios de ordem moral que à primeira vista aconselham a construção de pequenas casas unifamiliares, acabam por condenar eles próprios esse sistema e por impor a construção de grandes blocos de habitações. Com efeito, todos os inconvenientes do sistema de unidades familiares isoladas podem ser eliminados no sistema de construção em altura, e isto sem nenhuma perda essencial. Antes, com vantagens numerosas e importantíssimas, no duplo aspecto moral e material.
E porque não aproveitar neste capítulo as lições os outros povos? Já se sabe que possuímos características nacionais muito particulares de que resulta geralmente uma solução original para cada problema. Mas uma coisa é certa: o homem, quaisquer que sejam as coordenadas geográficas, tem necessidades morais e materiais comuns. Por que não prestar atenção à maneira como lá fora se tem procurado dar satisfação a essas necessidades comuns, estudando ao mesmo tempo as suas possibilidades de adaptação?
Já passaram 50 ou 60 anos desde que Ruskin expôs a ideia romântica da cidade-jardim, aglomerado de pequenas casas rodeadas por também pequenos jardins, a grande ilusão do urbanismo deste século. No entanto, esta teoria está agora a ser aplicada no nosso País pela primeira vez em grande escala e quase todos a celebram como sendo a última palavra. Mesmo em Inglaterra, pátria de Ruskin, e da cidade-jardim e porventura o país mais individualista e mais romântico do mundo, onde a casa unifamiliar era um dos dogmas da vida (“the Englishman’s home is his castle”), a opinião pública, já devidamente esclarecida, reclama agora a construção de grandes blocos de habitações e os planos de reconstrução de todas as cidades estão a ser elaborados segundo este critério. E o mesmo se passa em todos os países onde o urbanismo não é uma palavra vã. Estaremos nós irremediavelmente condenados a viver sempre com meio século de atraso?
O primeiro e gravíssimo inconveniente que há a notar no sistema das pequenas casas isoladas é o desperdício enorme de materiais e de mão de obra resultante da extensão tremenda da área ocupada e das ruas de acesso às habitações (construção e manutenção de pavimentos, iluminação, canalizações de água e gás, esgotos, fios eléctricos e telefónicos, etc.). Outro desperdício não menos importante, é o resultante da construção, para cada unidade familiar, de quatro paredes mestras, de fundações e de cobertura. Imaginando agora essas unidades familiares encostadas umas às outras no sentido da longitude e da altitude, facilmente se fará uma ideia do grandioso gasto inútil. A construção em grandes blocos permite evitar tudo isso. E então, de duas uma: ou o que se pouparia desta maneira iria causar um embaratecimento das rendas, ou seria aproveitado no sentido de permitir aos habitantes das cidades o usufruto de confortos materiais proporcionados economicamente pelos serviços comuns de cada bloco e que nas chamadas moradias independentes constituem um luxo incomportável. Está neste caso, por exemplo, o aquecimento das habitações.
Os serviços comuns são a chave que permite a utilização pelas classes médias das modernas técnicas do conforto e do bem-estar.
Por outro lado, tomando em consideração a defesa da família, é preciso tornar cada lar na medida do possível independente. Nos bairros de casas isoladas é inevitável as janelas abrirem ou para a rua, ou para as outras casas. Os pequenos jardins estão completamente devassados e a família nunca poderá estar ali completamente à vontade. Com este sistema, apesar da aparência ilusória em contrário, subsistem ainda inegáveis factores de promiscuidade. Tudo isto desaparece nas construções em bloco. Aqui, cada lar é realmente independente (só não o é nos acessos, mas nisso também as vivendas não o são – e os acessos são locais de passagem, ao passo que os jardins ou os quartos ou as varandas são locais de permanência). Ao abrir-se uma janela não se encontra já a rua ou a casa do vizinho, mas o céu, o rio ou o campo. A Natureza está ali a entrar toda pela casa dentro. Horizontes largos, ar puro, sol. A vista do céu e da terra passa a ser gozada em toda a sua extensão – e por todos igualmente.
Um dos principais argumentos que se emprega contra o sistema de blocos é a monotonia, é a igualdade que parece estar em contradição com a diversidade infinita de todos os homens. Mas não são também todas iguais as vivendas de um bairro económico, dentro de cada tipo? E não se arrumam também geometricamente, impecavelmente alinhadas? Mas se no exterior os grandes blocos têm que apresentar um aspecto unitário e harmónico, pois o exterior pertence à colectividade, no interior cada lar deve ter características bem próprias, e marcar o espírito, os hábitos e as inclinações da família que nele habita. E não se deve esquecer que a casa é utilizada por dentro.
As consequências da extensão exagerada das cidades como resultado da construção sistemática de bairros de pequenas casas tornar-se-ão no futuro catastróficas. O homem das cidades já se desabituou de andar a pé. O homem das cidades tem que aprender novamente a andar a pé. O regresso à Natureza tem que ser um facto total e verdadeiro. Para isso, é preciso reduzir ao mínimo a distância entre os locais de trabalho e as habitações.
Com a construção em altura, esta redução pode conseguir-se, aumentando ao mesmo tempo as superfícies livres, parques, campos de desporto e terras de cultura onde os amadores das plantas e da terra poderão amanhar o seu talhão.
O homem voltará assim ao contacto com a Natureza que tem sido impiedosamente expulsa das cidades contemporâneas. É a hora de desfazermos as nossas ilusões e de abrirmos os olhos: os jardins individuais dos bairros de moradias, as árvores alinhadas ao longo das ruas e as praças ajardinadas não são a Natureza – são uma caricatura da magnificência do reino vegetal.
A paisagem seria aproveitada na sua totalidade. Os elementos naturais (ribeiras, florestas, lagos, colinas) seriam respeitados na sua pureza integral e não arrasados como se faz actualmente. O homem, ao sair a porta de casa, estará em pleno campo. Ao contrário, os bairros de pequenas vivendas devoram os campos sem cessar e fazem aumentar constantemente a distância da cidade ao campo. São um verdadeiro cancro da Natureza.
Em artigos sucessivos, toda esta questão será desenvolvida nos seus diversos aspectos e os assuntos aqui apenas aflorados serão sistematicamente discutidos.