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Os “anjos da guarda” e as convicções espirituais (2022)

Estarmos em Marvão, rodeados de tantos rostos amigos e muito particularmente da família do Nuno Teotónio Pereira, para recordarmos 52 anos depois um dos episódios marcantes da sua vida de militante cristão antifascista, é impressionante e mesmo comovente. Foi aqui em Marvão, precisamente, que o Nuno, juntamente com a sua esposa Natália, os seus filhos e mais alguns amigos, preparou a saída clandestina de Portugal de um pastor protestante e de um ex-carmelita que se recusavam a combater em Africa.

Eramos dois jovens idealistas, lacerados por um conflito íntimo entre a nossa necessária solidariedade com outros jovens que partiam para a guerra, angustiados, tal como nós, com a perspetiva de lutarem numa guerra injustificável e as nossas convicções totalmente contrárias à política colonial do nosso governo. No momento em que esse conflito íntimo mais se agudizou, decidimos desertar. É aqui que o Nuno intervém. Não nos conhecíamos verdadeiramente. Eu já o tinha cruzado em atividades culturais e religiosas, de dimensão ecuménica, frequentes durante os anos em que se estendeu o concílio Vaticano II e onde, pela primeira vez na história do nosso país, os protestantes portugueses eram considerados “irmãos” separados. Portanto, contactado pelo José Alberto Franco, o Nuno preparou o nosso itinerário a partir de Marvão até um local que julgou seguro. Ignoro quais eram as suas convicções no que diz respeito ao ato de deserção. Recordo simplesmente a sua compreensão e empatia. O acolhimento caloroso. O sentimento de segurança e de confiança que nos transmitiu. Ainda surgiram no nosso peregrinar outros “anjos da guarda”. Mas o Nuno tem um lugar especial nessa corrente protetora de que beneficiámos.

Como cristão e eclesiástico, não poderia recordar o Nuno nesta ocasião sem evocar as convicções espirituais em que se enraizava o seu ativismo político. Tal com muitos outros católicos “progressistas” dessa época perturbada, o Nuno transgrediu as regras que regiam a relação entre os católicos e o Estado português durante séculos, resistindo com coragem a um governo que, hipocritamente, se considerava representativo dos valores da civilização cristã. Fê-lo em nome desses mesmos valores, principalmente da mensagem bíblica sobre a dignidade de todos os seres humanos, da justiça e da libertação dos oprimidos, para lá das fronteiras das religiões organizadas. Permitam-me citar dois textos bíblicos que ilustram notavelmente o empenhamento do Nuno que, sendo cristão, foi primeiramente uma criatura humana solidária de outros humanos:

Na “parábola dos ateus” (Mateus 25:31-46), é-nos dito simbolicamente que o Senhor da História sentar-se-á sobre o trono da sua glória reunindo a humanidade à sua volta. Então, para surpresa dos crentes, ele dirá, entre outras coisas, aos que nunca o conheceram (aos sem religião ou aos ateus): Vinde, herdai o reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Eu tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, eu era estrangeiro e acolhestes-me, estava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava na prisão e viestes até mim. Então lhe responderão os justos, dizendo: Senhor, quando te vimos esfomeado e te alimentámos, ou quando (…) fomos ter contigo?…O Senhor responde: quanto fizestes a um destes mais insignificantes dos meus irmãos, a mim o fizestes.

O segundo texto bíblico, extremamente forte e belo, encontra-se em Isaías 58 onde nos é dito que os crentes, ao desejarem relacionar-se com Deus “jejuando”, isto é, praticando seriamente a sua religião, mas ignorando as exigências éticas de Deus, pervertem esse jejum ou essa religião. Lerei simplesmente algumas frases significativas: se jejuais por querelas e lutas e agredis com os punhos uma pessoa humilde… este não é o jejum que eu escolhi, diz o Senhor. Solta todo o grilhão da injustiça! Desfaz os nós dos contratos feitos à força! Manda embora, em liberdade os oprimidos! Rasga toda a nota de dívida injusta! Parte para o faminto o teu pão e leva os mendigos sem abrigo para tua casa…da tua casa não negligenciarás ninguém! Será então que desponta cedo a tua luz… e caminhará à tua frente a tua retidão. E a glória do Senhor te vestirá. Então gritarás e Deus ouvir-te-á. Enquanto falas, Ele dirá: “Eis que estou presente” … Então a tua luz se levantará na escuridão, e a tua escuridão será como o meio-dia! E estará o teu Deus contigo continuamente e serás preenchido, como deseja a tua alma.

(citações bíblicas traduzidas por Frederico Lourenço, “Bíblia”, Quetzal Editores, Lisboa, 2017)

Joel Pinto
Marvão, 27 março 2022