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PEREIRA, Nuno Teotónio. “O problema da habitação”. Original dactilografado, mar. 1944, 6 p.
O PROBLEMA DA HABITAÇÃO
O problema da habitação parece que caminha finalmente para um desfecho. É chegada a hora de definir directrizes, de traçar planos e de lançar as bases para sua execução. Mas para que a decisão final seja na medida do possível acertada e segura, é indispensável admitir todas as propostas razoáveis e estudar todas as soluções possíveis, à luz dos princípios éticos, sociais e económicos que regem a vida nacional.
Seria imperdoável que se cometesse o erro de fechar os olhos a certas soluções que já existem, rejeitando-as a priori, sem as submeter a um estudo cuidadoso e eficaz. As gerações futuras, desgraçadamente herdeiras dos nossos pecados, haviam de amaldiçoar o nosso espírito acanhado e a nossa falta de coragem para resolver de maneira radical o problema urbano em geral e o problema da habitação em particular. Se as directrizes que forem agora traçadas para o futuro estiverem alicerçadas no erro, as consequências serão verdadeiramente catastróficas.
Na construção de grandes blocos de habitações familiares está a chave que permite resolver eficazmente todos os problemas da cidade moderna. E, à frente desses, o problema da habitação – a célula natural de todo o organismo urbano, como a família é a célula natural de todo o organismo social.
Não só a construção de habitações económicas em grandes blocos traz enormes vantagens de toda a ordem, como pode mesmo dizer-se que a construção em larga escala de vivendas unifamiliares ou quase, equivale ao suicídio das cidades. O que está agora em jogo não é somente um conjunto de regalias morais e materiais que o indivíduo e a colectividade devem e podem usufruir. É mais do que isso: é a própria vida dos grandes aglomerados urbanos.
Este tipo de construção em blocos precisa de ser reabilitado entre nós. Está ultrajado, está caluniado. De um conhecimento imperfeito das suas possibilidades de resolver todos os problemas urbanos e de dar satisfação quase completa às necessidades morais e materiais do homem individual e colectivo, resultou a sua condenação. É preciso que isto fique bem assente: os grandes blocos de habitações de que se fala, nada têm que ver com quaisquer tipos de blocos já construídos no País e muito menos com os arranha-céus de Nova-York, negação completa de todas as necessidades humanas. Pode dizer-se, em relação ao primeiro caso, que na cidade de Lisboa não existe bloco algum de construções modernas satisfazendo as condições de habitabilidade que há o direito de exigir como um mínimo neste ano de 44. Nem mesmo os maciços de carácter luxuoso e de rendas astronómicas que ultimamente têm sido construídos nos bairros mais novos do eixo da cidade.
A casa unifamilar, que ainda hoje é aconselhável sem reservas nos campos e defensável até certo ponto nos pequenos aglomerados urbanos, mostrou ser impraticável nas grandes cidades do nosso século. Mesmo entre nós, onde este tipo de construção foi apontado como o ideal pelos dirigentes do País, tendo sido adoptado inicialmente nos primeiros bairros económicos do Estado Novo, já teve que ser abandonado e substituído por casas para duas famílias. É evidente que, se se transigiu neste ponto capital de doutrina, foi porque os inconvenientes mostraram ser decisivos.
Os próprios princípios de ordem moral que à primeira vista aconselham a construção de pequenas casas unifamiliares, acabam por condenar eles próprios esse sistema e por impor a construção de grandes blocos de habitações. Com efeito, todos os inconvenientes do sistema de unidades familiares isoladas podem ser eliminados no sistema de construção em altura, e isto sem nenhuma perda essencial. Antes, com vantagens numerosas e importantíssimas, no duplo aspecto moral e material.
E porque não aproveitar neste capítulo as lições os outros povos? Já se sabe que possuímos características nacionais muito particulares de que resulta geralmente uma solução original para cada problema. Mas uma coisa é certa: o homem, quaisquer que sejam as coordenadas geográficas, tem necessidades morais e materiais comuns. Por que não prestar atenção à maneira como lá fora se tem procurado dar satisfação a essas necessidades comuns, estudando ao mesmo tempo as suas possibilidades de adaptação?
Já passaram 50 ou 60 anos desde que Ruskin expôs a ideia romântica da cidade-jardim, aglomerado de pequenas casas rodeadas por também pequenos jardins, a grande ilusão do urbanismo deste século. No entanto, esta teoria está agora a ser aplicada no nosso País pela primeira vez em grande escala e quase todos a celebram como sendo a última palavra. Mesmo em Inglaterra, pátria de Ruskin, e da cidade-jardim e porventura o país mais individualista e mais romântico do mundo, onde a casa unifamiliar era um dos dogmas da vida (“the Englishman’s home is his castle”), a opinião pública, já devidamente esclarecida, reclama agora a construção de grandes blocos de habitações e os planos de reconstrução de todas as cidades estão a ser elaborados segundo este critério. E o mesmo se passa em todos os países onde o urbanismo não é uma palavra vã. Estaremos nós irremediavelmente condenados a viver sempre com meio século de atraso?
O primeiro e gravíssimo inconveniente que há a notar no sistema das pequenas casas isoladas é o desperdício enorme de materiais e de mão de obra resultante da extensão tremenda da área ocupada e das ruas de acesso às habitações (construção e manutenção de pavimentos, iluminação, canalizações de água e gás, esgotos, fios eléctricos e telefónicos, etc.). Outro desperdício não menos importante, é o resultante da construção, para cada unidade familiar, de quatro paredes mestras, de fundações e de cobertura. Imaginando agora essas unidades familiares encostadas umas às outras no sentido da longitude e da altitude, facilmente se fará uma ideia do grandioso gasto inútil. A construção em grandes blocos permite evitar tudo isso. E então, de duas uma: ou o que se pouparia desta maneira iria causar um embaratecimento das rendas, ou seria aproveitado no sentido de permitir aos habitantes das cidades o usufruto de confortos materiais proporcionados economicamente pelos serviços comuns de cada bloco e que nas chamadas moradias independentes constituem um luxo incomportável. Está neste caso, por exemplo, o aquecimento das habitações.
Os serviços comuns são a chave que permite a utilização pelas classes médias das modernas técnicas do conforto e do bem-estar.
Por outro lado, tomando em consideração a defesa da família, é preciso tornar cada lar na medida do possível independente. Nos bairros de casas isoladas é inevitável as janelas abrirem ou para a rua, ou para as outras casas. Os pequenos jardins estão completamente devassados e a família nunca poderá estar ali completamente à vontade. Com este sistema, apesar da aparência ilusória em contrário, subsistem ainda inegáveis factores de promiscuidade. Tudo isto desaparece nas construções em bloco. Aqui, cada lar é realmente independente (só não o é nos acessos, mas nisso também as vivendas não o são – e os acessos são locais de passagem, ao passo que os jardins ou os quartos ou as varandas são locais de permanência). Ao abrir-se uma janela não se encontra já a rua ou a casa do vizinho, mas o céu, o rio ou o campo. A Natureza está ali a entrar toda pela casa dentro. Horizontes largos, ar puro, sol. A vista do céu e da terra passa a ser gozada em toda a sua extensão – e por todos igualmente.
Um dos principais argumentos que se emprega contra o sistema de blocos é a monotonia, é a igualdade que parece estar em contradição com a diversidade infinita de todos os homens. Mas não são também todas iguais as vivendas de um bairro económico, dentro de cada tipo? E não se arrumam também geometricamente, impecavelmente alinhadas? Mas se no exterior os grandes blocos têm que apresentar um aspecto unitário e harmónico, pois o exterior pertence à colectividade, no interior cada lar deve ter características bem próprias, e marcar o espírito, os hábitos e as inclinações da família que nele habita. E não se deve esquecer que a casa é utilizada por dentro.
As consequências da extensão exagerada das cidades como resultado da construção sistemática de bairros de pequenas casas tornar-se-ão no futuro catastróficas. O homem das cidades já se desabituou de andar a pé. O homem das cidades tem que aprender novamente a andar a pé. O regresso à Natureza tem que ser um facto total e verdadeiro. Para isso, é preciso reduzir ao mínimo a distância entre os locais de trabalho e as habitações.
Com a construção em altura, esta redução pode conseguir-se, aumentando ao mesmo tempo as superfícies livres, parques, campos de desporto e terras de cultura onde os amadores das plantas e da terra poderão amanhar o seu talhão.
O homem voltará assim ao contacto com a Natureza que tem sido impiedosamente expulsa das cidades contemporâneas. É a hora de desfazermos as nossas ilusões e de abrirmos os olhos: os jardins individuais dos bairros de moradias, as árvores alinhadas ao longo das ruas e as praças ajardinadas não são a Natureza – são uma caricatura da magnificência do reino vegetal.
A paisagem seria aproveitada na sua totalidade. Os elementos naturais (ribeiras, florestas, lagos, colinas) seriam respeitados na sua pureza integral e não arrasados como se faz actualmente. O homem, ao sair a porta de casa, estará em pleno campo. Ao contrário, os bairros de pequenas vivendas devoram os campos sem cessar e fazem aumentar constantemente a distância da cidade ao campo. São um verdadeiro cancro da Natureza.
Em artigos sucessivos, toda esta questão será desenvolvida nos seus diversos aspectos e os assuntos aqui apenas aflorados serão sistematicamente discutidos.
PEREIRA, N. Teotónio, MARTINS, M. Costa. “Habitação económica e reajustamento social”. 1º Congresso Nacional de Arquitectura: Maio-Junho de 1948: promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos com o patrocínio do Governo. 1948, pp. 243-249. Também editado como separata, 7 p.
Republicado em 1º Congresso Nacional de Arquitectura: Maio-Junho de 1948: promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos com o patrocínio do Governo. Ordem dos Arquitectos, 2008, pp. 243-249 [edição fac-similada].
HABITAÇÃO ECONÓMICA E REAJUSTAMENTO SOCIAL
É bem do conhecimento geral a premente necessidade de habitações – um dos mais tremendos problemas da época. Uma enorme parte da população está alojada em condições que não satisfazem as mais fundamentais exigências psico-fisiológicas do Homem. Por outro lado, a formação de novos lares em condições satisfatórias é dificultada pela mesma insuficiência, o que agrava progressivamente a situação, comprometendo a possibilidade de um futuro melhor.
O problema só poderá ser resolvido no quadro de uma planificação nacional que inclua uma nova localização das indústrias, e por meio de uma intensa e pertinaz acção conjugada de inúmeros sectores do saber e do trabalho humanos, da qual as ciências económicas e jurídicas e as técnicas construtivas participarão de modo decisivo.
Esta tese, não pretendendo contribuir directamente para a resolução do problema, procura definir – analisando sistematicamente as características da população das grandes cidades – as respectivas necessidades habitacionais na cidade e na casa, com vista a um reajustamento social.
Pensamos que, ao focar este importantíssimo aspecto do problema, poderemos contribuir para que seja grandemente aumentado o alcance social da apreciável obra de construção em curso.
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Os resultados da referida análise levaram-nos a distinguir, no panorama social observado, através de características peculiares, duas grandes classes bem diferenciadas, as quais designaremos por classe proletária e classe média. Essas características irão determinar, à luz de princípios orientadores, os correspondentes tipos de habitação e sua inter-relação na cidade.
Os indivíduos de que se compõe em grande maioria a classe proletária vivem em bairros miseráveis ou do próprio centro da cidade. Nos primeiros é enorme a percentagem de imigrantes, arrancados ao seu meio próprio – desenraizados. Por outro lado, as condições em que é exercido o trabalho, a actividade recreativa caracterizada por manifestações rudimentares e fechadas, e as possibilidades muito limitadas de actividade cultural (grande maioria de analfabetos), determinam uma quase total impossibilidade de elevação e de progresso, quer directamente através dos agentes próprios (jornal, cinema, livro) ou de instituições com essa finalidade, quer indirectamente pelo contacto com camadas mais elevadas da população. Vivendo à margem da cidade, em bairros reservados, não participam da vida que lhe é própria.
Por tudo isso possuem baixo nível cultural, sentido cívico atrofiado, menos respeito por si, pelo semelhante e pelas instituições; e certa carência de princípios morais – muitas vezes os mais elementares.
Pelo contrário, a classe média é formada por indivíduos que têm já uma tradição citadina, que estão integrados na cidade, que têm hábitos urbanos.
O próprio campo onde exercem a sua actividade – que nunca é predominantemente física – oferece oportunidades de relação e contribui assim para uma subida quotidiana do nível social e cultural, ainda reforçada pelos instrumentos de cultura e de recreio que têm ao seu alcance.
Possuem uma melhor compreensão do dever cívico, uma mais larga possibilidade de aproveitamento dos benefícios e de uso dos direitos proporcionados pela cidade, uma mais pronta e consciente aceitação das disciplinas impostas pela vida em comum.
Esta distinção de classes não se baseia em factores de ordem económica, e só em parte corresponderia a qualquer classificação que os tivesse por base, pois em ambas existem indivíduos de vida extremamente difícil e de vida relativamente desafogada. Grande parte dos componentes da classe média têm mesmo rendimentos absolutos inferiores a muitos indivíduos da classe proletária. Como o desafogo económico é dado pela relação rendimentos / necessidades, verificamos que a diferença entre rendimentos relativos de uma e de outra é ainda mais acentuada. Nível social não é o mesmo que nível económico.
No panorama social das grandes cidades notam-se dois movimentos contrários, um ascendente, outro descendente. O primeiro é caracterizado por uma evolução progressiva do estilo de vida – tornada possível pelo contacto e favorecida pelo desafogo económico – em que elementos do proletariado vão encorporar-se na classe média. O segundo consiste no abaixamento do nível geral da classe média, provocado na maior parte dos casos pela impossibilidade de satisfazer as necessidades correspondentes ao seu estilo de vida.
Entendemos que é preciso eliminar as causas do movimento descendente da classe média e acelerar e generalizar ao máximo o movimento ascendente da classe proletária.
Para o primeiro objectivo, uma contribuição poderosa e indispensável será a construção de habitações em quantidade e qualidade tais que satisfaçam as necessidades da classe média, de modo a esta poder manter o seu nível específico.
Com relação à classe proletária, os meios a empregar terão que ser mais amplos e radicais.
Antes de mais nada, como condição essencial há que recebê-la na cidade, o que, para além de um sentido meramente topográfico, quer dizer: colocá-la em contacto com os elementos que caracterizam esta socialmente. No entanto, isto deverá fazer-se em condições transitórias que permitam habilitá-la a participar um dia plenamente da sua vida. Além do seu significado profundamente humano, que deve ser realçado, isso proporcionará a única forma de estabelecer o preconizado contacto com a população de nível mais elevado, e acabar com a proscrição a que agora o proletariado se encontra sujeito.
Esse contacto, que fornecerá continuamente oportunidades de elevação, deverá ser em grau tal que permita a mais rápida subida de nível da classe proletária, sem contudo fazer baixar o da classe média. Essa também tirará daí o seu benefício, adquirindo um maior grau de compreensão humana e de consciência social.
Outro factor imprescindível será a realização de uma campanha, utilizando todos os meios de que hoje se dispõe, com uma finalidade educativa e de assistência social que, além de consequências directas, proporcionará aos elementos do proletariado a possibilidade de explorarem por si próprios novas fontes de elevação e de cultura.
Vejamos agora de que maneira as determinantes acima apontadas se poderão concretizar, primeiro na estrutura da cidade, e a seguir na da própria habitação.
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Para que seja possível o contacto preconizado, será preciso relacionar as habitações das duas classes de tal modo que possam estabelecer relações de vizinhança.
Mas para que o grau dessas relações permita o equilíbrio apontado, elas devem ser proporcionadas, não dentro da unidade habitacional (prédio), mas sim de uma unidade de vizinhança, base de uma comunidade que virá a ser uma nova e autêntica freguesia.
Essa unidade de vizinhança será composta por unidades habitacionais de uma e de outra classe, constituindo um todo a que será imprescindível juntar os instrumentos de carácter social tendentes a tornar possível, tanto uma urgente acção educativa – cuja finalidade é a elevação – como a realização das manifestações colectivas próprias da cidade. São elas: Escolas (Primária e Infantil), Igreja, Biblioteca, Administração local, Serviços Públicos, Clube Recreativo, Centro de Saúde, Cinema, Terrenos de Jogos, Café, Centro de juventude, Comércio, etc.
Em face dos graves inconvenientes, hoje universalmente reconhecidos, da grande extensão das cidades, torna-se urgentemente necessário aplicar em grande escala o princípio da construção em altura. Mas, considerando as características sociológicas da classe proletária atrás apontadas, e que não correspondem aos requisitos que uma grande aglomeração de fogos na mesma unidade exige; e dado ainda o carácter transitório que preconizamos para as habitações da mesma classe, cremos que as unidades habitacionais respectivas não podem ser desse tipo de construção.
Em contrapartida, entendemos que o mesmo princípio deve aplicar-se às habitações da classe média no máximo das suas possibilidades.
À medida que uma planificação nacional em grande escala for eliminando as causas que criaram o actual estado trágico das cidades, as habitações transitórias da classe proletária irão sendo substituídas.
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Estabelecidas assim as normas que condicionarão a estrutura da cidade, em função da análise sociológica e com vista aos objectivos propostos, vejamos algumas das suas repercussões na estrutura da habitação.
Para suster o já notado movimento de proletarização da classe média, concluímos que a construção de habitações em número suficiente e com as condições exigidas pelo seu estilo de vida, contribuirá poderosa e decisivamente.
Para promover a elevação da classe proletária, a construção de habitações adequadas será também um dos mais eficientes e indispensáveis meios. Tais habitações deverão tornar possível, já a plena satisfação das necessidades pré-existentes, já o despertar de outras necessidades, a satisfazer ainda de maneira rudimentar. De carácter provisório, serão o quadro de uma espécie de aprendizagem, obrigatoriamente completada por uma intensa acção educativa.
Posto isto, vamos analisar algumas das funções habitacionais requeridas por uma e outra classes.
Das funções individuais, há duas a que deve ser dada importância equivalente em ambos os casos – dormida e higiene, pois estas têm a satisfazer necessidades de ordem fisiológica em condições de recato – requisitos que são indispensáveis para uma boa saúde física e mental.
Entendemos que, neste caso, o estado transitório não deve ser considerado. Porque, não obstante os indivíduos da classe proletária estarem nas condições actuais muito longe de possuir necessidades higiénicas satisfatórias, reputamos ser condição essencial para a sua elevação – ao mesmo tempo que exigência imperativa da cidade – levá-los a adquiri-las em grau normal. Para isso é fundamental facultar-lhes meios de satisfação dessas necessidades, tão completos, pelo menos, como os que dispõe normalmente a classe média. E isto porque qualquer acção educativa exterior será infrutífera, se as condições proporcionadas não forem convidativas.
Há duas necessidades que são satisfeitas no quadro familiar: a de recreio, consubstanciada no serão, e a alimentar, concretizada na refeição. Estas funções – que implicam reunião – apresentam sensíveis diferenças em relação a uma e a outra classes, acentuadas neste caso pela existência, ou não, de criada.
A efectivação do serão em condições adequadas é fundamental para assegurar uma vida familiar plena. Enquanto esta instituição atinge na classe média o seu maior esplendor, quando existe na família proletária é em forma rudimentar; porque, se por um lado, a habitação actual da classe proletária não lhe proporciona o necessário enquadramento, por outro, a carência de meios de recreação não lhe fornece o indispensável alimento. A necessidade muito frequente de deitar cedo, e o cansaço motivado pelo trabalho físico, quase sempre violento, vêm ainda reforçar essa deficiência. De acordo com a forma transitória preconizada para a habitação proletária, ela deverá permitir a realização desta função, mas num grau pouco evoluído.
No que respeita à classe média, a não existência de criada introduz uma diferenciação bem marcada pois, nesse caso, será a mãe de família a executar todo o trabalho doméstico – muitas vezes ao mesmo tempo que no centro de reunião se passa o recreio familiar, do qual necessita de participar. Como o trabalho doméstico é na maior parte realizado na zona de serviço, terá que proporcionar-se uma ampla ligação entre esta e o local de reunião.
A refeição assume um carácter solene e simbólico que aumenta na mesma medida do nível social. Assim, a família da classe média exige para esta função um enquadramento apropriado. Dentro desta mesma classe, também a não existência de criada torna indispensável – e este é o caso da classe proletária – uma contiguidade perfeita entre a cozinha e o local da refeição.
As necessidades extra-familiares estão na base da chamada vida de relação, a qual é uma das características mais próprias da classe média, manifestando-se de uma forma atrofiada entre o proletariado. Essa vida de relação é representada, tanto pela simples visita provocada pela necessidade de reunião inter-familiar e afectiva, como pela visita cerimoniosa, motivada por convenções sociais ou por razões profissionais.
Geralmente, a primeira no próprio quadro da reunião familiar, o que quer dizer que a habitação, em qualquer dos casos, não necessita de local especialmente consagrado a esse fim. No que diz respeito às visitas da segunda espécie, verificamos que apenas na habitação da classe média deverá ser previsto o local para a sua efectivação.
Através dos casos apresentados, exemplificamos como poderá a habitação corresponder às necessidades observadas, permitindo ao mesmo tempo a realização dos objectivos propostos.
RESUMO E CONCLUSÕES
Em face da trágica necessidade de habitações, verificamos que O PROBLEMA SÓ PODERÁ SER RESOLVIDO NO QUADRO DE UMA PLANIFICAÇÃO NACIONAL E POR MEIO DE UMA ACÇÃO CONJUGADA DE INÚMEROS SECTORES DO SABER E DO TRABALHO HUMANOS.
Procuramos definir, com vista a um reajustamento social, algumas características da cidade a reformar e da habitação a construir.
Uma análise do corpo social das grandes cidades permite-nos distinguir dois grupos entre a população que sofre a falta de alojamentos.
Verificamos que um desses grupos – a classe proletária – vive à margem da cidade, constituindo nela um corpo estranho.
Constatada a existência de dois movimentos declaramos que é preciso acelerar e generalizar ao máximo o movimento ascendente da classe proletária, eliminando ao mesmo tempo as causas que motivam o movimento descendente da classe média.
Para tanto, pensamos que É CONDIÇÃO PRELIMINAR E ESSENCIAL INTEGRAR NA CIDADE AS HABITAÇÕES DA CLASSE PROLETÁRIA, ABANDONANDO-SE A CONSTRUÇÃO DE BAIRROS EXCLUSIVOS. UMA INTENSA ACÇÃO EDUCATIVA SERÁ INDISPENSÁVEL.
A concretização destas determinantes na estrutura da cidade leva-nos a concluir que É PRECISO CONSTITUIR UNIDADES DE VIZINHANÇA, FORMADA POR UNIDADES DE HABITAÇÃO DE UMA E OUTRA CLASSE, COMPLETANDO O CONJUNTO PELOS INDISPENSÁVEIS E VARIADOS INSTRUMENTOS DE CARÁCTER SOCIAL.
Verificamos ao mesmo tempo a conveniência de se APLICAR EM GRANDE ESCALA NAS HABITAÇÕES DA CLASSE MÉDIA O PRINCÍPIO DA CONSTRUÇÃO EM ALTURA, RESERVANDO-SE PARA A CLASSE PROLETÁRIA UNIDADES DE CARÁCTER MENOS DURADOURO E SEM GRANDE AGLOMERAÇÃO DE FOGOS.
Por consequência, DEVE ABANDONAR-SE A CONSTRUÇÃO DE PRÉDIOS DE MEIA ALTURA, SOCIALMENTE INCONVENIENTES PARA A CLASSE PROLETÁRIA E ECONOMICAMENTE PREJUDICIAIS PARA A CLASSE MÉDIA.
No que respeita à casa, pensamos que É NECESSÁRIO TENTAR RESOLVER AS FUNÇÕES HABITACIONAIS COM BASE NAS CARACTERÍSTICAS SOCIOLÓGICAS OBSERVADAS E À LUZ DOS PRINCÍPIOS ENUNCIADOS.
FINALMENTE, DECLARAMOS ACREDITAR QUE SERÁ NECESSÁRIO INCLUIR OBJECTIVOS DE REAJUSTAMENTO SOCIAL NUM PROGRAMA QUE PRETENDA A UMA AUTÊNTICA REFORMA DA CIDADE.
Amor e casamento: causas de desunião
(Preparação para a reunião de casais das Equipas de Nossa Senhora de 27 de abril de 1961)
Penso que é da maior importância uma vigilância constante. O hábito é tanto mais perigoso que se infiltra sem quase se dar por isso.
Há pequenas coisas que se podem fazer e que são uma sacudidela na vida de todos os dias.
Quando o Nuno está no Atelier, às vezes à noite, e eu em casa – um telefonema dum de nós ao outro só para dizer que o ama. Claro que tem de ser sentido. Mas muitas vezes sentimos e não dizemos nada. Por vezes há a tentação de pensar: que ridículo, ir agora dizer-lhe isto… Para quê?, etc. No entanto, penso que todos nós, quando noivos, não nos importávamos de ser ridículos. Uma vez convidei o Nuno, por escrito – com V. Exª. e tudo – para irmos jantar fora (pois havia muito tempo que não o fazíamos e por mais lamirés que eu desse, nada). E foi um jantar cheio de novidade. Umas flores que o Nuno de vez em quando me traz, especialmente fora dos dias especiais (anos, etc.). O vestido novo que ele sempre nota e que eu procuro sempre estrear com ele. Um livro que o Nuno me oferece, especialmente aquele em que eu falei em tempos e de que ele tomou nota. (…)
Lembro aqui uma grande carta que escrevi ao Nuno, numa altura em que reconheci o perigo do hábito e da instalação a rondar-nos. Fui pô-la lá em baixo na caixa do correio. Esta foi uma grande sacudidela. (…)
Natália
Considero que o hábito representa um grande perigo e uma ameaça constante para o amor, pois pode abafá-lo. Temo-nos defendido bastante desse perigo, porque a Natália desde o princípio que tem uma aguda consciência dele, falando disso mesmo antes do nosso casamento. Por isso, temos procurado não abdicar de uma parte da nossa intimidade pessoal e de um certo recato em relação um ao outro. Ao mesmo tempo, temos procurado afastar a ideia de uma posse definitiva [de] um pelo outro, tendo insistido também muito a Natália na necessidade de nos conquistarmos sempre de novo. (…)
Nuno
ALEXANDRE, Álvaro; RICOU, Gastão; REIS, João Braula; PEREIRA, Nuno Teotónio; NUNES, Paulo. “Problemas de base postos pelo estudo da Habitação Económica”. II Colóquio Nacional do Trabalho, da Organização Corporativa e da Previdência Social. [Lisboa: 1962], pp. 117-136
Republicado em Arquitectura, nº 76, out. 1962, pp. 47-50.
PROBLEMAS DE BASE POSTOS PELO ESTUDO DA HABITAÇÃO ECONÓMICA
Comunicação ao II colóquio do Trabalho, da Organização Corporativa e da Previdência Social
I – EXPLICAÇÃO PRÉVIA
Correspondendo a habitação, tal qual a saúde, a alimentação e a educação, a necessidades humanas primordiais, não pode adiar-se por mais tempo o estudo sério do problema e a adopção de medidas eficazes para o resolver.
Perante a gravidade da nossa situação habitacional, sabe-se que o País não poderá dispor dos meios necessários para a solução imediata da crise, tendo em vista a nossa reduzida capacidade de investimento e as exigências postas pelo desenvolvimento económico. Importa por isso que todos os meios disponíveis sejam utilizados no seu máximo rendimento e que novos meios sejam criados.
Atendendo àquela limitação, é indispensável que todos os nossos recursos em energia, capacidade de organização, capitais, materiais e mão-de-obra, técnicas, etc., que possam ser utilizados na construção de habitações, o sejam apenas naquelas que têm carácter social e que correspondam às necessidades da população mais mal alojada.
A habitação económica só tem sentido se for ordenada a um objectivo de carácter social e para o ser, terá de abranger a generalidade da população e situar-se no contexto económico-social do povo português.
A habitação económica, que começou por ser orientada para determinadas camadas da população, tem hoje um âmbito muito mais amplo, uma vez que o problema da habitação é um problema de todos e não pode deixar de situar-se no conjunto do País. Trata-se agora de construir «economicamente» à luz dos recursos nacionais e imprimir um sentido social à habitação para todos. Deste modo é preciso aplicar a toda a construção os critérios que se reservavam até agora para a habitação dita económica, e por forma a que:
a) se resolva o problema habitacional do maior número possível de famílias num dado período;
b) as casas construídas tenham condições de habitabilidade consideradas suficientes.
Esta perspectiva coloca-nos perante o facto de que a habitação económica não deve ser um sector, mas tem de ser a totalidade: o económico, como o social, não se pode apenas aplicar a uma parte – implicam o conjunto.
Deste modo, o estabelecimento de níveis habitacionais, por exemplo (o «standard»), só tem sentido se for inserido no quadro económico-social de um plano, tendo em conta objectivamente as necessidades da população e os recursos do País – avaliados ambos não no sector restrito de uma classe, mas em relação ao conjunto da Nação.
E ainda que considerássemos a habitação económica como um sector restrito, bastaria a necessidade de a enquadrar na habitação em geral para que fosse imprescindível estudar todo o conjunto. Esta necessidade não se tem feito sentir até à data porque as realizações têm sido muito reduzidas e a consciência da situação nem sempre foi muito nítida. Mas já que se abrem perspectivas para um incremento das iniciativas e que a gravidade das nossas carências não pode ser ignorada, é imperioso considerar todos os sectores da produção e ordenar todos os empreendimentos a um fim primordial que é dar uma verdadeira casa a todos os portugueses.
Assim, no estudo que se segue, a habitação económica é encarada em toda a sua amplitude, e não apenas dentro do âmbito tradicional ou limitada aos quadros da Previdência, embora a esta possa caber grande papel na obra a realizar.
Para tanto, torna-se necessário em primeiro lugar o estudo rigoroso da nossa situação actual, para que todo o esforço o seja exactamente onde é mais necessário e útil.
II- ESBOÇO DA SITUAÇÃO ACTUAL
Conforme se encontra explicado no anexo a esta exposição, as nossas necessidades em habitações no decénio que terminou em 1960 teriam sido de umas 600 000 habitações; para se chegar a este número, no entanto, teve de se admitir que as reposições do nosso património se limitariam às resultantes do envelhecimento, depois de 123 anos, e do desaparecimento por acidente ou desvio funcional. Admite-se assim a modesta hipótese de a reposição resultante da falta de condições mínimas das habitações não ser considerada directamente, isto é, que só estaria terminada dentro de 123 anos.
Também se concluiu naquele estudo que, por no mesmo decénio se terem construído 280 785 habitações o «deficit» inicial que era em 1950 de umas 250 000 habitações passou em 1960 a ser da ordem das 300 000 habitações.
Lá se vê ainda que para cumprir o programa habitacional determinado teríamos de incrementar as produções de telhas e tijolos de modo a quadruplicá-la, de cimento de modo a acrescê-la de 12%.
Cabe ainda esclarecer que a construção de 60 000 habitações por ano, se for convenientemente estudada e planeada, representa um encargo financeiro da ordem dos 4,8 milhões de contos, incluindo terrenos, urbanização e edificações complementares (culturais, comerciais, sanitárias, assistenciais, administrativas e outras), estas últimas na proporção duns 60% (os outros 40% supostos suportados por outros sectores da Economia Nacional).
Finalmente refere-se como dado interessante que das 280 785 habitações construídas no decénio findo em 1960, 261 498 (93,1%) couberam à iniciativa particular e 19 287 (6,9%) à acção directa ou indirecta do Estado; destas últimas, 2 423 (12,6%) foram casas de renda económica, construídas pela Previdência, sendo as restantes casas económicas casas para as classes trabalhadoras, casas para pescadores e casas de renda limitada.
III – NECESSIDADES DE UMA POLÍTICA DE HABITAÇÃO
Uma vez conhecida a situação actual, tanto no que respeita às necessidades (presentes e futuras) como aos meios de que actualmente dispomos para as satisfazer, torna-se indispensável definir uma política de habitação, através da formulação dos objectivos a atingir e da estruturação dos meios para lhe dar execução.
Esta política enquadrar-se-à naturalmente na política geral do Estado, tendo presentes as necessidades do desenvolvimento económico e as exigências de carácter social, contraditórias apenas a curto prazo, sabendo-se que os factores de ordem social podem, dentro de certos limites, contribuir eles próprios para o desenvolvimento económico.
Nestas exigências de carácter social, deve dar-se relevo ao sentido de apoio à família que implica a construção de habitações, sem esquecer que existe uma relação entre as condições de habitação e o rendimento nacional.
De acordo com a recomendação do B.I.T. (sessão de 1961), «a política da habitação deve ser coordenada com a política social e económica geral, de modo que a habitação dos trabalhadores possa beneficiar de um grau de prioridade, baseado por um lado nas necessidades a que tem de responder e por outro nas exigências de um desenvolvimento económico equilibrado».
IV – FINANCIAMENTO E POLÍTICA DE RENDAS
As actuais fontes de financiamento da habitação têm sido, numa proporção esmagadora, o capital privado (93,3% em 1960), sobretudo o de tipo lucrativo (construção de casas para rendimento nas zonas urbanas), os capitais da Previdência e finalmente os do Estado (este em proporções diminutas).
O grande volume de construção executado pela iniciativa privada de carácter especulativo tem sido apoiado em larga medida na concessão de crédito dos fundos públicos (sobretudo através da Caixa Geral de Depósitos), mas não oferendo em contrapartida todos os benefícios de carácter social que seriam possíveis. Quer dizer: tal concessão de créditos tem-se baseado exclusivamente em critérios puramente financeiros de aplicação de capitais deixando assim perder-se a oportunidade para se fixarem benéficos condicionamentos de ordem técnica e sociológica que teriam podido conferir às centenas de milhares de habitações construídas neste regime um carácter de adequação às necessidades, que quase inteiramente lhes falta.
Quanto aos capitais da Previdência, é sabido que o condicionalismo a que estão sujeitos não permite a sua aplicação generalizada relativamente às classes menos favorecidas da população, que são justamente as que constituem a grande maioria do povo português.
Efectivamente, há muito se reconhece que uma política de fomento da habitação social não pode dispensar uma decidida intervenção do Estado no plano financeiro, competindo-lhe, como entidade impulsionadora e coordenadora, tanto o encaminhamento da iniciativa privada no sentido de conferir à habitação um carácter social, como o de apoio directo ao sector público e ao sector privado não especulativo (Previdência, cooperativas, construção pelo próprio, etc.).
Este apoio financeiro destina-se a cobrir a diferença entre as exigências de rentabilidade do capital e as possibilidades económicas da generalidade da população, e pode abarcar as seguintes modalidades:
1 – Fornecimento de subsídios não reembolsáveis para a execução dos programas estatais ou para a subvenção de outros obedecendo a determinadas características;
2 – Concessão de capitais não vencendo juros e reembolsáveis a longo prazo;
3 – Concessão de empréstimos a juros mais baixos e prazos mais longos do que os normais no mercado livre;
4 – Fornecimento de garantias a estabelecimentos de crédito e instituições de previdência com vista a facilitar os empréstimos e aplicações de capital a um juro baixo;
5 – Concessão de isenções de carácter fiscal suficientemente amplas para imprimirem decisivamente um sentido social à iniciativa privada.
O facto de apenas 6,7% dos fogos construídos nos centros urbanos se poder considerar de carácter social pode explicar-se em larga medida pela insuficiência da intervenção estatal neste domínio. Com efeito, das modalidades atrás referidas tem-se adoptado sobretudo entre nós as nºs 1 e 2. Mas o fornecimento de subsídios não reembolsáveis tem sido ínfimo em relação às necessidades e as isenções fiscais têm sido aplicadas através de uma legislação defeituosa que não tem permitido que se atinjam as suas intenções de carácter social.
A iniciativa privada de carácter individual (construção pelo próprio) foi objecto de legislação recente – lei 2092 – que embora de aplicação sempre limitada, pode no entanto ser ampliada mediante acertos sucessivos indicados pela própria experiência.
No âmbito desta lei, os capitais da Previdência, aos quais está fixada, por imperativo da sua função específica, uma rentabilidade demasiado elevada para atender às necessidades da maioria da classe trabalhadora, podem beneficiar de subvenções do Fundo Nacional de Abono de Família, já dentro da orientação de um sentido social. No entanto, esta possibilidade será necessariamente limitada, não podendo ter a amplitude exigida pelas necessidades.
Ainda dentro do sector não lucrativo, as formas cooperativas de construção não têm merecido qualquer apoio do Estado constituindo este facto uma das mais graves lacunas, sobretudo num país de fracos recursos, em que todas as energias latentes deverão ser aproveitadas.
Como norma geral, competirá ao Estado exercer o apoio financeiro que só ele está em condições de poder prestar, por forma a serem estimuladas e canalizadas no sentido conveniente todas as possibilidades do capital privado dos diversos ramos, através das modalidades mais indicadas para cada caso. Deste modo será possível, ainda que com capitais do Estado relativamente limitados (mas no entanto em volume muito maior do que até aqui) fazer render socialmente ao máximo os capitais de origem privada, imprimindo à construção de habitações um nítido carácter de serviço público.
No que respeita à política de rendas, importa dar-lhe um sentido vincadamente social, por forma que os encargos com a habitação sejam proporcionais aos recursos das diferentes camadas da população.
Devem urgentemente pôr-se em prática, de uma forma generalizada, princípios como o da compensação de rendas num âmbito tão amplo quanto possível e sua actualização, sobretudo nas habitações gozando de regime especial (casas de renda económica e renda limitada, por exemplo), de modo a acompanhar o aumento da capacidade de pagamento de muitos dos moradores.
Ao mesmo tempo, enquanto não é possível fornecer alojamentos adequados a todos, deve pôr-se em prática o sistema de subsídios de renda, concedidos em regime semelhante ao dos abonos de família, conforme a recomendação do B. I. T. (sessão de 1961).
V – POLÍTICA DE TERRENOS
Não há qualquer possibilidade – e a experiência de muitos países o comprova – de resolver o problema da habitação sem um conjunto de medidas que permitam às entidades construtoras dispor de grandes quantidades de terrenos a custos compatíveis com os objectivos sociais em vista. Em certo sentido, pode mesmo dizer-se que a política do solo é a pedra de toque de uma política de habitação.
Com efeito, ao enfrentar-se este problema da falta de alojamentos, verificam-se carências de toda a ordem: de capital, de mão de obra, de técnicos, de materiais de construção, de organização técnica e administrativa, de espírito social, etc., etc. De tudo isto temos realmente muita falta , falta que não podemos superar de um dia para o outro. Mas ao menos uma coisa temos em abundância: terrenos. E é precisamente a dificuldade em obter terrenos que constitui hoje o mais forte travão à construção de casas.
Sabendo-se que o custo de uma habitação, pagável sem juros em 20 anos, conduz só por si a uma prestação mensal incompatível com as possibilidades da grande maioria das famílias que hoje as não têm, compreende-se facilmente como não é possível agravá-lo com custos de terrenos que no mercado livre chegam a atingir já hoje mais que o custo da própria construção.
Para combater este absurdo, recorreu o Governo a medidas de expropriação que se têm mostrado praticamente ineficientes no domínio da habitação.
Algumas soluções mais enérgicas, tendentes a eliminar este grande obstáculo, tais como: criação de fundos destinados a compra antecipada de terrenos pelos organismos dedicados à construção de habitações sociais ou pelas Câmaras que a eles cederiam sem lucros; declarações de utilidade pública para os referidos terrenos permitindo utilização imediata antes da conclusão dos processos de expropriação; constituição de tribunais com carácter permanente com vista a um tabelamento dos terrenos, etc., não têm conduzido, nos países que as têm aplicado, a resultados inteiramente satisfatórios.
Põe-se aqui uma questão de princípio: um terreno destinado ao uso da comunidade não pode estar sujeito na sua aquisição a uma mais valia beneficiando o proprietário e que resulta afinal de obras feitas por essa mesma comunidade.
Além disso, o preço da aquisição de terrenos para os empreendimentos de carácter social não deve depender do mercado livre dominado pela especulação. Ao mesmo tempo, o regime a estabelecer para estes empreendimentos deverá alargar-se a todos os sectores da habitação, mesmo o de carácter privado.
Deste modo, a especulação só poderá ser impedida por medidas decisivas, que poderão ser, por exemplo:
1 – tabelamento por zonas, de todo o terreno com interesse urbanístico, impedindo-se o particular de se apropriar da valorização que pudesse vir a obter-se a partir da data do tabelamento pela sua transacção, aluguer ou utilização própria;
2 – criação de um fundo de financiamento que permitisse aos Municípios a compra ou a congelação de todo o terreno considerado urbano ou urbanizável aos preços de tabela fixados.
Dentro desta perspectiva, deve considerar-se o importante papel que os capitais da Previdência podem desempenhar neste capítulo.
A meta a atingir será que o terreno urbanizável esteja à disposição de toda a comunidade, que o poderá utilizar em condições compatíveis com os objectivos exigidos por uma política nacional de habitação.
VI – COORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA
Como condição prévia, não só para a formulação de uma política de habitação, mas até para o estabelecimento de um programa, concluiu-se no seminário das Nações Unidas dedicado aos países em vias de industrialização que se torna necessária a existência de um único organismo coordenador.
Com efeito, só um organismo situado a alto nível poderá promover os estudos e fazer as opções necessárias para a solução do problema posto pela grande disparidade entre as necessidades e os recursos disponíveis no que toca à habitação. O problema consiste numa questão de prioridade, por um lado, do sector habitacional em relação à economia geral, e por outro, dentro deste sector em relação às diferentes necessidades.
A existência deste organismo coordenador, se pressupõe uma centralização para a definição das linhas gerais de uma política e para o estabelecimento dos programas, não implica, por outro lado, a centralização da execução ou das iniciativas, que devem de preferência ficar a cargo de entidades locais ou sectoriais.
Tem-se por certo que uma decisão no sentido de enfrentar e resolver a crise habitacional se há-de traduzir necessariamente na criação de um organismo coordenador, pois se julga concludente a experiência de outros países e a nossa própria acerca da sua indispensabilidade. Em Espanha, por exemplo, o Plano Nacional da Vivenda, publicado em 1961, não teria sido possível sem a criação prévia do Ministério da Vivenda, já em 1957.
VII – PROGRAMAS HABITACIONAIS
Como instrumento indispensável de uma política da habitação, terá de estabelecer-se um plano ou programa nacional da habitação a longo prazo, tal como se concluiu na já citada reunião das Nações Unidas: «Um programa de fomento habitacional é o factor vital do planeamento da construção de habitações e é indispensável elaborar esse programa em países com uma taxa de industrialização rápida e que estão a sofrer modificações demográficas e sócio-económicas».
É evidente que, para combater um mal, é necessário conhecê-lo na sua verdadeira dimensão e, por outro lado, pôr em acção os meios que permitam suprimi-lo em dado espaço de tempo.
Este programa pressupõe assim o conhecimento da nossa situação carencial no presente e no futuro e dos meios de que dispomos actualmente para a combater. E implica por outro lado o estudo de novos meios a pôr em prática, à luz dos recursos utilizáveis que permitam resolver o problema em dado prazo.
A dimensão do programa dependerá assim, por um lado, do volume de investimento que se poderá aplicar e, por outro, dos meios materiais que existam ou possam ser criados (materiais, mão de obra, organização, etc.).
Deverá incluir tanto o sector público como o privado nas suas diversas modalidades, aquele com um carácter mais preciso, este com um carácter mais aproximado. O programa terá um primeiro aspecto de âmbito nacional no plano económico e desdobrar-se-á em planos parciais ligados ao planeamento territorial e articulando-se com outros planos sectoriais (comunicações, fomento industrial, reorganização agrária, etc.).
Em face da grande desproporção entre as necessidades e as possibilidades de realização, impõe-se estabelecer uma ordem de prioridades para a satisfação daquelas necessidades, por forma que a utilização dos recursos seja feita exactamente onde e como pode ser mais útil, tanto no aspecto do rendimento quantitativo (o maior número de fogos possível), como no qualitativo (satisfazendo os requisitos mínimos de habitabilidade), como ainda na sua projecção social. De uma forma geral, deve dar-se prioridade, por um lado, às necessidades habitacionais derivadas de novos empreendimentos económicos e, por outro, à melhoria da habitação das classes mais mal alojadas.
A propósito, deve dizer-se que a aplicação dos nossos recursos financeiros e industriais na construção de habitações em regime de mercado livre, dirigida sobretudo para as classes mais abastadas, é feita no fundo em detrimento da parte da população mais mal alojada. Esta situação pode considerar-se intolerável, impondo-se portanto o condicionamento do sector privado, por forma a dirigi-lo no sentido de se atender prioritariamente a estes casos.
Para este efeito, os poderes públicos podem normalmente lançar mãos de dois meios: a ajuda financeira (em forma de empréstimos ou de isenções) e a concessão de terrenos, obrigando os construtores a respeitarem não só normas mínimas como também limites máximos, contrariando as construções de luxo que o nível económico do País não pode comportar.
É este um dos aspectos em que se salienta com maior evidência a inter-relação entre o sector público e o privado, uma vez que o financiamento de ambos é retirado da parte do investimento nacional que pode atribuir-se à habitação.
CONCLUSÕES
I – A habitação económica só tem sentido se for ordenada a um objectivo de carácter social. Não pode portanto confinar-se a um sector da população, mas sim à sua totalidade, inserindo-se no contexto económico-social do povo português.
II – Perante uma situação que se pode considerar extraordinariamente grave, até porque a falta de dados concretos não permite medir toda a sua extensão, importa que se faça a avaliação das nossas necessidades presentes e futuras, tendo em conta a carência actual de habitações acessíveis aos necessitados, o aumento demográfico, os movimentos migratórios, a substituição de casas arruinadas ou incapazes, etc.
Para tanto, é indispensável a elaboração de estatísticas adequadas e completas.
III – Por outro lado, é necessário que, paralelamente, se promova o balanço dos recursos que podem ser atribuídos à habitação, incluindo aqueles que possam ser utilizados, ainda que à custa de reformas estruturais.
IV – Em face dum conhecimento da situação, deve definir-se então claramente uma política da habitação e criar-se um único departamento coordenador responsável pela sua boa orientação.
V – Deve definir-se, em face dessa política, o prazo dentro do qual o deficit existente pode ser anulado e concretizar os diversos meios a utilizar para esse efeito.
VI – Ao mesmo tempo, sobretudo enquanto não é possível oferecer alojamentos adequados a todos, deve pôr-se em prática o sistema de subsídios de renda, concedidos em regime semelhante ao dos abonos de família.
VII – Devem estabelecer-se limites mínimos e máximos condicionando o aspecto qualitativo das novas habitações por forma a obter-se o maior rendimento social e económico dos recursos disponíveis.
VIII – Não podendo aceitar-se que uma comunidade seja permanentemente privada da melhor utilização do seu terreno urbano só porque entre ela e esse terreno de que precisa, se interpõe um particular que especula com uma valorização resultante afinal de obras feitas por essa mesma comunidade, torna-se indispensável que se ponha em prática uma política eficaz do solo permitindo obter a tempo os terrenos indispensáveis, nas condições de preço compatíveis com os objectos sociais do programa, e por forma a garantir a respectiva urbanização e a construção dos edifícios complementares.
O que pode conseguir-se através de:
a) Um tabelamento por zonas, de todo o terreno com interesse urbanístico, impedindo-se o particular de se apropriar de toda a valorização que pudesse vir a obter, a partir da data do tabelamento, pela sua transacção, aluguer ou utilização própria.
b) A criação de um fundo de financiamento que permitisse aos Municípios a compra ou a congelação de todo o terreno considerado urbano ou urbanizável aos preços de tabela fixados.
Propomos ainda:
IX – Que se utilizem métodos de financiamento adequados, por forma a que os capitais dos diversos sectores sejam orientados decisivamente para a satisfação das necessidades da generalidade da população.
X – Que se ponha em prática uma política de rendas de carácter vincadamente social, adaptadas aos recursos das diferentes camadas da população e em ordem à protecção das famílias numerosas.
XI – Que estando neste momento a iniciativa privada especulativa a contribuir com a quase totalidade da construção de fogos nas zonas urbanas, torna-se moralmente imperioso que sejam tomadas as medidas indispensáveis ao controle da especulação que a envolve, para o que muito contribuirá uma actualização adequada da regulamentação dos princípios defendidos na legislação em vigor.
Ao mesmo tempo deve ser dada a justa protecção à iniciativa privada não especulativa (Previdência, cooperativa, construção pelo próprio, etc.).
XII – Que se promova o estudo da habitação económica nos seus diversos planos e se preparem rapidamente os técnicos necessários para a execução das tarefas a empreender.
XIII – Que se leve a efeito uma profunda reorganização da indústria da construção, promovendo a racionalização da produção, tanto nos métodos tradicionais como nos novos processos a introduzir.
XIV – Que se integrem os empreendimentos habitacionais no quadro de um planeamento geral do País.
XV – Finalmente:
Que, no caso de serem aprovados os princípios defendidos, seja criado um gabinete constituído por peritos em habitação, exclusivamente dedicados ao estudo do assunto, no qual seriam aprofundados os temas expostos, o que permitiria estabelecer as bases do enquadramento da habitação no plano do desenvolvimento económico e social do País.
Problemas de base postos pelo estudo da habitação económica (1962)
PEREIRA, Nuno Teotónio. “O problema da habitação e os outros problemas”. Boletim da JUC, jan. 1964.
O PROBLEMA DA HABITAÇÃO E OS OUTROS PROBLEMAS
1 – Para muitos de nós, que temos o privilégio de dispor de casa, em uso exclusivo[1] e ao abrigo da intempérie, o Natal fornece anualmente a oportunidade de espaçados contactos com o mundo dos mal-alojados, que habitam velhos pardieiros nos bairros antigos ou barracas primitivas nos arrabaldes. E nessa ocasião, perante a persistência e até o desenvolvimento bem visível dos bairros de lata,[2] certas interrogações não puderam mais uma vez deixar de ser feitas: porque razão não se resolve esta trágica situação? Porque razão o problema parece até ter tendência para se agravar? Por quanto tempo estarão os pobres ainda sujeitos a estas condições degradantes? E no entanto aquilo que nos é dado observar apenas nos mostra um aspecto restrito da enorme dimensão do problema.
2 – A civilização industrial deu origem ao chamado problema da crise da habitação, que assume aspectos quantitativos provocados pelo surto demográfico e pela deslocação maciça de populações; e aspectos qualitativos por ter tornado possível o aparecimento de altos padrões de vida e o desenvolvimento tecnológico, aumentando assim as exigências de conforto. O problema é agudo, e com tendência para agravar-se, nas regiões sub-desenvolvidas ou em vias de industrialização, e está a atenuar-se (ou mesmo a resolver-se) nos países já desenvolvidos.
Trata-se pois de um mal até certo ponto inevitável da nossa sociedade actual; e a sua persistência, mesmo o seu agravamento, são consequências de um caminhar penoso e desordenado na senda da industrialização. A solução da crise habitacional está assim ligada à marcha de toda a nossa economia: só quando for atingido um determinado grau de desenvolvimento é que será possível atacar a fundo a miséria do nosso habitat e porventura chegar a anular as suas carências quantitativas e qualitativas. E isto pela razão de que os investimentos necessários atingem valores tão volumosos que só poderão ser suportados por uma economia desenvolvida.
Mas estaremos assim condenados a esperar por esse dia ainda tão afastado que não se enxerga, sofrendo o empilhamento crescente de famílias nas zonas urbanas e as condições primitivas de um habitat rural arruinado? Estará assim tão dependente do crescimento económico a melhoria das condições de habitação, tanto no campo como na cidade?
3 – O problema tem de ser encarado através de um prisma diferente: a chave não está exclusivamente no montante dos recursos disponíveis: pelo menos durante alguns decénios, estará na forma como estes forem utilizados e distribuídos os respectivos benefícios.
Na verdade, um país em processo de desenvolvimento não pode consagrar à habitação senão uma pequena parte do seu investimento e, muito provavelmente, os 20% do investimento nacional bruto que temos consagrado à construção de casas nos últimos anos, são considerados, do ponto de vista económico, como excessivos e prejudiciais às urgentes necessidades do investimento directamente reprodutivo.
Por outro lado, verifica-se que “é possível melhorar o alojamento independentemente da melhoria geral do nível de vida; com efeito, em todos os países sub-desenvolvidos, os habitantes sabem construir casas por processos tradicionais, utilizando materiais estritamente locais, e por outro lado, nesses mesmos países, há mão-de-obra desempregada (e sub-empregada). É possível provocar o emprego (ou aumentá-lo) desta mão-de-obra, ao mesmo tempo que a melhoria das técnicas tradicionais através de um certo número de meios relativamente pouco custosos”.[3]
A utilização dos chamados recursos latentes, é considerada, para os países em desenvolvimento, uma exigência fundamental para ajudar a resolver (ou pelo menos não agravar) o problema da habitação.[4] Tais recursos, que ficam desaproveitados, tanto nos empreendimentos lucrativos como nos estatais, abrangem fundamentalmente três modalidades: a construção pelo próprio, a construção em regime de esforço próprio e ajuda mútua (grupos de auto-construção)e a construção através de cooperativas de habitação.
A potencialidade destes mecanismos tem dado as suas provas em diferentes partes do mundo e a adopção de métodos deste tipo, que encontram a sua melhor expressão no quadro das técnicas de Desenvolvimento Comunitário, é instantemente recomendada por toda a parte.
Entre nós, se a construção pelo próprio começa apenas a beneficiar de algum apoio legislativo, a grande massa de energia despendida é dissipada anarquicamente nos milhares de construções clandestinas que, à margem dos regulamentos e da vida urbana, se constroem nos arrabaldes miseráveis das cidades, em vez de ser incorporada organicamente em estruturas urbanas evolutivas mas planificadas. Quanto aos grupos de auto-construção e às cooperativas, a sua actividade é apenas simbólica e muitas vezes fora do verdadeiro espírito que deveria animar a sua actividade. Efectivamente, nem existe legislação adequada, nem se estimulam e orientam certos empreendimentos, nem o clima político-social é propício a este género de iniciativas, que representam, no sector da habitação, “a tendência (para os seres humanos) se associarem com o fim de alcançar objectivos que superam as capacidades e os meios de que podem dispor os indivíduos isoladamente”.[5]
Porque, na realidade, segundo a doutrina da Igreja, “no desenvolvimento das formas de organização da sociedade contemporânea, a ordem realiza-se cada vez mais com o equilíbrio renovado entre a exigência de autónoma e activa colaboração de todos, indivíduos e grupos, e uma acção oportuna de coordenação e orientação da parte do poder político”.[6]
4 – Falámos dos recursos latentes, que não são aproveitados. Mas que dizer daqueles (e são já vultuosos) que têm sido e estão sendo aplicados à habitação? Põe-se aqui um problema de justa distribuição, acerca do qual a doutrina da Igreja também é clara.[7]
Este problema pode exprimir-se em três aspectos: prioridades na atribuição das novas habitações, adopção de limites máximos e compensação de encargos com a habitação entre as várias camadas da população. Qualquer destes pontos tem sido geralmente considerado de grande importância em estudos e reuniões de carácter internacional.
No que respeita ao estabelecimento de uma ordem de prioridades, que defenda os direitos das famílias de fracos recursos mais carecidas de uma casa, a sua necessidade é imperiosa, e deve abranger não só a construção oficial, mas toda a construção de habitações, pelo menos aquela que é objecto de medidas proteccionistas. E esta prioridade será tanto mais acentuada quantos maiores forem os desequilíbrios existentes.
Na mesma perspectiva e com a mesma justificação, se inscrevem as medidas tendentes a limitar ou mesmo a suprimir as chamadas construções de luxo, que mobilizam consideráveis recursos em benefício de muito poucos.[8]
Nesta ordem de preocupações, temos ainda o problema de uma distribuição equitativa dos encargos com a habitação, que pode aliás exceder o âmbito deste sector e ter repercussão no plano nacional.
Com efeito, uma mais equilibrada distribuição dos rendimentos e dos encargos faz hoje parte dos programas de qualquer governo. Mas a sua aplicação revela-se extremamente difícil, exigindo a intervenção de complicados mecanismos tributários de compensação.
É hoje ponto assente[9] que as populações de fracos recursos não podem suportar por si sós os encargos com uma habitação decente; há que preencher a diferença entre a capacidade de pagamento e o custo das construções. Um sistema compensador aparentemente simples poderia deslocar para esta finalidade recursos que se iriam buscar às camadas de rendimentos mais elevados e que seriam aplicados sob a foram de subvenções à construção ou de subsídios de renda. Deste modo se poderia, não só resolver um problema de justa distribuição no sector do alojamento, como atenuar, por via disso, os enormes desequilíbrios existentes.
5 – Tocamos agora um aspecto que, para além de ser dos mais importantes, é certamente o mais flagrantemente injusto, o mais escandalosamente desumano, quando se trata de países de fracos recursos. Referimo-nos ao problema dos terrenos, que por toda a parte neste País, de uma forma ou outra, atesta o egoísmo dos proprietários, a ganância dos especuladores, a impotência ou a conivência das autoridades. Numa vila do Alentejo (este caso é geral) a população empilha-se nas casas enquanto novos casais, que se dispunham a construir uma casita à custa de grandes sacrifícios, não o podem fazer porque da meia dúzia dos proprietários que cercam o aglomerado não há um que esteja disposto a vender por preço razoável os metros quadrados necessários, para não fraccionar a propriedade. Em toda a grande cintura de Lisboa, os tratos de terreno são transaccionados sucessivamente até atingirem o preço compensador (juntamente com manobras e pressões junto das entidades responsáveis pelo planeamento urbano), que na maior parte dos casos já ultrapassa o próprio valor da construção.[10] E por toda a parte as autoridades ou simplesmente se negam a qualquer esforço para vencer a dificuldade, ou quando o fazem deparam com uma legislação retrógrada e insuficiente.
Este problema verdadeiramente basilar, que entre nós constitui certamente o maior obstáculo à realização de certos programas oficiais e a causa principal do contínuo agravamento das rendas nas zonas urbanas, tem sido agitado e referido, mesmo em reuniões de carácter oficial.[11] Mas sucede que os nossos órgãos executivos ou legislativos, mercê certamente dos condicionamentos estruturais a que estão sujeitos, têm sido incapazes de promulgar as medidas necessárias para ao menos atenuar este estado de coisas.
E no entanto, quando o assunto é objecto de discussão, é invocado o direito de propriedade para defender o regime existente. Mas a doutrina da Igreja, mais uma vez é bem clara: o direito de propriedade privada tem uma função social que lhe é intrinsecamente inerente e quando não a desempenha, cessa necessariamente o próprio direito.[12]
Trata-se do problema das mais-valias e de fazer prevalecer o princípio de que, na sua totalidade, não devem ser subtraídas às populações que as produziram.[13] O facto de ser possível defender e legalizar este latrocínio e defendê-lo em nome de um princípio basilar do Direito Natural é bem o retrato de uma sociedade corrupta.
6 – O problema da habitação está assim ligado a outros problemas: são os problemas de uma economia em crise, de uma economia velha. E é preciso que saibamos, quando se nos depara o quadro trágico de um habitat infra-humano, como numa visita aos pobres em dia de Natal, porquê esse problema não tem encontrado sequer um princípio de solução.
Na sua 1ª Mensagem de Natal, Paulo VI falou do problema da fome em termos que não atenuam a gravidade do assunto, antes a põem claramente diante das nossas consciências. Torna-se necessário, diz o Papa, promover uma economia nova, ao serviço dos pobres, para que acabe a fome no Mundo. Para o problema da casa, a solução não pode ser outra, para além de tudo o que seja possível fazer nos estreitos horizontes da nossa sociedade actual. E apetece-nos terminar com uma citação da Pacem in Terris: “Pois, quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão da sua dignidade; nos demais, no dever de reconhecer e respeitar tais direitos”.
- Na cidade de Lisboa, segundo o Inquérito às Condições de Habitação do IX Recenseamento Geral da População (1950), 27,8% das famílias viviam em partes de casa. Não se conhecem ainda os resultados referentes ao Censo de 1960. ↑
- Na cidade de Lisboa, onde o aumento percentual é possivelmente menos elevado do que em alguns concelhos dos arredores, existiam em 1961 5.679 barracas destinadas a habitação, quando em 1950 apenas 4.112 famílias habitavam as chamadas construções provisórias ou não dispunham de habitação. ↑
- G. Blachère: “L’Habitat des pays sous-développés” in Cahiers du Centre Scientifique et Technique du Bâtiment – Paris. ↑
- “A mobilização de todas as iniciativas locais, com vista à construção do maior número possível de habitações, é particularmente importante nos países em vias de desenvolvimento e as possibilidades destes países nesse domínio são consideravelmente maiores do que nos países mais desenvolvidos”, das conclusões do Seminário promovido pelas Nações Unidas em Zagreb, 1961. In Enquêtes sur les habitations et l’établissement des programmes de construction de logements, notamment dans les pays em cours d’industrialisation, nº 62. II. E/Mim. 8, Genève 1962, p. 38 ↑
- Mater et Magistra – cap. II ↑
- Idem ↑
- “Donde se segue que a riqueza económica dum povo não resulta somente da abundância total dos bens, mas também, e mais ainda, da sua real e eficaz distribuição conforme a justiça”. Idem. ↑
- “Uma política que procure a construção do maior número possível de alojamentos, poderá utilmente prever medidas tendentes a reduzir a construção de habitações luxuosas, que não contribuem para o desenvolvimento económico.” Nações Unidas, ob. citada, p. 38. ↑
- “Na maior parte dos países democráticos chegou-se de vez à conclusão que tem de considerar-se normal que no sector da habitação social os poderes públicos devam suportar, de uma maneira ou de outra, uma parte dos encargos de alojamento de uma fracção considerável da população.” L. Wynen, relatório apresentado à Comissão da Habitação Social da U.I.O.F. (in Familles dans le Monde, sept.-déc. 1962). ↑
- É por isto que muitas casas não encontram inquilinos que possam pagar as rendas (só na Amadora há cerca de 1.000 fogos nestas condições), ou então obrigam à instalação de várias famílias na mesma habitação. ↑
- “Não podendo aceitar-se que uma comunidade seja permanentemente privada da melhor utilização do seu terreno urbano, só porque entre ela e esse terreno de que precisa se interpõe um particular que especula com uma valorização resultante afinal de obras feitas por essa mesma comunidade, torna-se indispensável que se ponha em prática uma política eficaz do solo, permitindo obter a tempo os terrenos indispensáveis, nas condições de preço compatíveis com os objectivos sociais dos empreendimentos, e por forma a garantir a respectiva urbanização e a construção dos edifícios complementares” – das Conclusões do 2º Colóquio Nacional do Trabalho, da Organização Corporativa e da Previdência Social – Lisboa, 1962. ↑
- “Um outro ponto de doutrina constantemente proposto pelos Nossos Predecessores é que ao direito de propriedade privada sobre os bens é intrinsecamente inerente uma função social.” – Mater et Magistra, cap. II“O direito de propriedade privada está subordinado ao direito de todos os homens a usar dos bens terrenos, isto é: a fruir do bem-estar que a sociedade de facto lhes pode oferecer. É um instrumento jurídico ao serviço de uma exigência mais profunda do Direito Natural; na ordem prática (nas suas formas concretas) justifica-se na medida em que serve efectivamente essa exigência”. Adérito Sedas Nunes – Princípios de Doutrina Social, 1ª edição, p. 106. ↑
- “… Não pode haver dúvidas nenhumas sobre a circunstância de que entre os vários factores da produção não se encontram certamente os proprietários das áreas que beneficiam de mais-valias: a sua atribuição aos proprietários resulta na subtracção de uma quota parte do rendimento nacional às categorias, quem quer que sejam, que as produziram. É este um fenómeno que numa sociedade bem ordenada não pode ser consentido.” Prof. Pasquale Saraceno – Relatório da Comissão italiana para o Plano – 1963. ↑
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Problemas de política habitacional”. Brotéria. Lisboa: abr. 1966, pp. 478-488.
PROBLEMAS DE POLÍTICA HABITACIONAL
1. Quando há e quando não há uma política de habitação
«Mesmo que um governo não considere a política da habitação como um sector definido e não tome nenhuma decisão especial relativa ao problema no seu todo, estará a praticar, mesmo assim, uma determinada política. Mas essa política será mais o resultado de diversas medidas isoladas do que um programa estruturado. E isto passa-se quando se intervém, por exemplo, na contribuição predial, na remuneração do capital, na taxa de juro, no ordenamento territorial, nos esforços para aumentar ou restringir os investimentos, na política da mão-de-obra, dos salários ou preços, etc.».
Esta simples observação, feita por um grupo de economistas que no ano passado se reuniu em Inglaterra para estudar os aspectos económicos da habitação[1], mostra que uma política da habitação feita do avesso, não orientada em função de uma lógica própria, mas resultante de medidas parcelares relativas a outros sectores, não deixa de ter efeitos que podem ser determinantes em ordem ao agravamento ou à superação da crise habitacional.
Mas não é a isto que se poderá chamar com propriedade uma política de habitação. Nem mesmo quando se verifica a existência de um abundante caudal legislativo ou ainda um vultuoso investimento no sector – porque pode acontecer que os efeitos de uma política de omissão sobrelevem a tudo isso. E, ao contrário, pode admitir-se a existência de uma política, ainda que a produção legislativa seja sucinta e parcos os recursos votados à habitação; ou até se pode inclusivamente dar o caso de a grande maioria das novas habitações se localizar, se construir, se vender, arrendar e ocupar à margem de quaisquer orientações governativas ou de qualquer espécie de planeamento – e mesmo assim, existir uma política – neste caso, a do laissez faire. Mas esta política, para o ser efectivamente, terá de ser intencional, fundamentada e proclamada. Porque, se isto acontecer assim, mas se se disser que a política que se pratica não é esta, mas outra, que visa objectivos sociais, que se enquadra num planeamento global, que postula uma intervenção activa em ordem à solução da crise e critérios de prioridade na utilização dos recursos, etc., etc. – então não se pode dizer que exista uma política de habitação.
Porque, na verdade, uma política pressupõe coerência entre o que se proclama e o que se faz, pressupõe um sistema lógico de relações entre os objectivos propostos e os instrumentos que efectivamente condicionam a actividade do sector. E, se admite a intervenção, implica uma atenta observação da conjuntura e providências oportunas em ordem a corrigir desvios, superar dificuldades ou canalizar recursos. Pressupõe ainda que os instrumentos legislativos, ordenadamente articulados, sejam seguidos na sua aplicação, ajustados à prática, completados ou mesmo substituídos, se é que não foram atingidos os objectivos visados.
E entre nós, qual é a situação, à luz desta problemática? Parece clara: o Plano Intercalar de Fomento inclui entre os seus objectivos, no sector da habitação, a estruturação de uma política habitacional, apta a funcionar no início do próximo plano de Fomento – o que não deixou de suscitar alguma controvérsia, sustentando-se, exactamente, que já temos uma política de habitação. E efectivamente, algo do que se disse atrás, num plano de generalidade, pode aplicar-se ao nosso caso.
Mas tentemos agora abordar o problema de uma forma mais ordenada: quais os tempos em que se desdobra uma política, para ter este nome? Basicamente – e isto para uma qualquer política – haverá pelo menos: a delimitação do objecto; o conhecimento das necessidades; a avaliação e atribuição dos recursos; a fixação dos objectivos; e finalmente a disposição dos instrumentos de execução. Na verdade, uma política precisa pelo menos disto. E precisa ainda de algo mais: o empenho efectivo, a firme determinação de enfrentar, senão de resolver, o problema que é a sua própria razão de ser.
Sem qualquer preocupação de análise sistemática, vejamos alguns aspectos de incontestável interesse relativos aos tópicos atrás indicados, aspectos-chave na definição de uma política de habitação.
2. A delimitação do objecto: novas dimensões
«A história da habitação económica mostra que as primeiras realizações oficiais em matéria de alojamento se dirigiam para determinadas categorias da população, que tinham especiais dificuldades em resolver o seu problema habitacional… Tal concepção, que teve a sua expressão urbanística nos bairros económicos, está hoje francamente ultrapassada pelas necessidades, uma vez que só em Lisboa, por exemplo, quase metade das famílias não dispõe de casa em utilização exclusiva, e carece, portanto, urgentemente, de habitação. Na realidade, o problema, que começou por ser só de certos grupos mais desfavorecidos, atinge hoje praticamente a generalidade da população»[2].
Isto significa que o chamado problema da habitação ganhou uma nova dimensão, o que se compreende facilmente se se pensar que o principal factor que o determina não é o crescimento global da população, mas sim a sua redistribuição no território. E isto, que por vezes no passado foi considerado como uma anomalia do corpo social, acidental e curável – a emigração em massa para as zonas urbanas – não é senão uma consequência inelutável do próprio processo do desenvolvimento: a passagem de grandes massas de população activa do sector primário para a indústria ou para os serviços não se faz normalmente sem deslocações maciças. E esta é uma das razões (juntamente com o aumento dos requisitos de conforto) pelas quais as necessidades de habitação aumentam com o próprio crescimento económico. Daí a característica de saco sem fundo que a crise habitacional apresenta, mesmo nos países que se dispuseram seriamente a debelá-la[3].
É por isso, justamente, que tal crise não se resolve com medidas parcelares ou episódicas, mas com um conjunto de providências inserido no próprio processo do desenvolvimento, numa perspectiva global.
E neste factor radica uma outra nova dimensão: a espacial. Já não é à escala dos pequenos bairros que se pode enfrentar o problema, mas à escala de extensas zonas urbanas. E daí o não ser permitido agora falar de habitação sem falar de urbanismo, tanto mais que, por outro lado, a evolução social se processa no sentido de que «a casa não é uma célula estanque; donde se segue que a noção de alojamento deve abranger não só o núcleo familiar, mas todo o meio envolvente. É o bairro e não a casa, enquanto construção individual, que deve ser a nova unidade…»[4]
Tendo em conta esta nova dimensão, nos diversos aspectos apontados, resulta que o problema da habitação podia antes resolver-se construindo casas, mas agora só o poderá ser construindo cidades. Assim se torna evidente que uma política que pretenda basear-se na construção de casa própria, sobre um lote de terreno situado algures e acessoriamente alguns bairros aqui e ali, é uma política que nem sequer sabe apreender a dimensão do seu próprio objecto.
Em termos de política habitacional, os aspectos focados, que fazem descobrir mais amplas dimensões, não esgotam no entanto a problemática com que uma administração atenta se tem que defrontar, pois há realidades de outra ordem que actuam em sentido restritivo. Um conceito que nos vem da América Latina coloca-nos no centro de uma outra questão: «O problema habitacional é a diferença que existe actualmente entre o valor das habitações existentes e o valor do capital material, social e financeiro disponível para ser investido na habitação».[5]
Isto tem suma importância, porque mostra que as massas populacionais afectadas pela crise do alojamento podem dividir-se em dois grandes grupos: aqueles que teriam recursos para pagar a utilização de uma casa normal, mas que as perturbações que actuam no sector, impedem de satisfazer essa necessidade (especulação com os terrenos, falta de mão-de-obra ou de materiais, carência de capitais, etc.) e aqueles cujos réditos são tão baixos que não teriam essa possibilidade. No1º caso, verifica-se um desequilíbrio entre o poder aquisitivo de uma dada população e uma oferta insuficiente: é o problema habitacional puro; no outro caso, uma situação típica, generalizada a outros sectores das necessidades elementares, de incapacidade de consumo, e que só poderá ser resolvida no âmbito de um processo de desenvolvimento global da população interessada. Em geral, pode dizer-se que os grupos de população já radicados na vida urbana e com rendimentos ao nível da indústria ou dos serviços estão no 1º caso, pertencendo ao outro as populações das regiões agrárias retardadas.
Esta distinção, se não importa a um reconhecimento das necessidades de alojamento em termos absolutos, é da maior importância quando se passa à atribuição dos recursos e sobretudo à escolha dos meios de actuação. Porque, ao confundir-se um problema de habitação com uma situação de subdesenvolvimento, procurando solucionar uma carência parcelar resultante dum quadro de insuficiência global causal, estão a viciar-se os termos do problema do alojamento, alargando-o muito para além dos limites que lhe competem.
3. O conhecimento das necessidades: a realidade que se impõe
O que se disse atrás já pressupõe um certo conhecimento da situação nas suas linhas gerais de evolução. Mas quanto ao conhecimento concreto da realidade? É o momento de passarmos a considerar o nosso quadro de observação nacional, através de uma rápida retrospecção.
No passado recente, duas obras pioneiras de interesse fundamental apareceram: o Inquérito Habitacional na cidade de Lisboa, organizado pelo Dr. Jorge Niny e publicado pela D. G. da Saúde Pública em colaboração com o I.N.E. em 1941; e o Inquérito à Habitação Rural, cujo 1º volume, elaborado pelos Prof. Lima Basto e Henrique de Barros foi publicado em 1943. Foi através destes documentos que se teve pela 1ª vez uma notícia objectiva da situação do habitat no País. Mas, a despeito do quadro trágico que documentavam, a sua influência foi nula: o ideal da casa portuguesa continuou o seu curso, pois, para quem não quisesse ver a realidade relatada, as soluções pareciam ao alcance de uma função assistencial, através de algumas verbas votadas pela administração para a demolição dos bairros de lata de Lisboa e das ilhas do Porto. E estávamos na infância do problema habitacional, muito longe da crise generalizada que a industrialização, então incipiente, iria desencadear.
Foi preciso chegar o ano de 1952 para que uma nova revelação se fizesse sentir um pouco mais: os resultados do 1º Inquérito às Condições de Habitação, realizado pelo I.N.E. quando do Censo de 1950, foram apurados à pressa para apresentação a um congresso internacional que então se reunia entre nós. E ficou a saber-se, nessa altura, por exemplo, que 30% das famílias de Lisboa viviam em barracas ou em partes de casa[6] e que, no conjunto do País, 64% das casas não dispunham de um mínimo de instalações sanitárias.
Este panorama, acentuado em 1960 nos seus aspectos mais críticos, retrata uma situação a uma escala muito maior e em evolução crescente, cuja melhoria já não é possível sem a adopção de medidas de base de um âmbito muito vasto, como agora já se reconhece, até em documentos oficiais.
É neste contexto que aparecem, finalmente, os primeiros estudos sobre a situação do alojamento à escala do País, com a publicação de nada menos do que 5 estimativas das necessidades no espaço de 4 anos, referentes ao deficit carencial existente em 1960, por ocasião do último censo, e que mostram resultados que variam entre 250 000 e 500 000 fogos[7].
A diversidade dos números apresentados denota que os critérios de avaliação e os próprios métodos utilizados não foram idênticos, sem esquecer ainda que os dados disponíveis se prestam em muitos casos a interpretações diversas ou obrigam a formular hipóteses arbitrárias.
O que interessa – isso sim – é que a ordem de grandeza das necessidades não deixe lugar a dúvidas sobre o alcance das medidas que se torna necessário adoptar para que a superação da crise possa ser apontada como uma meta a atingir, ainda que a longo prazo. E ao conhecimento objectivo de alguns aspectos da realidade nacional, como os que foram apontados, não é certamente estranha a circunstância de a Habitação ter sido finalmente incluída no nosso planeamento económico.
Mas se o conhecimento das necessidades carenciais é indispensável para o vigor de uma dada política, o que é verdadeiramente importante em ordem ao estabelecimento de programas de execução e a previsão das necessidades de reposição é a sua tradução espacial, em correlação com planos de ordenamento territorial. Quanto às necessidades carenciais, há que distinguir as de ordem quantitativa, que serão na generalidade resolvidas pela construção de novos fogos, e que afectam sobretudo as zonas de concentração urbana, das de ordem qualitativa, mais características das regiões rurais, e que poderão parcialmente ser satisfeitas através de programas de beneficiação.
4. Os recursos: avaliação, rateio e novas fontes
A avaliação dos recursos que se podem consagrar à habitação entra já na esfera das opções e é inseparável de uma determinada visão dos objectivos a atingir. Por outro lado, supõe ainda uma tomada de posição em face dos mecanismos estruturais existentes.
Em 1º lugar, e feito o balanço dos recursos globais disponíveis, há que considerar, e que decidir, uma ordem de prioridades na aplicação desses recursos, em termos de investimento, mão-de-obra, equipamento, etc., no quadro do desenvolvimento do País. E aqui as opções a fazer são de natureza eminentemente política.
Pondo de lado aspectos especializados de ordem económica e financeira, aliás de importância decisiva nesta matéria, parece útil considerar aqui os recursos potenciais, de feição associativa, que se poderiam obter pela introdução de conceitos ainda desconhecidos na legislação e sobretudo na prática.
É um lugar comum dizer-se que nos países que lutam com falta de meios o aproveitamento integral de todos os recursos se torna imperioso; mas é já também um lugar comum que é justamente nos países de evolução retardada que isso se torna mais difícil, visto que esse aproveitamento depende em certa medida da evolução das mentalidades, do nível geral de educação e da capacidade organizativa da sociedade.
Mas se isto é incontroverso, a experiência tem mostrado que a utilização de certos recursos latentes, sobretudo se não for atrofiada por atitudes autoritárias ou paternalistas, poderá fornecer um contributo adicional ao progresso social da comunidade. É assim, através do exercício de faculdades até então inaproveitadas, que as próprias inibições de base vão sendo superadas, ao mesmo tempo que os problemas concretos são atacados. Por esta razão, os métodos associativos são instantemente recomendados e pode dizer-se que, quase por toda a parte, as cooperativas de habitação desempenham um papel relevante na construção de habitações.
Mas, falando de cooperativas, pergunta-se: que tipo de cooperativas? Aquelas que associam temporariamente uma centena de pretendentes ao acesso à propriedade e que vão buscar à cooperativa um magro suplemento ao capital pessoal de que já dispõem e um apoio técnico e burocrático, como sucede com a generalidade das cooperativas de habitação no nosso País? Não serão estas que poderão ter qualquer peso na resolução da crise do alojamento, como prova o facto de construírem apenas cerca de 300 casas por ano. As cooperativas que poderiam ter um peso decisivo teriam de ser de tipo inteiramente diferente, alicerçadas numa ampla base popular, aproveitando dos seus sócios o sentido de cooperação de que as camadas burguesas não podem normalmente dispor e as pequenas poupanças individuais. Mas cooperativas deste tipo não podem lutar em condições de igualdade com as forças especulativas do mercado livre: precisam do apoio das autoridades no que respeita a aquisição de terrenos e a obtenção de créditos. Mas é precisamente o seu forte cunho popular e a indispensabilidade de uma autogestão que figuram na base dos seus sucessos conhecidos e explicam ao mesmo tempo o seu abandono hic et nunc.
Estas considerações feitas a propósito das cooperativas valem para todos os movimentos afins que se possam inscrever numa linha de promoção social comunitária – a sua vitalidade, e portanto a possibilidade que têm de dar um contributo à superação das carências da população interessada e ao progresso da comunidade mais ampla em que se inserem, são impraticáveis em contextos impregnados de autoritarismo e paternalismo. É por isso que, no quadro actual, experiências nesse sentido têm sido extremamente limitadas, não se vendo forma de superar as contradições apontadas.
Limitado a uma via autoritária de iniciativa e financiamento públicos e a uma via especulativa em que a construção de casas não é um produto industrial mas um objecto de comércio, um país de reduzidos recursos vê-se privado do concurso de uma fonte que poderia fornecer o necessário, quando adequadamente canalizada, para a superação de um processo contínuo de acumulação de deficits.
É verdade que pode argumentar-se com a protecção e o estímulo ao esforço próprio, para cada um construir a sua casa. Mas esta miragem, a ser prosseguida e arvorada em símbolo de toda uma política, produzirá situações graves de diversa ordem, se a sua expressão quantitativa atingir níveis substanciais.
Falando de recursos, e já num plano inteiramente diverso, uma nota é indispensável focar, relacionada aliás com algo que foi dito atrás: nos países em vias de desenvolvimento, se por um lado o aumento do poder de compra da generalidade da população poderia colocá-la em melhores condições para ter acesso a uma casa, por outro verifica-se que o respectivo custo cresce em geral mais rapidamente do que o nível médio dos rendimentos. E isto deve-se não só à variação dos componentes do custo, como ao aumento das exigências quantitativas e qualitativas na habitação, como ainda à maior incidência que os encargos com as infraestruturas e o equipamento vão tendo nesse custo. Desta incapacidade crescente, que contraria, no plano habitacional, os próprios efeitos do crescimento económico, resulta a necessidade de uma política de subsídio, envolvendo uma problemática complexa e que tenderá a traduzir-se em termos de uma redistribuição dos rendimentos.
5. Os objectivos: prioridades a definir
O binómio necessidades-recursos, analisado no quadro do planeamento global à luz de uma linha de opções, define os objectivos a atingir por uma dada política habitacional. Tais objectivos serão colocados a médio e a longo prazo, pois os mecanismos que actuam no domínio do urbanismo e da construção de casas são lentos a movimentar-se.
Alguns pontos interessa realçar aqui.
Em primeiro plano, aparece a questão das prioridades. Se no quadro de uma política nacional de desenvolvimento, se põe uma questão de prioridades – e pode acontecer que, em certas circunstâncias e obedecendo a determinadas perspectivas, a habitação não seja colocada numa 1ª linha – este problema repõe-se dentro do próprio sector na formulação dos objectivos e na atribuição dos recursos.
E aqui, muitas soluções são possíveis: atender em primeiro lugar às mais agudas situações (bairros insalubres, superlotação crítica, etc.) ou obter a maior reprodutividade imediata dos investimentos, atribuindo prioridade aos empreendimentos ligados à implantação de novas indústrias ou a projectos de reorganização agrária; promover a atenuação das carências habitacionais propriamente ditas, com objectivos no interior do próprio sector, ou fazer participar os investimentos em operações de promoção social ou de desenvolvimento económico.
Mas duas coisas parecem sobretudo importantes: harmonizar os critérios de prioridade com os objectivos do planeamento global e subordinar a estes critérios todos os investimentos a realizar no sector, pois todos provêm da parte dos recursos nacionais que é consagrada à habitação.
Outro ponto a referir relaciona-se com funções que cabem validamente a uma política de habitação como instrumento, por exemplo, de uma política de redistribuição dos rendimentos (através de mecanismos fiscais e de subsídios e do controlo das relações encargos-rendas) ou de uma política de desenvolvimento regional.
6. Os meios de execução: pedra de toque de uma política
Numa matéria de si dificilmente controlável, actuando sob a acção de mecanismos raramente bem conhecidos e movendo-se numa trama de interrelações extremamente complexas, o problema dos meios de execução assume a maior importância.
Quer se trate da estrutura técnica, jurídica ou político-social, quer dos quadros humanos indispensáveis a todos os níveis em número e qualificação fortemente crescentes, quer da organização da produção, as carências revelam-se maiores e as barreiras mais difíceis de vencer à medida que se tenta avançar na execução de uma dada política.
Nas circunstâncias actuais, dois problemas assumem particular gravidade – o dos terrenos e o da indústria da construção.
No que respeita à política do solo, trata-se em primeiro lugar – e independentemente da complexidade do problema – de inverter a própria orientação básica: uma política de defesa estreita do direito de propriedade de alguns será substituída por uma política de defesa real do direito à habitação de quase todos, no caso de se pretender debelar a crise habitacional. Neste campo, todas as medidas de compromisso têm um alcance muito limitado: «Com efeito, a experiência tem mostrado que as providências legislativas relativas à utilização do solo no processo de expansão urbana têm-se revelado as mais das vezes insuficientes, obrigando a acertos sucessivos que por vezes atingem o valor de verdadeiras mutações: a adaptabilidade a novas condições dos processos especulativos é bem conhecida, e daí resulta muitas vezes a breve prazo a insuficiência de medidas que tinham sido consideradas decisivas»[8].
No que respeita à indústria da construção, é conhecida nas linhas gerais a sua situação actual. A existência de uma mão-de-obra barata, de que beneficiámos durante anos, representa uma vantagem que tende a desaparecer; a sua contrapartida terá de ser encontrada à custa de uma profunda reorganização da indústria, a qual não se fará sem o apoio de uma política da habitação que atenda às necessidades do processo produtivo. Só a continuidade da procura no mercado da construção poderá tornar viável tal reorganização, que se processará através da introdução de novas técnicas, da reestruturação dos mecanismos administrativos das empresas e da formação intensiva de pessoal qualificado.
É no campo dos meios de execução, dos instrumentos de uma dada política que tal política se revela efectivamente o que é. Pode conhecer-se a extensão dos males, pode fazer-se ainda um diagnóstico correcto, podem apontar-se objectivos vigorosos, podem mesmo ordenar-se em certo sentido determinados recursos – mas tudo isto pode ficar no plano das boas intenções traduzidas em declarações programáticas. Não será preciso esperar pelos frutos da próxima colheita para se ver novamente se a árvore é boa ou má; o Evangelho nos ensina a interpretar certos indícios seguros: a folhagem das figueiras rebenta quando vem próximo o estio. Assim, para os instrumentos de uma política – neste caso uma política de habitação: só quando surgirem poderemos crer que essa política se fará[9].
- Conferência promovida pela Associação Internacional de Ciências Económicas em Ditchley Park, Oxfordshire, Abril de 1965. In Revue Internationale des Sciences Sociales, nº 4/ 1965. ↑
- Relatório do Grupo de Trabalho nº 7 para o Plano Intercalar de Fomento, Lisboa, 1964. ↑
- Parece que a crise habitacional começa a ser resolvida quando o simples crescimento económico se transforma em progresso social. Verifica-se, por exemplo, que nos países de economia de mercado, a viragem coincide com a adopção de medidas socializantes e de métodos de planeamento, enquanto nos países de economia centralizada a solução do problema habitacional caminha a par com um certo processo de liberalização. ↑
- LEWIS MUMFORD – Une Conception Nouvelle du Logement Ouvrier in Revue Internationale du Travail, nº 2/Vol. 75 (Fev. 1957). ↑
- John C. Turner – Recursos habitacionais na América do Sul in Architectural Design, nº 8/1963. ↑
- Segundo novo inquérito realizado em 1960, este número subiu para 41% dos agregados domésticos vivendo nessas condições. ↑
- São os seguintes os trabalhos referidos:
– Eng.º GASTÃO RICOU – II Colóquio Nacional do Trabalho, da Organização Corporativa e da Previdência Social (4ª Secção) – Comunicações / 1962
– RAUL DA SILVA PEREIRA – Problemática da Habitação em Portugal, separata da revista Análise Social / 1963
– Plano Intercalar de Fomento, relatório do Grupo de Trabalho nº 7, citado no Parecer Subsidiário da Câmara Corporativa, in Actas da Câmara Corporativa, nº 82 / 1964
– NELSON MONTES e A. VAZ PINTO – Aspectos do Desenvolvimento da Indústria da Construção em Portugal – O Colóquio da Produtividade na Indústria da Construção, 1964
– HENRIQUE VEIGA DE MACEDO – Comunicação à Assembleia Nacional in Diário das Sessões, nº 169 / 1964 ↑ - Plano Intercalar de Fomento – Relatório do Grupo de Trabalho nº 7 /Habitação, p. 181 ↑
- Cf. Plano Intercalar de Fomento para 1965-1967, Volume I – Lisboa, 1964, pp. 467 a 483
Actas da Câmara Corporativa, nº 82, 17 de Novembro de 1964 – Parecer sobre o Projecto de Plano Intercalar de Fomento – pp. 893 a 900. ↑
O CASAMENTO
Resposta ao inquérito lançado pela revista O Tempo e o Modo, tema central do número 2, 1968
A minha resposta será sobretudo baseada numa realidade pessoal, numa experiência vivida e em convicções próprias.
Projecções possíveis para o futuro, pistas de evolução com base em comportamentos observados nos outros, serão mais da competência de sociólogos, psicólogos, moralistas, etc. Posso exprimir uma interrogação ou aventar uma hipótese, pouco mais.
CONCEITO DE CASAMENTO
No questionário, não aparece uma única vez a palavra amor. É uma palavra gasta, também. Interessa, porém, reabilitá-la, mais do que suprimi-la.
Casamento, fidelidade, sexo, são formas de concretizar, viver o amor. Só através dele têm sentido. Mas importa, então, depurar o conceito que essa palavra implica. Uma das formas de amor mais minimizadas é “o amor de si próprio”. Confunde-se vulgarmente com egoísmo. Ora se alguém por espírito de doação ou sacrifício mal entendido, acaba por se aniquilar, se reduzir a zero como pessoa, deixa de poder oferecer ao outro um ser construtivo, dialogante. Só há relações inter-pessoais quando existem duas pessoas inteiras. Essa, uma das bases fundamentais do casamento. Assim, o casamento é para mim hoje a possibilidade de uma realização pessoal primeiro, para como pessoas realizar cada um com o outro e um pelo outro, a construção de uma comunidade.
NECESSIDADE DO CASAMENTO – (hipótese baseada apenas numa intuição. Há implicações sociais, morais, psicológicas, etc.)
Uma distinção: uma união de homem e mulher pode ser ou não ser institucionalizada; conforme interessa apenas os dois ou se projecta para o futuro implicando outros.
Enquanto vivida como busca, como encontro temporário, como tentativa ou experiência, a união pode não ser institucionalizada (ou não deverá mesmo sê-lo?). Estão apenas comprometidos os dois, não está a sociedade. Trata-se de uma união que não deve implicar responsabilidade perante terceiros. A nossa sociedade não concede lugar a estas uniões e todavia julgo que elas são pedidas a um tempo pela evolução social e pela natureza. Se na adolescência o ser humano está apto para a relação sexual, as condições sociais hoje implicam uma responsabilidade a dois para com os filhos a que só a união indissolúvel pode dar resposta. Porém, essa responsabilidade a dois só é viável na idade adulta, efectuada já a inserção social do homem e da mulher e a sua afirmação como pessoas. Só então elas estão aptas a fazer uma escolha definitiva compatível com a fundação da comunidade familiar.
A institucionalização é então necessária.
Do mesmo modo, no plano religioso, não será que o sacramento matrimonial adquire então, e só então, toda a sua plenitude?
FIDELIDADE
Considero a fidelidade sexual apenas um aspecto da fidelidade global, que é para mim a construção do amor através de situações que se vão sucedendo. Estão sempre em jogo dois valores igualmente importantes: liberdade e responsabilidade. Se nalguns momentos coincidem, não se põe problemas. Mas a maior parte das vezes a noção de responsabilidade está no oposto da liberdade. Há então que optar, como pessoa que se constrói precisamente através dessas opções. Parar, reflectir e tomar o peso de ambos os valores, optando continuamente. Escolher umas vezes a liberdade (que terá sempre de ser responsável), outras a responsabilidade (que deverá sempre ser livremente aceite). Portanto, fidelidade global é uma vivência permanentemente assumida: fiel a si próprio, fiel ao outro, fiel aos outros. Fidelidade não é um conceito que se arruma duma vez para sempre. É algo de fundamental que se vive.
Quanto ao aspecto particular da fidelidade conjugal (entendida só no aspecto sexual) parece-me indispensável para a “construção duma comunidade realizada um com o outro e um pelo outro”.
Quanto aos limites nos modos como se realiza a expressão sexual dentro do casamento, como em tudo, julgo serem apenas as que advêm do recto esclarecimento da consciência de cada um: o que é amor ou o que é egoísmo.
DIVÓRCIO
Até agora a procriação era uma consequência inelutável das relações de um homem com uma mulher, o que significava a indissolubilidade do casamento. A partir de hoje, em que os meios anti-concepcionais passam a estar ao dispor de todos (e por forma a não violentar a natureza nem a destruir a vida) torna-se necessário fazer a distinção já referida, entre união experimental, temporária ou acidental e união conscientemente projectada no futuro, implicando a formação de uma comunidade que ultrapassa o casal. Por isso esta última deve requerer certas condições que permitam reduzir as probabilidades de insucesso: idade francamente adulta e preparação consciente. Nesta perspectiva, em que os filhos não são um acidente nem um facto marginal, mas uma escolha deliberada nascida no âmago da própria união e inseparável dela, a indissolubilidade do casamento não se pode deles dissociar: é a criação duma nova vida, é a responsabilidade livremente assumida para com terceiros, que justifica e exige a indissolubilidade. O filho é um laço que permanece vitalmente e que não pode ser anulado, da união de um homem com uma mulher.
No plano religioso, considerando a ordem sacramental, poderá talvez admitir-se que estando o casamento ordenado também (mas não só) fundamentalmente para a criação de novas vidas, só com elas atingiria a sua total realização. Assim, no momento do compromisso mútuo, o sacramento realizar-se-ia como que em semente, que frutificaria quando uma nova vida nascesse da união, adquirindo assim a sua plenitude e por isso a sua irreversibilidade.
EXPERIÊNCIAS PRÉ-MATRIMONIAIS
Deste conceito de casamento e das condições que ele requer, as chamadas experiências pré-nupciais assumem uma grande importância, se ordenadas normalmente para uma escolha consciente e definitiva. Elas tornar-se-iam a modalidade corrente do namoro, correspondendo a uma aprendizagem e a uma selecção, o que seria de extrema importância numa preparação para o casamento. Na evolução do namoro, desde o que era feito por correspondência e de janela, passando pelo namoro de convívio exterior que é já dos nossos dias, seria esta uma forma mais completa e por isso mais profunda.
No entanto, para se inscreverem realmente numa lista de preparação estas experiências não se limitariam a relações sexuais furtivas: deveriam ter um estatuto reconhecido pelos costumes e supor uma coabitação temporária, não para prefigurarem o casamento, o que seria impossível, mas para um maior conhecimento mútuo.
Esta evolução dos costumes, se possibilita maior liberdade de relações, também implica maior responsabilidade, inserindo-se assim numa linha de progresso social, de liberdade crescente das pessoas e no afrouxamento dos condicionalismos sociais: poderia, ainda, resolver o problema ancestral das relações sexuais dos adolescentes, podendo mesmo prever-se o desaparecimento da prostituição.
Corresponderia ainda à libertação da mulher do fardo da maternidade não desejada, agora possível com a generalização de contraceptivos que não atingem a dignidade humana.
Maria Natália Duarte Silva
O casamento: resposta ao inquérito de «O Tempo e o Modo» (1968)
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Habitações para o maior número”. Colóquio de Urbanismo, Funchal: Câmara Municipal, 1969, pp. 87-100.
Intervenção em colóquio realizado no Funchal, 8 jan. 1969.
Republicado em Arquitectura, nº 110, jul./ago. 1969.
Republicado em Escritos: 1947-1996: selecção. Porto: FAUP Publicações, 1996, pp. 78-97.
HABITAÇÕES PARA O MAIOR NÚMERO
Dimensão e natureza do problema
No processo de crescimento das cidades modernas, a habitação tende a desequilibrar a estrutura urbana tradicional: as zonas de residência aumentam desmesuradamente, desenvolvendo-se em sucessivos anéis ou estendendo-se em tentáculos, cavalgando rapidamente as barreiras administrativas e naturais e deixando para trás sucessivos planos de urbanização, aliás inoperantes.
Lisboa, poe exemplo, cresce hoje mais extramuros do que dentro da cidade, e tenderá a ser assim cada vez mais. Entre os censos de 1950 e 1960, a população de Lisboa-cidade aumentou apenas de 27.000 habitantes, enquanto que a do seu aglomerado suburbano subiu de 188.000[1]. Muito provavelmente, o censo de 1970 revelará que a população deste terá igualado a da própria cidade.
Como estes aglomerados suburbanos não dispõem senão de rudimentares (e por vezes inexistentes) zonas centrais, as cidades são cada vez maiores extensões de casario compacto, imagem materializada da especulação exaustiva do solo. A função habitacional em sentido restrito, isto é, reduzida ao âmbito exclusivo do alojamento familiar e ignorando os equipamentos complementares exigidos pela vida actual, toma uma preponderância patológica, que tanto deforma a estrutura urbana, como impossibilita a criação de um ambiente verdadeiramente citadino.
É nesta perspectiva que se deve enquadrar o problema da habitação para o maior número. Não se trata apenas de uma questão de quantidade; existe um aspecto qualitativo igualmente importante, gerado pela mesma quantidade, e que implica alterações estruturais, impostas pela passagem de uma sociedade de base rural apoiada em centros urbanos a uma sociedade de raiz urbana. A nova dimensão é assim que deve ser entendida.
Quer dizer: para enfrentar o problema da habitação para o maior número, será necessário construir muitas centenas de milhar de casas – aspecto quantitativo; mas, além disto, algo mais será necessário resolver: para quem as construir?; onde as construir?; como as construir? E mais ainda: construir, não somatórios exaustivos de habitações, mas conjuntos urbanos equilibradamente organizados e equipados.
Quem são o maior número
Quem são, como vivem, onde moram, aqueles que constituem o maior número que nos interessa?
Em primeiro lugar, a população mal alojada, em sentido restrito. Quer dizer: os que vivem em condições deficientes quanto às características da célula familiar. São, efectivamente, multidões. Na zona de Lisboa, por exemplo (cidade e aglomerado suburbano) contavam-se em 1960 163.000 famílias que viviam em partes de casa, em fogos superlotados ou em construções improvisadas, isto é, mais de 50% do número total de famílias residentes.[2] Mas as más condições de alojamento não se traduzem apenas em termos de capacidade. Alguns outros indicadores são conhecidos, como os que se referem ao grau de equipamento instalado nas casas de habitação. Com referência ao aglomerado suburbano de Lisboa, em 1960, ainda 39% dos 150 mil agregados domésticos inventariados não dispunham de água canalizada; 29% não tinham esgoto de qualquer natureza; e 34% não estavam ligados à rede eléctrica. Para a zona arrabaldina do Funchal (concelho com exclusão da cidade), as mesmas percentagens eram respectivamente de 76%, 45% e 46%.[3]
Mas estes números apenas entram em linha de conta com as condições de habitação em sentido restrito, pois carências por vezes mais graves são verificadas a outros níveis de observação, à escala do bairro, da unidade de residência, do próprio aglomerado.
Dois problemas se põem sobretudo a esta escala: as deficiências de infraestruturas e de equipamentos urbanos e a marginalidade das populações. Quantas pessoas vivem privadas daquilo que a cidade lhes devia dar no que respeita a transportes, a higiene e conforto, a equipamento escolar, a diversões, etc.? Dos 534.000 habitantes do aglomerado suburbano de Lisboa, para continuarmos com exemplos desta zona-teste do crescimento urbano, quantos disporão de equipamentos de base ao nível dos da capital?
Verifica-se assim uma situação de marginalidade que afecta um número crescente de pessoas, à medida que a imigração urbana se acelera, situação essa resultante da insuficiência dos recursos consagrados pela colectividade às necessidades das populações recém-chegadas, e que tende a acumular situações deficitárias.
Podem muitas famílias dispor de boas condições de habitação quanto ao alojamento restrito, mas as características do habitat envolvente serem extremamente precárias. Podem ainda ter atingido um estatuto socioprofissional relativamente elevado, mas continuarem privados de direitos elementares de cidadania no que se refere às condições efectivas de inserção territorial.
As situações de carência que foram referidas encontram as suas causas na incapacidade da nossa sociedade em criar estruturas urbanas para responder ao fenómeno da deslocação massiva de populações provocado pela passagem de uma sociedade agrária a uma sociedade industrial. Mas esta incapacidade radica-se directamente nas condições económicas da população envolvida neste processo de imigração: quantas famílias terão possibilidade de pagar um alojamento satisfatório inserido numa estrutura urbana adequadamente equipada?
De acordo com estudos realizados para o III Plano de Fomento[4], 90% da população portuguesa não aufere rendimentos suficientes para pagar a renda de uma habitação mínima com características adequadas e, portanto, com maioria de razão, para a adquirir. O desnível entre as necessidades de habitação e os recursos individuais para as satisfazer constitui o cerne do problema habitacional; desnível abrangendo camadas da população cada vez mais vastas, na medida em que é mais acentuado nos meios urbanos sujeitos a uma forte pressão da procura; e desnível ao mesmo tempo crescente, pois têm aumentado mais rapidamente os componentes do custo da habitação (terrenos, urbanização, construção) do que os salários da população carecida.
Este problema é certamente mais grave no Funchal, em comparação com as condições médias verificadas na Metrópole, dado o alto valor dos terrenos aqui praticado, os encargos adicionais que agravam o custo da construção (elevada percentagem de materiais importados) e o relativamente baixo nível dos rendimentos familiares.
Mas um aspecto fundamental deste fenómeno de carência é o seu carácter progressivo. A pressão demográfica nas zonas em processo de urbanização, provocada sobretudo pelo afluxo de populações rurais, é agravada por factores secundários: a redução da dimensão das famílias em meio urbano (e, portanto, a necessidade de mais habitações para uma dada população); a absorção de casas de habitação por actividades do sector terciário; a eliminação constante de residências por motivo de obras de urbanização ou outras; o envelhecimento provocado pela elevação constante dos padrões habitacionais, etc. Num país em vias de desenvolvimento, onde o processo da industrialização está apenas iniciado, este fenómeno não é acidental, mas corresponde a um processo contínuo em permanente aceleração. E quando não é correspondido por uma oferta paralela de novas habitações, a crise do alojamento tende a agravar-se.
Por esta razão, o problema habitacional não pode já hoje referir-se a determinadas categorias da população, chamadas as mais desfavorecidas ou economicamente débeis: a amplitude da crise tem abarcado constantemente novas camadas, e tornou-se hoje um fenómeno colectivo à escala da generalidade da população. Estes dois aspectos do problema – crescimento acelerado das necessidades e alargamento do seu âmbito – impõem uma perspectiva radicalmente diferente da que tem sido habitualmente encarada: perspectiva que supõe esquemas planeados de desenvolvimento urbano. O problema da habitação não pode resolver-se hoje com a construção de alguns bairros, como já não podia resolver-se ontem apenas com a construção de algumas casas. Eis por que o maior número não é uma realidade estática: há que reconhecer o seu dinamismo para o colocar numa perspectiva realista que permita forjar os instrumentos necessários à resolução dos problemas que o concernem.
Efectivamente, se a carência de recursos é um facto, a carência verificada de instrumentos de actuação ainda torna mais limitadas as possibilidades de que se dispõe. Faltam os mecanismos jurídicos indispensáveis à disposição de terrenos em condições adequadas de localização e de custo; faltam os mecanismos financeiros necessários para fazer convergir os capitais em operações programadas de envergadura; faltam as estruturas administrativas conducentes à coordenação dos empreendimentos nos diferentes níveis; faltam os dispositivos que permitam superar as limitações que afectam a indústria da construção, em materiais, mão-de-obra e processos de construção; faltam, enfim, os instrumentos que permitam congregar esforços, fazer convergir recursos, minimizar os encargos.
Seria relativamente fácil mostrar que os estrangulamentos que afectam os nossos programas de habitação resultam antes de mais na falta de instrumentos adequados: a celebrada carência de recursos será apenas uma segunda barreira, que muitas vezes nem sequer é atingida.
Muito esquematicamente, traçaram-se assim alguns contornos desse grupo humano que, do ponto de vista habitacional, constitui o maior número: mal alojados; mantidos à margem do meio urbano que os atraiu; sem recursos para obter uma habitação adequada dentro dos esquemas convencionais. Grupo humano que engrossa permanentemente, com a chegada de ondas migratórias e de novas gerações à idade adulta.
Mas, algo mais: vítima também de estruturas jurídicas e administrativas que constituem obstáculos para a superação das privações a que está sujeito, e cujo carácter artificial torna manifesta a sua invalidade; dos quais o estatuto soberano da propriedade privada do solo para construção é bem a pedra de escândalo.
Construir para o maior número
Das considerações acabadas de fazer, podem extrair-se, com as cautelas que o carácter sumário do método aconselha, alguns critérios que permitam orientar acções ou empreendimentos habitacionais efectivamente dirigidos ao maior número. E à luz desses critérios fazer a seguir alguns comentários à experiência portuguesa neste domínio.
Na realidade, tem sido frequente que os empreendimentos dirigidos exactamente às populações mais mal alojadas sejam implantados em lugares segregados, fora dos circuitos de transportes públicos, desprovidos de equipamento básico. Muitas vezes ainda obedecendo a sistemas de construção precários, sem qualquer possibilidade de melhoria ulterior: os bairros de fibrocimento ou mesmo de tijolo para as chamadas classes pobres ou para os habitantes de barracas são exemplos de uma visão errada na construção para o maior número.
Efectivamente, programas habitacionais dirigidos ao maior número implicam necessariamente uma certa dimensão – o factor quantitativo não pode ser deixado de lado – ou ainda uma pressionante urgência; mas não serão empreendimentos isolados, ainda que vastos ou de emergência, que poderão contribuir para a solução do problema, tal como foi exposto atrás. Tais programas beneficiarão sempre (e talvez de forma precária) uma pequena percentagem das massas de população carecida em ritmo crescente. E podem criar a ilusão (e isto tem acontecido) de que se está a fazer algo para debelar realmente o mal.
Só serão na realidade dirigidas ao maior número as acções que se inscrevam num processo rápido de superação da situação de crise actual, bem como da absorção das necessidades previsíveis em futuro próximo; processo que considere as necessidades de habitação não apenas quanto aos aspectos quantitativos, mas também qualitativos (nível das rendas, inserção urbana, etc.); e que se encaminhe para a maximização dos recursos disponíveis e a minimização dos encargos, inserindo-se numa perspectiva de resolução progressiva.
Segundo os últimos dados conhecidos, referentes a 1967[5], a construção de habitações atingiu nesse ano, depois de uma estagnação nos dois anos anteriores, a cifra de 41.000, muito distante ainda do número médio anual necessário para a eliminação do défice habitacional em 20 anos, que é de 65.000[6], mas mesmo assim um volume jamais atingido no nosso País. Mas, pergunta-se: destes milhares de novas habitações, quantas foram, efectivamente para benefício do maior número, sabendo-se que a percentagem de fogos construídos pelo sector público e, portanto, mais dirigidos às populações necessitadas e mais ordenadamente inseridos (na maioria dos casos) em expansões urbanas planeadas, não deve ter ultrapassado os crónicos 5%? Pois sabe-se como são, em geral, os restantes 95%: ou habitações construídas pelos próprios, disseminadas pelo território, ou casas de rendimento, produto da actividade especulativa nas regiões de maior procura.
Podem, portanto, atingir-se volumes elevados de construção, sem que, necessariamente, se esteja a construir para o maior número. E pode, inversamente, construir-se relativamente pouco (num número inicial), construindo-se para o maior número, desde que, por exemplo, os investimentos sejam concentrados em empreendimentos-piloto de carácter inovador ou aplicados em programas de expansão urbana ordenada ou inseridos em reformas estruturais do sector; concorrendo em qualquer caso para a obtenção de instrumentos técnicos, jurídicos ou administrativos suceptíveis de permitirem um aumento rápido da produção de habitações, no âmbito de um crescimento ordenado das cidades, integrando ao mesmo tempo franjas marginais e recuperando zonas degradadas.
Nesta perspectiva, caberiam, por exemplo: a adopção de regimes legais permitindo a utilização do solo urbano por forma a fazer prevalecer o interesse geral sobre os interesses particulares; a organização de sistemas de financiamento e de locação que reduzissem substancialmente a distância entre os encargos com a habitação e as possibilidades económicas dos utentes; a utilização de métodos de programação, de desenho, de gestão, de execução cada vez mais rápidos, rigorosos e produtivos. Isto quer dizer também que, do ponto de vista do maior número, contam não apenas a quantidade e a qualidade dos empreendimentos, mas o seu efeito multiplicador ou generalizador, num processo em que cada acção deve beneficiar das experiências anteriores e procurar traduzir-se em novas aquisições instrumentais, de alcance cada vez mais amplo. Considerando o plano específico da expansão urbana, só este processo permitirá superar a situação actual, que consiste na chamada acção disciplinadora ou correctiva a que o planeamento tenta obrigar os mecanismos da produção, integrando ao invés estes mesmos mecanismos na expansão ordenada da cidade.
Visando mais directamente o tema geral do Colóquio, que trata do planeamento físico do Funchal, sublinham-se dois aspectos, aliás inter-relacionados, que têm a ver com a problemática da habitação e cuja acuidade aqui salta mais à vista.
Um desses aspectos é a inter-relação das unidades familiares de alojamento; na verdade, o carácter urbano que se considera condição para uma integração citadina não se alcança com a repetição exaustiva de moradias unifamiliares independentes, obedecendo a padrões herdados do habitat rural. Um índice de ocupação do solo compatível com a rentabilidade não só financeira mas social dos recursos investidos em casas e equipamentos implica formas de agrupamento das habitações, sob pena de se criarem condições de habitabilidade e de urbanização precárias. Os requisitos de privacidade, como os de sociabilidade e os de economia, exigem o agrupamento ordenado, que assumirá formas diferentes de acordo com a topografia, a estrutura da propriedade, o sistema de locação, etc. Por outro lado, as funções habitacionais não se satisfazem unicamente entre as quatro paredes de uma casa: a interdependência entre a habitação e os espaços que a envolvem, entre a casa e os equipamentos colectivos é uma característica da estrutura urbana que a evolução social tem acentuado incessantemente. Daí a necessidade da interpenetração de espaços, a dificuldade de demarcar linhas divisórias nítidas. Daí ainda a importância cada vez maior das infra-estruturas e das instalações de interesse geral para a fruição de condições de habitabilidade satisfatórias.
A experiência portuguesa
Ao longo de quase 40 anos de legislação e de realizações, a nossa experiência em matéria habitacional é variada e susceptível de uma apreciação de conjunto, que aliás tem sido feita, nomeadamente nos estudos preparatórios dos últimos planos de fomento.
Além de uma acentuada timidez nas tentativas de alteração estrutural, caracteriza-se sobretudo pela falta de continuidade: as acções empreendidas, algumas de certa amplitude, têm geralmente carácter pontual, não se aproveitando o cabedal de experiências de umas para outras.
Nas considerações que se seguem, procurar-se-á, de uma forma sucinta, passar em revista a experiência nacional, à luz dos critérios antes expostos relativos à construção para o maior número, sendo aliás fácil verificar que muito do potencial que se criou em inovação e experiência não foi depois aproveitado; e que uma boa parte dos recursos investidos, em legislação, iniciativa, estudos, financiamento, etc., não têm sido convergentes, o que se traduz necessariamente numa fraca rentabilidade.
O regime chamado das Casas Económicas, criado em 1933, teve aspectos altamente inovadores – acesso à propriedade, seguro de vida, para além do facto também novo, de se traduzir em empreendimentos programados e realizados.
Mas a sua limitada amplitude é bem patente: em 33 anos de permanente actuação (1934 a 1967), construiram-se em todo o País cerca de 13.500 habitações neste regime, o que dá a modesta média de 400 fogos por ano.
O reforço que a certa altura os capitais da Previdência vieram trazer ao sistema não resultou em aumento do ritmo das construções, pois os financiamentos do Estado, que no período inicial tinham alimentado em exclusivo este regime, foram praticamente reduzidos a zero nos últimos anos. O único passo em frente que esta modalidade registou, ao longo de décadas e realizações de rotina, foi o abandono da moradia unifamiliar e do bairro fechado como soluções tidas por obrigatórias até há bem pouco tempo.
O período do pós-guerra foi prolífero, sobretudo em matéria de legislação. Criaram-se as Casas para Famílias Pobres e as Casas de Renda Económica em 1945, os Casais Agrícolas e as Casas para Pescadores em 1946, as Casas de Renda Limitada em 1947.
As duas primeiras modalidades têm tido uma expressão quantitativa já de maior significado (respectivamente 600 e 500 fogos por ano entre 1949 e 1967) e alargadas a todo o território; as Casas para Famílias Pobres, congregando subsídios do Estado com recursos locais, e as Casas de Renda Económica, investindo importantes capitais da Previdência Social. Quanto aos restantes regimes, o seu alcance tem sido diminuto (Casas para Pescadores), praticamente nulo (Casais Agrícolas) e passageiro (Casas de Renda Limitada). Entre os anos de 1949 e 1960 – pois a partir deste ano a modalidade deixou praticamente de ter aplicação – ainda se construíram em Lisboa cerca de 800 fogos por ano ao abrigo do regime de Renda Limitada, o que mostra a respectiva potencialidade. Verificada, porém, a existência de manobras especulativas, não se quis utilizar contra elas os instrumentos previstos na própria Lei, preferindo-se o abandono puro e simples do sistema. Iniciada sob os melhores auspícios, até com projectos elaborados pelo próprio Município, este regime mostrou a possibilidade de conferir ao investimento de capitais privados na habitação um maior alcance social. Uma nova regulamentação, promulgada em 1958 com o fim de combater a especulação, que impunha até às Câmaras a obrigatoriedade de reservarem para Renda Limitada pelo menos 50% dos lotes vendidos em hasta pública, e na qual se anunciavam medidas drásticas no caso de não se atingirem os objectivos propostos, não teve qualquer aplicação, tendo-se deixado perder uma oportunidade de verificar até que ponto, e partindo da experiência já adquirida, se poderia contar com a rentabilidade social da aplicação de capitais privados na habitação.
Alguns anos antes da proliferação legislativa a que se fez referência, algo se realizou de maior importância com vista a uma política da habitação: a Câmara Municipal de Lisboa, sob o impulso do então Presidente Duarte Pacheco, iniciou uma vasta operação de compra de terrenos em toda a periferia da cidade. Foi esta operação, continuada em anos subsequentes, que tornou possível a realização dos importantes programas habitacionais levados a efeito mais tarde, nomeadamente Alvalade e Olivais; programas do maior significado na experiência portuguesa em matéria de habitação social.
O bairro de Alvalade, inteiramente planeado pelo Município e iniciado por volta de 1947, integrou variados regimes de construção, desde as Casas de Renda Económica financiadas pela Previdência até às Casas de Renda Limitada e de renda livre, e incluindo mesmo uma importante parcela construída por cooperativas de habitação. Os aspectos inovadores desta realização foram numerosos: planeamento do conjunto perfeitamente integrado na cidade e operado sobre terrenos totalmente disponíveis; tecido urbano diversificado, equipamento previsto e executado, convergência de iniciativa e de capitais de variada proveniência.
Como núcleo deste empreendimento, foi construído um conjunto de Casas de Renda Económica, com métodos totalmente inéditos, e que não voltaram a ser utilizados, nem sequer nas obras congéneres dos Olivais: elaboração de projectos-tipo, construção prévia de um grupo experimental, desdobramento da obra em empreitadas de volume industrial (500 fogos), fornecimento em conjunto de certos materiais e elementos da construção, e criação de estaleiros para o seu fabrico.
Nos empreendimentos dos Olivais (Norte e Sul), iniciados em 1960 e agora em conclusão (com excepção dos equipamentos colectivos, ainda praticamente inexistentes), os aspectos inovadores foram dados sobretudo no plano da legislação. Efectivamente, o Decreto-Lei 42 454 fixou rigidamente certas características, por forma a garantir o alcance social do empreendimento, tais como as rendas máximas por categorias, as percentagens de cada uma destas, os valores máximos a atribuir ao custo dos terrenos, etc. No plano da realização, abandonou-se toda a experiência acumulada em Alvalade, embora algo de interesse se tenha ensaiado, como a participação de um maior número de entidades na construção e uma ampla distribuição na encomenda dos projectos. Deve constatar-se, embora, que a crise da construção civil ocorrida na década de 60 apanhou em cheio este empreendimento.
Outra realização que interessa referir é a do programa para a eliminação das chamadas ilhas na cidade do Porto, prevendo a construção de 6 000 fogos em 10 anos, a partir de 1956. Os aspectos inovadores deste empreendimento, caracterizado por austeridade e disciplina por um lado limitativas, mas que permitiram a sua realização integral no prazo estipulado, traduziram-se sobretudo no plano do financiamento (pela conjugação de fontes e regimes muito diversos, incluindo subsídios do Estado e empréstimos da Caixa Geral de Depósitos) e no cumprimento rigoroso dos objectivos.
Alguma coisa interessa ainda referir quanto ao regime de mais recente instituição: os empréstimos da Previdência para a construção, aquisição ou beneficiação de casas, regime criado pela Lei 2 092 em 1958. Este sistema, cuja característica essencial se centra no apoio a particulares (indivíduos, empresas e Casas do Povo), tem mostrado um dinamismo crescente: cerca de 12 000 fogos financiados até 1967, dos quais perto de 10 mil (2 700 em 1967) para a construção ou aquisição de casa própria. Apoiando a iniciativa individual e aproveitando as pequenas poupanças, a utilidade do sistema no conjunto da legislação portuguesa é indiscutível, aí residindo o seu carácter inovador. Mas a falta de critérios selectivos na concessão dos empréstimos está a tornar-se desastrosa no plano da ordenação urbana: concebido para as zonas rurais, contribui de forma crescente para o caos das cinturas urbanas em crescimento. E o que é mais grave, alimenta a especulação e a construção de má qualidade, sobretudo através da modalidade de aquisição em propriedade horizontal, que regista uma subida vertiginosa.
Conservando os méritos do sistema, seria necessário condicionar os empréstimos a mínimos de qualidade urbana, por forma a estimular a construção de conjuntos residenciais bem localizados e organizados e adequadamente equipados. Por outro lado, deveria ser encorajado o agrupamento de Beneficiários da Previdência em cooperativas de habitação, o que está aliás no espírito da própria lei, mas não chegou a ser regulamentado.
As lacunas desta lei são típicas do que se passa com o conjunto da legislação portuguesa em matéria de habitação: a intervenção oficial faz-se por sectores independentes e segundo ângulos de visão parciais e incompletos. A criação do Instituto Nacional da Habitação, insistentemente reclamada nos últimos anos e já prevista nos recentes planos de Fomento, parece condição indispensável para que se ponha em prática uma política urbana, cuja ausência tem permitido a extensão progressiva de males a que cada vez será mais difícil dar remédio. Uma política da habitação que ignore os aspectos ligados à organização do solo nunca poderá servir efectivamente o maior número, ficando condenados todos os investimentos e esforços a uma rentabilidade social bem precária.
Os recursos não aproveitados
Toda a experiência nacional, em matéria de promoção habitacional, que foi sucintamente relatada, ignora sistematicamente os recursos potenciais das populações a alojar. E isto tanto no que se refere a habitações com carácter definitivo, como a construções intencionalmente provisórias, como os bairros de fibrocimento dos anos 40, ou ainda os programas de emergência para os desalojados pelas obras da ponte sobre o Tejo ou as vítimas das cheias de 1967 na região de Lisboa. Mesmo com sumárias condições de habitabilidade, as casas têm sido construídas integralmente pelas entidades promotoras e assim entregues aos moradores, sem qualquer possibilidade de ampliação ou completamento ulteriores.
Em consequência, como se referiu atrás, dadas por um lado as limitações de capitais e de iniciativa das entidades promotoras, e por outro o desnível entre o poder aquisitivo das populações e o custo de uma habitação normal, tudo se conjuga para que os défices habitacionais se mantenham, se é que não aumentam. Verifica-se, por outro lado, que as populações entregues aos seus recursos, têm sido muitas vezes capazes de, pelas próprias mãos, conseguirem precárias habitações que pouco a pouco vão melhorando. Este fenómeno, largamente verificado nas regiões rurais, é particularmente visível na região suburbana de Lisboa, através dos aglomerados de casas abarracadas ou dos bairros chamados clandestinos. Embora muitas das construções efectuadas nestas condições sejam o produto de pequenos industriais-negociantes, uma larga percentagem é obra dos próprios moradores que, tendo encontrado um terreno (normalmente por aluguer e outras vezes por compra) aí improvisam um abrigo que, com o andar dos tempos e a elevação progressiva do nível de vida, vão ampliando e melhorando. Um exemplo deste processo é o Bairro da Liberdade, nas encostas de Monsanto, em Lisboa, que, iniciado como aglomerado de barracas no princípio do século, é hoje uma zona habitacional com características quase de normalidade.
É este capital, produto da iniciativa, dos esforços e das pequenas poupanças de grandes massas de população, e que rapidamente pode atingir valores consideráveis, que urge aproveitar ao máximo, canalizar de forma ordenada e orientar no sentido de uma expansão urbana gradual.
Países de economia subdesenvolvida, ou com défices habitacionais muito grandes, têm precisamente praticado uma política habitacional visando o apoio a este tipo de autoconstrução, logrando através dela, não apenas a edificação massiva de novas habitações, mas a promoção social das populações interessadas, através do enquadramento e da racionalização do seu esforço. Os exemplos mais concludentes encontram-se em países do Norte de África, do Médio Oriente e da América Latina.
Podem encontrar-se algumas razões para a inexistência entre nós de realizações dentro desta via: por um lado, o facto de a crise habitacional se expressar mais através da superlotação de edifícios normais do que da extensão desmesurada de bairros de lata, o que favorece uma imagem do défice bastante benévola em relação à realidade; por outro lado, a nossa legislação revela uma convicção de que a crise será debelada com o novo regime que se põe em vigor, pois desconhece o carácter contínuo e inelutável do processo de urbanização; por outro lado ainda, o espírito do legislador tem sido avesso a soluções que impliquem a aglutinação de forças populares com vista à solução dos seus problemas, preferindo sistematicamente métodos paternalistas ou autoritários.
As realizações levadas a efeito em muitos países e os estudos que sobre os mesmos têm sido feitos mostram que a atitude das entidades públicas, por um lado, e o ponto de aplicação da respectiva contribuição, por outro, têm de ser radicalmente diferentes do que se verifica nos programas de habitação convencionais. A distribuição dos papéis far-se-á consoante aquilo que cada qual pode dar, contribuindo naturalmente os moradores com a construção da célula familiar e as autoridades com o planeamento do conjunto, os terrenos e os equipamentos colectivos. Muitas vezes, o apoio das autoridades vai até ao ponto de fornecer assistência técnica (projectos, técnicas de construção, etc.) e mesmo certos materiais ou elementos da construção (por exemplo, pré-fabricados produzidos em série). Os moradores começam por construir , ou uma célula inicial susceptível de ser aumentada e completada, ou uma construção provisória destinada a ser mais tarde substituída.
Nestas condições, os recursos financeiros e técnicos das entidades públicas podem atingir um número muito maior de famílias do que os programas correntes, e assim contribuir muito mais rapidamente para a atenuação dos défices existentes.
É evidente que estas soluções não evitariam certos problemas de grande dificuldade nas condições e com a legislação actual: aquisição de terrenos (que seriam cedidos a prazo ou alugados aos moradores, e não vendidos), urbanização e equipamento de vastas áreas, planeamento urbanístico, etc. Mas permitiriam integrar no processo de expansão urbana, de forma ordenada e portanto útil, recursos de enorme vulto que têm sido, ou desperdiçados, ou aceites irremediavelmente em condições de impossível recuperação ulterior.
A experiência acumulada noutros países é já muito importante nesta via: mas ela não poderá ser seguida entre nós sem a realização de empreendimentos-piloto; e ainda sem uma mentalidade capaz de trocar a obra acabada, mas para poucos, pelo trabalho sempre imperfeito, mas progressivo, de uma colectividade lançada num empreendimento comum; e capaz sobretudo de rejeitar uma imagem da cidade dividida em fachadas e traseiras, aceitando uma outra onde todos tenham lugar, dentro de esquemas ordenados de desenvolvimento.
As oportunidades para o Funchal
Na perspectiva do que ficou dito – e no que se refere à promoção habitacional feita pelo Município com o concurso activo, tanto de particulares como de entidades públicas – só soluções conjugando recursos de variada proveniência poderão efectivamente contribuir para a resolução do problema habitacional, entendida esta resolução, como não pode deixar de sê-lo, no quadro de um desenvolvimento urbano ordenado.
As condições económicas particularmente desfavoráveis que ocorrem no Funchal só poderão ser vencidas mediante o aproveitamento de todos os recursos disponíveis e a redução possível dos encargos correspondentes. A obtenção de terrenos por preços não sobrecarregados por mais-valias, que nunca devem reverter para benefício de particulares, pois foram criadas pela colectividade; o planeamento de unidades de habitação que reduza os encargos de urbanização e infra-estruturas; a canalização de recursos financeiros de várias fontes para um mesmo empreendimento, incluindo subsídios ou empréstimos; a contribuição da iniciativa e dos pequenos capitais dos próprios moradores; a aplicação de capitais privados em regime lucrativo, mas condicionados a uma certa disciplina; tudo isto são factores que não poderão ser desprezados; e tanto mais quanto mais adversas forem as condições económicas da conjuntura.
A experiência nacional nesta matéria é já rica e variada; nas lacunas que apresenta, exemplos estrangeiros poderão fornecer ensinamentos. Trata-se de fazer render essa experiência e de saber correr o risco da inovação arrojada, para que cada vez mais possa ser enriquecida e aproveitada com melhor resultado.
- Raul da Silva Pereira – Habitação e urbanismo em Portugal, Lisboa, 1966. Edição do autor ↑
- Raul da Silva Pereira – idem. ↑
- Raul da Silva Pereira – Conferência no Colóquio de Urbanismo, Funchal, 1969. ↑
- Trabalhos Preparatórios do III Plano de Fomento – Relatório do Grupo de Trabalho nº 8 – Habitação e Urbanização ↑
- Estatística Industrial, 1967 – Instituto Nacional de Estatística ↑
- Trabalhos Preparatórios do III Plano de Fomento – Relatório citado ↑
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Reflexões sobre a ocupação da Capela do Rato”. Original dactilografado, dez. 1982, 4 p.
Revista Reflexão Cristã, nº 56, 2023 (no prelo)
1. A ocupação da Capela do Rato como manifestação de cristãos contra a Guerra Colonial vem na sequência de uma longa marcha dos católicos portugueses face à ditadura salazarista (ou de alguns católicos, como sustentaram, não sem uma certa razão, os deputados Tenreiro e Casal Ribeiro durante o debate que a Assembleia fascista foi obrigada a fazer acerca da Capela do Rato).
As raízes dessa longa marcha remontam aos primeiros anos quarenta, quando um pequeno número de jovens cristãos amigos de António Sérgio publicava os Cadernos Metanoia, nos quais eram divulgados os ideais franciscanos e o estilo de vida das comunidades cristãs primitivas. Isto enquanto o padre Joaquim Alves Correia era obrigado a partir para o exílio, donde não mais voltaria, com o conivente silêncio dos seus superiores eclesiásticos.
Foi preciso que chegassem as primeiras “eleições” a que a oposição foi autorizada a concorrer – mercê da derrota fascista na II Grande Guerra – para que viesse a público uma tomada de posição inédita e insólita: a do Dr. José Vieira da Luz que, em entrevista ao Diário de Lisboa, se declarava simultaneamente católico e democrata. Estava-se em 1945, isto é, 19 anos após a instauração de uma ditadura implacável.
Pois foram precisos ainda mais 13 anos para que surgissem – como reflexo da viragem provocada pela campanha de Humberto Delgado – os primeiros abaixo-assinados de católicos pondo em causa o regime. Foi aliás este mesmo contexto que provocou a carta do Bispo do Porto a Salazar, numa atitude que o levou ao exílio e que nenhuma solidariedade encontrou da parte dos seus colegas na hierarquia (a ponto de por eles ter sido marginalizado durante a celebração do Concílio Vaticano II).
Este facto e aquele espaço de tempo mostram como Igreja e Ditadura eram unha-com-carne: foram assim necessários nada menos de 32 anos de supressão das liberdades, de censura total, de partido único, de deportações e torturas, para que um punhado de fiéis, meia dúzia de padres e um bispo, iniciassem – e timidamente – a contestação da ditadura.
É assim que a partir de Humberto Delgado (1958), este movimento vai ganhando lentamente adesões, ao mesmo tempo que a participação de católicos em acções contra o salazarismo se radicaliza e diversifica, ultrapassando-se finalmente a fórmula do abaixo-assinado: revoltas da Sé e de Beja, cooperativas Pragma e Confronto, publicação clandestina do “Direito à Informação” (1963/69) e do jornal “Igreja Presente” (1964), furando a censura do governo e a auto-censura da Igreja. Entre outros, padres como Abel Varzim, Adriano Botelho e Costa Pio, perseguidos pela PIDE, marginalizados e até exilados pela hierarquia, não podem ser esquecidos nesta fase.
Mas foi ainda preciso o eclodir da guerra colonial, com a prisão de padres patriotas angolanos e as acções de genocídio contra as populações, foi ainda preciso João XXIII e a sua “Pacem in Terris”, foi preciso o fortalecimento das lutas de estudantes, operários e intelectuais para que o combate contra o colonial-fascismo ganhasse novas camadas de cristãos. Tornava-se assim mais difícil manter completamente obediente e calado o rebanho, perante as cada vez mais gritantes contradições entre a doutrina apregoada e a prática política concreta dos hierarcas da Igreja, de aliança clara ou mal disfarçada com o regime.
É neste contexto que surgem as tomadas de posição de um agora já numeroso grupo de cristãos nas eleições de 1965, de missionários em Moçambique a partir deste mesmo ano e do prior de Belém, padre Felicidade, em 1968/69, a ocupação da igreja de S. Domingos na noite de 31 de Dezembro de 1968 para o 1º de Janeiro de 1969, a acção desassombrada do padre Mário de Oliveira (1970/74), a divulgação sistemática de publicações clandestinas anti-colonialistas (1971/73).
2. A resistência de alguns sectores minoritários da Igreja ao regime, e sobretudo ao prosseguimento da guerra colonial, já vinha assim de há uns anos. Mas a ocupação da Capela do Rato significou uma viragem nessa luta, provocando uma alteração qualitativa. Em primeiro lugar, pela adopção de uma forma de luta aberta, na linha da resistência passiva. Em segundo lugar com a inclusão de acções de agitação preparadas clandestinamente, mediante a colaboração das Brigadas Revolucionárias. Em terceiro lugar, com a abertura do debate na capela expressamente a cristãos e não cristãos, dada a dimensão nacional dos problemas em causa. Finalmente, face ao impacto público conseguido, obrigando o governo a noticiar os acontecimentos na imprensa censurada e a aceitar um debate sobre os mesmos na chamada Assembleia Nacional, imposto por deputados da ala liberal.
Essa alteração foi possível porque o contexto político se tinha modificado substancialmente: morte do velho ditador, evidência cada vez maior da impossibilidade de uma vitória militar nas colónias, crescente condenação internacional, agudização das contradições internas, tanto no seio da ditadura, como no seio da própria Igreja.
3. Perante esta cronologia é oportuno fazer algumas reflexões. E há uma pergunta que logo salta: porquê tudo tão tarde? Porque se fez a ocupação da Capela do Rato quando já iam decorridos 12 anos de guerra colonial? A pergunta tem razão de ser, pois é fácil imaginar que, se acção semelhante tivesse ocorrido alguns anos mais cedo, outro poderia ter sido o curso dos acontecimentos. Face a esta pergunta, algumas pistas de resposta podem ser avançadas.
Em primeiro lugar – quem éramos nós? Donde vínhamos?
Como mero exemplo – que não se pretende generalizar, mas que considero significativo – o meu próprio caso:
– aos 15 anos: dos primeiros inscritos voluntários na Mocidade Portuguesa, logo graduado em alta patente; participante entusiasta num comboio automóvel de abastecimento para a zona franquista no início da guerra civil em Espanha, confraternizando com militares alemães e italianos em Sevilha;
– aos 30 anos: devoto católico, anti-comunista convicto, mas sem querer meter-me em política; preocupado (mas não ocupado) com os problemas sociais; como profissional, ausente das Exposições Gerais de Artes Plásticas, onde muitos colegas militavam na oposição à ditadura. Eu militava antes na conversão da Igreja à Arte Moderna…
Em segundo lugar: a tomada de consciência foi lenta, mas foi possível mercê de influências exteriores de dois tipos.
Por um lado, os acontecimentos políticos: na luta contra o salazarismo, a campanha de Humberto Delgado, embora a ditadura já contasse 32 anos. Na luta anti-colonial, a eclosão das lutas armadas desencadeadas pelos movimentos de libertação: só alguns anos depois é que sectores cristãos, a exemplo do que acontecia com a oposição democrática, começaram a denunciar com clareza o colonialismo; no entanto, ele era bem antigo…
Por outro lado, os contactos com o estrangeiro, onde não se entendia, mesmo em meios católicos, como aqui aceitávamos tão docilmente o salazarismo, e sobretudo a guerra colonial. Jovens padres, que regressavam de estudos lá fora, ou dirigentes da Acção Católica, que participavam em reuniões internacionais, ou ainda a leitura da imprensa católica estrangeira mais aberta aos valores evangélicos, muito contribuíram para essa lenta evolução. À minha conta, muito fiquei a dever à leitura do semanário “Témoignage Chrétien” que assinei durante uns dez anos, que cobriram todo o período da descolonização francesa e sobretudo da guerra da Argélia, que sectores católicos franceses denunciaram com coragem.
Em terceiro lugar: a constante vigilância montada pelo aparelho eclesiástico, desencorajando, reprimindo, depurando, censurando – numa acção que prolongava e desdobrava a PIDE e os outros órgãos de repressão do regime. Desde o exílio puro e simples para o estrangeiro de padres considerados incómodos, até à sua nomeação para lugares isolados da província e à suspensão de ordens, passando pela oferta de bolsas de estudo fora do país (“pois eram inteligências que se estavam aqui a perder”) – tudo isto e muito mais foi feito.
4. A ocupação da Capela do Rato foi uma acção de massas na linha da não-violência, assumindo a forma mais típica das lutas dos cristãos contra a opressão, e que no nosso tempo tem conhecido um grande desenvolvimento em muitos países. E aqui pergunta-se: porque não houve mais, e mais cedo, com idêntica projecção? As razões também serão várias; apontam-se algumas.
Primeiro, era necessário que se ultrapassasse a dimensão do pequeno grupo ultra-minoritário e disperso, à base de intelectuais e sem qualquer inserção institucional. Face a esta limitação, havia o receio da repressão que uma acção aberta provocaria, privilegiando-se então a luta clandestina no domínio da informação e da consciencialização – tarefa aliás indispensável para que a corrente engrossasse. Era no entanto infundado aquele receio, pois ignorava a situação de privilégio a que os católicos, enquanto tais, gozavam face à repressão, sobretudo os de diploma universitário ou ligados a famílias conhecidas da burguesia – como era o caso da maioria dos que se opunham ao regime.
Entretanto, à medida que o número aumentava, outra dificuldade aparecia: a generalidade dos que se iam radicalizando, ia do mesmo passo desdenhando das formas de luta não-violenta, propugnando (o que só poucos aliás praticaram) a luta armada, numa visão incorrecta porque exclusiva.
Finalmente, o processo de radicalização política fazia com que muitos se afastassem da Igreja (ou pelo menos de uma prática intensiva) – ou por decisão própria, ou porque a tal eram compelidos pelo aparelho eclesiástico – afrouxando assim os laços com a massa praticante.
Chegou-se assim a um paradoxo: os mais convictamente não-violentos tinham medo da repressão e por isso não arriscavam participar em acções abertas; os que estavam dispostos a arriscar (e muitos arriscaram mesmo) ou desdenhavam da não-violência ou já estavam demasiado desligados do meio católico para aí desenvolverem uma acção eficaz.
Na ocupação da Capela do Rato foi possível pela primeira vez superar estas contradições. E o seu êxito ficou a provar que os católicos só muito tardiamente foram capazes de utilizar uma forma de luta que o regime temia (e com razão) e a que foi poupado durante anos e anos.
5. A intensificação da luta anti-colonial por parte de alguns sectores católicos, de que é exemplo a ocupação da Capela do Rato, e que conheceu desenvolvimentos posteriores, foi o resultado de uma opção estratégica de que os acontecimentos se encarregaram de comprovar a justeza: a de que a derrota da guerra movida contra os movimentos de libertação pelo poder colonial-fascista acarretaria inevitavelmente a sua queda. Parecendo hoje óbvia esta opção, ela não o era na altura, havendo sectores que sustentavam que se tornava necessário primeiro derrubar o regime para depois acabar com a guerra colonial. Sem de modo algum diminuir o valor da luta directa contra o fascismo travada por diferentes sectores da oposição ao regime, parece correcto, à luz da História a que pertence já o caso da Capela do Rato, assinalar esta facto.
Pereira, Nuno Teotónio. “Optimizar o parque habitacional”. Original com notas manuscritas, 1985, 9 p.
Notas para intervenção em debate no Centro de Reflexão Cristã, mar. 1985
OPTIMIZAR O PARQUE HABITACIONAL
A situação actual em termos de carências, quantitativas e qualitativas, deve fazer colocar como prioridade a optimização do parque habitacional existente.
É evidente que, para a superação da crise, a construção nova não pode ser abandonada, terá mesmo de ser incentivada e orientada. Mas a prioridade à optimização do parque habitacional impõe-se:
a) porque os seus efeitos sobre as carências são muitíssimo mais rápidos. Veja-se o nosso esforço que não atinge os 40.000 fogos/ano. Para absorver o déficit num horizonte de 20 ou 30 anos, será preciso atingir os 70 ou 80 mil fogos/ano – uma política concertada sobre o parque existente pode abranger em poucos anos muitas dezenas de milhar de fogos;
b) porque as necessidades de investimento são muitíssimo mais reduzidas. E sabe-se como os encargos de financiamento pesam enormemente sobre o custo final da habitação. E ainda porque o capital não necessita de ser concentrado para esses investimentos: ele seria muito mais directamente canalizado das pequenas poupanças para o investimento;
c) porque os encargos com terrenos e com infraestruturas, que também pesam enormemente, seriam praticamente anulados – e com eles os custos económicos e sociais da expansão urbana, que são pesadíssimos, sobretudo nas grandes cidades (periferias, transportes, equipamentos, etc.);
d) energia, etc.
Potenciar o parque habitacional.
– Uma nova realidade: os interesses comuns superam hoje os interesses antagónicos;
– a antinomia inquilino/senhorio está ultrapassada e não pode ser resposta em termos significativos: o aumento de rendas social e economicamente compatíveis não chegará para ressarcir os senhorios; e sobretudo: não chegará para acudir às despesas de manutenção do imóvel;
– os interesses comuns: ambos estão interessados na conservação (e até os inquilinos mais do que os senhorios): daí que tenha de ser criado um mecanismo susceptível de integrar essa realidade;
– co-propriedade?
– hoje é ao nível do prédio que as soluções têm de ser encontradas, como na produção é ao nível da empresa;
– a lei das rendas ignora isto, pretende irrealisticamente “repor as coisas no seu lugar”; 50 anos de congelamento + crise económica não o permitem;
– os inquilinos, após muitos anos de benfeitorias interiores, vêem agora as casas a cair de velhas, os desmoronamentos são cada vez mais frequentes, o próprio estatuto social é atingido.
1. Definir com clareza, por zonas, o destino dos prédios:
a) aqueles onde é possível uma reconstrução, com demolição (permitindo aumento de volume ou não);
b) os restantes, onde não será permitido qualquer aumento de volume.
2. Nas zonas b), mecanismos de entendimento senhorio/inquilinos, para comparticipação nos encargos de manutenção, vinculando para esse efeito parte do aumento das rendas e até nos encargos de gestão. Neste caso passa a haver interesses comuns: evitar a degradação do património.
Caracterizar a situação actual de bloqueio total, maximizando o sub-aproveitamento do parque, com exemplos: pessoas sós ou idosos; pessoas com emprego na província (ou nas capitais) e medo de perderem a casa primitiva; sobre-ocupação…
Mecanismos de mobilidade do parque habitacional
– evitar casas sub-ocupadas ou desocupadas
– arrendamentos temporários (por exemplo para quem vive um período fora de casa)
– incentivos, garantias…
Conjunto de medidas concertadas, tendo como objectivo claramente visado a optimização do parque habitacional
1. Preservação do parque habitacional – física e funcional
Evitar a ruína, suster a degradação, reduzir as demolições fundamentalmente a situações de patologia construtiva incurável. Suster a destruição. Quebrar as expectativas pela demarcação de zonas onde [não será possível] o aumento de volume.
2. Mobilidade do parque habitacional
Casas sub-ocupadas versus sobre-ocupadas.
Casas fechadas (arrendamentos e sub-arrendamentos temporários – pelos proprietários / pelos inquilinos).
Política de incentivos e de garantias de reocupação.
3. Recuperação física e funcional do parque habitacional
Conservação + beneficiação.
4. Rentabilização do espaço
a) do espaço existente: subdivisão de fogos grandes
b) aproveitamento do terreno: aumento de andares versus demolição
5. Utilização rápida das casas recém-construídas
O regime jurídico de arrendamento está em crise
– daí o ser impossível ou improvável a recuperação em termos de promoção;
– daí também a necessidade de liquidar, cautelosamente, esse regime no parque existente. Como?
– Qualquer coisa do tipo de os senhorios serem indemnizados, ficando o prédio em co-propriedade, mediante regimes de transição; o regime de financiamento desta operação suporia:
a) uma certa actualização das rendas;
b) a canalização de uma parte das rendas para indemnização ao senhorio;
c) a canalização de outra parte para obras de manutenção.
– Haveria que ser exercida uma certa tutela durante o regime de transição (por exemplo, os Serviços Municipais de Habitação, que poderiam ser desdobrados ao nível de freguesia nas cidades centrais).
– Findo o período de transição, o prédio ficaria em co-propriedade (condomínio) plano, com a liquidação da indemnização ao senhorio.
Análise breve da evolução e causas da crise
Quanto à promoção estatal
– promoção descentralizada, mas planificada em Lisboa: Previdência, G.T.H., C.E.
– concentração marcelista no F.F.H. (gigantismo dos órgãos e operações)
– o relâmpago SAAL / o PRID / o apoio às cooperativas
– desmantelamento do F.F.H. em vez da sua reconversão
– o apoio exclusivo e indiscriminado à promoção privada lucrativa
– a fúria da privatização lucrativa (distinguir)
Agora: iniciativas em várias direcções, mas desconexas. Um exemplo é a lei das rendas.
Falta uma política global e integrada.
Objectivos simultâneos laterais:
– dinamizar a indústria da construção nos vários graus de dimensão
– desemprego
– ambiente, qualidade de vida (planeamento)
– defesa do património, imagem da cidade e da habitação nos próprios locais.
Final
Os adversários desta política são poderosos e estão muito bem organizados: os grandes empreiteiros, os negociantes de terrenos, têm dirigido toda a política urbana dos últimos anos.
A lei das rendas inverteu os objectivos: o aumento do rendimento dos senhorios não vai resolver os problemas de fundo: é um objectivo vago e sem horizontes. O que devem ser os verdadeiros objectivos são contemplados com disposições laterais e complementares.
PEREIRA, Nuno Teotónio. “O longo caminho até à Capela do Rato”. Original dactilografado, 30 dez. 1992, 6 p. Não publicado.
A ocupação da capela do Rato não foi um acontecimento isolado: só foi possível porque se inseriu num processo de tomada de consciência cada vez mais alargado e que foi promovendo iniciativas e encontrando formas organizativas adaptadas às circunstâncias e às capacidades do movimento que entretanto se ia desenvolvendo e ramificando.
1. Este movimento teve alguns profetas:
– O padre Joaquim Alves Correia, autor da “Largueza do reino de Deus”, dos Missionários do Espírito Santo, exilado pelos seus superiores para os Estados Unidos na década de 40. Viveu aí na solidão e na pobreza, vindo a morrer no exílio.
– O padre Manuel Rocha, assistente da LOC, apóstolo do movimento operário, colaborador do jornal “O Trabalhador” – órgão da LOC silenciado pelo Governo anos depois sem nenhum protesto da Hierarquia. Também exilado para os Estados Unidos pelo cardeal Cerejeira no início da década de 50, foi pastorear uma paróquia de luso-americanos na cidade de Ludlow, no Massachusetts.
– O padre Abel Varzim, também assistente da LOC e companheiro de Manuel Rocha em Lovaina, onde tomaram ambos contacto com o movimento jocista, e antigo deputado à Assembleia Nacional indicado pela Igreja, como era habitual. Rapidamente se tornou numa pessoa suspeita para o regime, por ter promovido um aviso prévio que ficou célebre sobre a miséria imerecida dos operários. Ouvi uma vez meu Tio, Pedro Theotónio Pereira, que foi ministro de Salazar, tratá-lo de comunista. Director de “O Trabalhador” e depois pároco da Encarnação, em Lisboa, onde desenvolveu uma obra social notável, acabou por ser também ele desterrado pelo cardeal para a sua aldeia natal de Cristelo, perto de Barcelos, onde morreu.
Eram todos vozes incómodas para a ditadura, e por estes casos se vê que a repressão na Igreja não era exercida directamente pelo Estado, mas pelas autoridades eclesiásticas. E assim foi sendo.
Também pode ser apontado um pequeno movimento percursor – a Metanoia – impulsionado por João Sá da Costa e Fernando Ferreira da Costa, discípulos de António Sérgio que procurava, sob inspiração franciscana, viver o Evangelho. Editava uns pequenos cadernos.
Há também um profeta leigo, José Vieira da Luz, que na campanha eleitoral de 1945, a primeira em que foi admitida pelo Estado Novo uma temporária liberdade de Imprensa, declarava ao “Diário de Lisboa” que era católico e democrata – coisa nunca vista até então.
2. Pode dizer-se que o movimento teve início após a campanha eleitoral de Humberto Delgado em 1958, com uma carta datada de Maio às “Novidades”, órgão oficioso da Igreja, protestando contra a parcialidade do jornal face às eleições.
Logo em Julho sai a carta do bispo do Porto, António Ferreira Gomes, a Salazar, marcando as suas distâncias em relação ao regime e colocando questões de ordem política e social que deixaram o ditador furioso, a ponto de não o deixar regressar ao País, quando mais tarde se deslocou ao estrangeiro. Essa carta foi distribuída pelo bispo a alguns amigos, que logo a puseram a circular.
Em 1959 dois documentos redigidos por Francisco Lino Neto continuaram a série de abaixo-assinados. O primeiro, intitulado “As relações entre o Estado e a Igreja e a liberdade dos católicos”, foi assinado por 43 pessoas, onde se contavam seis padres: Abel Varzim, Adriano Botelho (desterrado depois pelo cardeal para a Patagónia, onde esteve dois anos e nomeado a seguir pároco de S. João de Brito), António Jorge Martins (anos mais tarde mandado estudar para Estrasburgo), César Teixeira da Fonte (exilado da Madeira por ter apoiado um movimento de protesto dos agricultores), João Perestrelo de Vasconcelos, pároco do arsenal do Alfeite, e José da Costa Pio.
O outro documento era uma carta enviada a Salazar sobre os serviços de repressão do regime, apelando à sua consciência de católico. Nela se relatavam com documentos casos de tortura e de assassinato de presos políticos. Era assinado por 45 pessoas, entre as quais os mesmos seis padres. Não teve qualquer resposta.
Cópias destes documentos foram entregues pessoalmente por uma delegação dos subscritores ao cardeal Cerejeira. Este, como era seu costume, dissertou sobre variadíssimos assuntos, contando histórias do seu relacionamento com Salazar e afirmando a independência da Igreja , mas evitou tocar no teor dos documentos. No final, advertiu os presentes de que “não deviam deitar mais achas para a fogueira” e deviam ter cuidado nos seus procedimentos, pois tinham famílias a seu cargo e carreiras a defender.
3. Nos anos seguintes, o movimento alarga-se e diversifica-se, com a chegada de novas gerações.
Os católicos estavam habituados a reunirem-se apenas entre si, nas actividades paroquiais, nos retiros espirituais, nas equipas de casais, nos cursos de cristandade e nos movimentos da Acção Católica. Até no campo artístico criaram um grupo próprio, de vanguarda, chamado Movimento de Renovação da Arte Religiosa.
Contrariando este hábito, são então lançadas pontes pelo Movimento para outros sectores da Sociedade:
– para o movimento operário e sindical, com João Gomes, Manuel Bidarra, Fernando Abreu e Manuel Lopes;
– para o movimento estudantil, com Vítor Wengorovius;
– para o movimento cooperativo, com Edmundo de Jesus Costa;
– para o meio cultural e intelectual, com António Alçada Baptista, João Benard da Costa, Nuno Bragança e Nuno Portas;
– para o meio universitário, com Luís Filipe Lindley Cintra e Francisco Pereira de Moura (mais tarde).
Também se estabeleceram laços com o movimento ecuménico, através do bispo D. Luís Pereira, da Igreja Lusitana, e o pastor Dimas de Almeida da Igreja Presbiteriana.
A leitura assídua de jornais e revistas estrangeiros, especialmente franceses, torna-se um alimento especialmente importante. “Esprit”, de Jean-Marie Domenach, “La Lettre”, “Témoignage Chrétien”, “Informations Catholiques Internationales” e mais tarde “Cuadernos para el Diálogo” e “Concilium”, fazem-nos respirar ao ritmo das correntes que animam a renovação da Igreja.
A Livraria Moraes, de Alçada Baptista, edita livros de actualidade religiosa e torna-se um centro de encontro entre católicos e outros sectores da sociedade, animado pela revista “O Tempo e o Modo”, que desempenha um papel fulcral na vida cultural do país.
Sob a inspiração de João XXIII e em pleno Concílio Vaticano II, o início dos anos 60 é uma época plena de iniciativas.
Nasce em 1963 o “Direito à Informação”, caderno policopiado clandestino, em que trabalham, entre outros, Ana Vicente, Maria Vitória Vaz Patto, Conceição Neuparth e Maria Natália Teotónio Pereira.
Surge a cooperativa Pragma em 1964, no 1º aniversário da encíclica “Pacem in Terris”, constituída legalmente ao abrigo de um decreto da 1ª República, ainda não revogado pelo Estado Novo, em que se permitia a livre organização de cooperativas,as quais, ao contrário das restantes associações, não tinham de ter os seus órgãos sociais aprovados pelo Governo. A Pragma, dotada de sede própria na rua da Glória, interliga as várias componentes do Movimento e alarga as suas actividades ao exterior do mundo católico, promovendo sessões de divulgação e debate, exposições temáticas e actividades de formação, inclusivamente para jovens. É assaltada e encerrada pela Pide em 1967. Nela militam, para além de activistas já conhecidos, Mário Murteira e Eduardo Veloso, bem como jovens, entre os quais se recordam Cesário Borga e Vítor Constâncio.
São entretanto realizados congressos da JUC e da JOC, alvo de restrições por parte do regime ou mesmo de distanciamento por parte das autoridades religiosas.
4. Com a revolta do 4 de Fevereiro de 1961 em Luanda é iniciada a Guerra Colonial, entretanto alargada em 1963 e 64 à Guiné e a Moçambique e que só terminaria após o 25 de Abril.
A prisão e o desterro para Portugal de nove padres angolanos patriotas, que ficaram com residência fixa em seminários e casas religiosas, pôs em contacto os meios católicos mais inquietos com testemunhos discretos mas eloquentes das injustiças do sistema colonial com as aspirações às independências dos povos ultramarinos.
Foi chocante o ostracismo a que estes Sacerdotes foram condenados pelas autoridades da Igreja e isto avivou em muitos a urgência da luta contra o regime. Recordam-se os seus nomes, publicados no “Direito à Informação”: Franklim da Costa, hoje arcebispo do Lubango; Alexandre Nascimento, hoje cardeal de Luanda; Vicente Rafael; Domingos; Manuel Joaquim das Neves, organizador da revolta do 4 de Fevereiro, e que morreu em Braga, sendo enterrado em segredo durante a noite; Alfredo Osório Gaspar; Martinho Samba; Lino Guimarães, que obteve mais tarde permissão para voltar a Angola, tendo sido assassinado no mato; Joaquim Pinto de Andrade, preso por várias vezes, exilado na ilha do Príncipe, novamente preso, julgado e condenado em Portugal, laureado há pouco com o Prémio Pax Christi Internacional.
5. O Movimento alargara-se entretanto a alguns pontos do País, especialmente à cidade do Porto, onde um núcleo cada vez mais numeroso e combativo colaborava nas diferentes actividades. Em 1965 é divulgado nesta cidade um documento assinado por 54 universitários católicos: “Quando os Direitos da Pessoa Humana estão em Jogo”.
Alguns dominicanos, entre os quais Bento Domingues, apoiam algumas iniciativas e constituem um grupo que há-de estar sempre presente e activo até ao 25 de Abril.
Também em 1965, por ocasião das eleições para a Assembleia Nacional a que concorre a Oposição, é lançado o Manifesto dos 101, cobrindo todos os sectores sociais, no qual é contestada a política do Governo e são denunciadas as práticas da Polícia política e da Censura. Por ser de clara intervenção política, no número de subscritores não entram Sacerdotes.
Ainda em 1965, Paulo VI faz uma viagem à União indiana, país que tinha ocupado Goa em 1961. Salazar impõe um total silêncio acerca desta visita à Imprensa e à própria Igreja, que cumpre docilmente a proibição. Uma equipa faz imprimir um jornal em Madrid, intitulado “Igreja Presente”, que é passado clandestinamente na fronteira do Caia e depois distribuído à saída das missas do dia 8 de Dezembro, desde o Porto até ao Algarve. Eduardo Veloso, João Correia Rebelo, João José Malato e Manuel Tierno Bagulho são alguns dos elementos que participam na operação, para além de muitos outros.
Anteriormente um grupo ligado ao Movimento tinha-se deslocado a Madrid, onde participou num Encontro com católicos anti-franquistas realizado num convento da capital espanhola. Este encontro iniciou uma colaboração que perdurou até ao 25 de Abril.
Mais tarde, em 1967, é a vez de Paulo VI fazer uma viagem a Fátima, na qual pretendia restabelecer as boas relações com Portugal. Com grande mágoa nossa, refere-se num discurso ao “Portugal d’Aquém e d’Além Mar”. É-lhe entregue, através de um secretário, um documento pondo em causa a cumplicidade entre a Igreja e o Estado em Portugal, subscrito por elementos responsáveis de vários movimentos, incluindo a Acção Católica. Como condição colocada por alguns dos signatários esse documento não é divulgado, nem sequer em círculos restritos. A única cópia existente foi apreendida em minha casa pela Pide numa das suas rusgas.
6. Em 1968 dá-se a contestação à guerra desencadeada pelo padre Felicidade Alves na paróquia de Belém, que leva ao seu afastamento. O ano é fértil em acontecimentos , como o Maio de 68 em França e o desaparecimento de Salazar da vida política. A guerra do Vietname, como antes na Argélia, faz explodir as contradições no mundo ocidental.
No último dia do ano, depois da missa pela paz celebrada pelo cardeal Cerejeira, um grupo numeroso decide permanecer na igreja de S. Domingos, em vigília de reflexão acerca da guerra. O cardeal, informado por uma delegação no próprio momento, mostra a sua contrariedade, mas não tem outro remédio senão conformar-se com a decisão do grupo; mas encarrega o pároco, padre Asseca, de controlar os acontecimentos, o que este não consegue, apesar de toda a obstrução feita. Sophia de Melo Breyner tinha composto um poema especialmente para a ocasião intitulado “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, e que foi musicado para ser cantado pela assembleia. Ao longo da noite foram dados testemunhos e fornecidas informações sobre a guerra nas colónias. O grupo sai da igreja às 6 da manhã, já sob os olhos da Pide que sabiamente, se absteve de intervir. Uma nota do Patriarcado condenava daí a dias a ocorrência. Perdeu-se ou foi apreendida uma gravação de toda a vigília.
Em 1 de Fevereiro de 1969 sai o primeiro número dos Cadernos GEDOC, que se publica até ao ano seguinte. Os seus responsáveis são detidos e julgados mais tarde (1973) em Tribunal Plenário, sendo absolvidos.
No final do ano realizam-se eleições para a Assembleia, as primeiras da era marcelista. A oposição concorreu com muito maior força e organização do que anteriormente, embora tenha sido vencida pela viciação dos cadernos eleitorais e da contagem dos votos, como era habitual.
Apesar de ser proibido tocar no problema colonial durante as sessões de propaganda e na Imprensa, alargava-se a tomada de consciência face às guerras de África, onde era patente a impossibilidade de uma solução militar favorável ao regime.
O Movimento alarga-se, ramifica-se e consolida-se. Na aldeia distante de Macieira da Lixa, o padre Mário de Oliveira inicia uma denúncia da guerra face aos princípios do Evangelho, numa acção extremamente corajosa que o há-de levar várias vezes à prisão e a julgamento.
7. Em 1970, em resultado do estreitamento [de relações] com as correntes da Oposição, é constituída a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, ao abrigo de uma disposição esquecida do Código Civil para situações de emergência ou calamidade nacional. Os cristãos formam o núcleo central da Comissão, assegurando a presença de socialistas, comunistas pró-soviéticos e maoístas, que se guerreavam na cena política. Dela fazem parte 48 pessoas de todas as correntes de opinião, entre as quais os padres Agostinho Jardim Gonçalves, José Augusto Pereira Neto, Abílio Tavares Cardoso, Bento Domingues, Bernardo Domingues, José da Felicidade Alves, Marcos Valentim Vilar e Martinho Franco de Carvalho, alem do pastor Dimas de Almeida.
Nunca tendo sido reconhecida a sua legalidade, e sendo objecto de obstrução as suas actividades públicas, a Comissão pôde desenvolver um importante trabalho de solidariedade até ao 25 de Abril, publicando boletins periódicos que circulavam de mão-em-mão e concretizando acções de ajuda aos presos e suas famílias.
Organizavam-se entretanto, todos os 3ºs sábados de cada mês, celebrações e convívios numa casa religiosa junto ao Campo Pequeno, procurando alargar o número de participantes e trocar informações e testemunhos. As viagens de contacto alargavam-se a todo o País e estabelecem-e ligações com o estrangeiro, nomeadamente com o Angola Comité, sediado em Amsterdão, que era o centro de toda a actividade contra o colonialismo português. Paul Staal, delegado dessa organização, passa a vir com frequência a Portugal.
8. Obtido um espaço independente em casa de Luiza Sarsfield Cabral, na Lapa, para centro de operações clandestino, as possibilidades de actuação ampliam-se, ao mesmo tempo que se desenvolve a rede de contactos, internos e externos, para obter informações que a Censura não deixava passar.
São assim publicados os “Sete Cadernos sobre a Guerra Colonial”, contendo uma súmula de transcrições, informações e testemunhos e fornecendo uma visão de conjunto sobre o problema colonial. A guerra nas colónias tornara-se o problema fulcral de roda a sociedade portuguesa. Foram feitos centenas de exemplares, distribuídos selectivamente.
Em 1972 inicia-se a publicação do BAC – “Boletim Anti-Colonial”, que substitui o “Direito à Informação”. Os nove números, saídos nesse ano e no seguinte, foram impressos pelo padre Ismael Nabais Gonçalves na sua paróquia de Igreja Nova, perto de Mafra. A coordenação da redacção e da distribuição estava a cargo de Luís Moita.
Nesse mesmo ano são organizadas duas distribuições de panfletos contra a guerra. A primeira, durante as festas de S. João no Porto. A outra, realizada em 13 de Maio, por ocasião da grande peregrinação anual, em Fátima, é assegurada por uma equipa de dezenas de activistas, entre eles alguns exteriores ao Movimentos, como Francisco Louçã.
Entretanto aproxima-se mais um Dia Mundial da Paz. Desta vez Paulo VI não pode ser mais claro: “A paz é possível, a paz é obrigatória.” Durante o mês de Dezembro, enquanto se prepara a vigília na capela do Rato, três aldeias de Moçambique são arrasadas e queimadas com as populações pelo exército português.
Bibliografia
– “Direito à Informação” (policopiado) – Nºs 1 (1963) a 18 (1969)
– “Cadernos GEDOC” (policopiado) – Nºs 1 e 2 (1969)
– Idem (impresso) – Nºs 3 a 10 (1969/70)
– Idem (policopiado) – Nº 11 (1970)
– “Católicos e política” – edição e apresentação do P. José da Felicidade Alves (s/data)
– “Presos políticos/documentos 1969/71” – edição da C.N.S.P.P., sob responsabilidade de Armando de Castro, Francisco Pereira de Moura e Luís Filipe Lindley Cintra (1972)
– Idem/documentos 1972/4 – Iniciativas Editoriais (1974)
– “Boletim Anti-Colonial” – 1 a 9, Afrontamento (1975)
À medida que se distancia no tempo tem a ditadura de Salazar sido objecto de cada vez mais estudos e depoimentos, ao mesmo tempo que o período que lhe corresponde, generalizadamente designado por fascismo a seguir ao 25 de Abril, é crescentemente apelidado mais inocuamente de Estado Novo, epíteto com que o ditador o baptizara. E muitos dos tais estudos e depoimentos, aparecidos em colóquios, biografias ou artigos de jornal, tendem a classificar o salazarismo como um regime autoritário de direita, distinguindo-o claramente do fascismo.
Em minha opinião estas últimas análises relevam mais da personalidade do ditador do que propriamente das características do regime, onde existiram abundantes manifestações de tipo fascista, suscitadas por uma ala de direita radical com grande influência no aparelho de Estado e benevolamente tolerada por Salazar. Este, na verdade, nunca envergou uma farda das milícias militarizadas e apenas raramente, e porventura a contragosto, fez a saudação fascista. Nem a União nacional, que aliás só existia de nome, era um aparelho partidário de tipo fascista. Foram-no, sim, e com influência real, a Mocidade e a Legião Portuguesa, criadas no apogeu dos fascismos europeus, como expressão directa daquela ala radical, que apelidava o ditador de Chefe. Isto a exemplo de outros epítetos que então grassavam pela Europa: fuehrer, duce, caudilho – sintomaticamente paralelos às designações que foram dadas mais tarde a outros líderes de sinal contrário, como “grande timoneiro” (Mao-Tse-Tung) ou “conducator” (Ceausescu).
Na verdade, ao lado destas realidades, houve também entre nós grandes manifestações de massas, que enchiam o Terreiro do Paço à custa de comboios especiais que vinham de todo o país, e desfiles aparatosos da Mocidade e da Legião Avenida abaixo. E na~se pode esquecer nesta enumeração a toda poderosa polícia política, que foi conhecendo vários nomes, e cujos chefes despachavam directamente com o Presidente do Conselho. Não eram todas estas manifestações típicas de um regime fascista?
Às considerações que têm sido aduzidas pretendo juntar agora outras que à Arquitectura dizem respeito, e que julgo serem uma prova a acrescentar no sentido de que o regime salazarista, se não foi um fascismo clássico, teve, pelo menos numa dada fase, uma fortíssima componente fascista que de forma alguma o pode permitir classificar como autoritário de direita. É que a Arquitectura foi fortemente manipulada, por forma a fazer dela também um instrumento de inculcação ideológica, o que não se verificou por exemplo noutros regimes da época, esses efectivamente autoritários, como foram os de Horthy na Hungria e de Pilsudski na Polónia. Nestes países o curso da Arquitectura pôde seguir livremente as correntes mundiais lideradas pelo chamado Movimento Moderno. São baseadas estas considerações em duas comunicações que apresentei em tempos, a primeira em colaboração com o arquitecto José Manuel Fernandes ao Colóquio sobre o Fascismo em 1980 (A Regra do Jogo)e a segunda a um outro já chamado significativamente sobre o Estado Novo alguns anos mais tarde (Editorial Fragmentos, 1987).
O que sucedeu então com a Arquitectura? Curiosamente, nos anos a seguir ao golpe militar de 28 de Maio de 1926, e mesmo logo após a Constituição de 1933, a corrente modernista afirmou-se em Portugal com uma enorme pujança. Cottinelli Telmo (estação do Sul e Sueste), Cristino da Silva (cinema Capitólio e Liceu de Beja), Carlos Ramos (Instituto de Oncologia e Liceu de Coimbra), Rogério de Azevedo (Garagem do Comércio do Porto), Pardal Monteiro (Instituto Superior Técnico e Estatística), Cassiano Branco (Eden-Teatro e prédios em Lisboa) e Jorge Segurado (Casa da Moeda e Liceu Filipa de Lencastre), fizeram parte das vanguardas europeias da Arquitectura, já sob o impulso dado às Obras Públicas por Salazar e Duarte Pacheco. Pode dizer-se que durante este período o novo regime teve uma atitude de indiferença ou de neutralidade em relação à Arquitectura, não procurando interferir num domínio que pertencia naturalmente aos seus criadores.
Entretanto, para os finais da década de 30, com a consolidação do regime e o ascenso das correntes radicais animadas pelos fascismos europeus, começaram a ouvir-se vozes propugnando uma arquitectura “nacional”, por oposição à que era designada por internacional ou mesmo de inspiração comunista. Raul Lino, com a teorização feita à “casa portuguesa” e António Ferro, com a sua política cultural nacionalista, forneceram a base ideológica para a concretização desta ideia. É já neste quadro que em 1938 surge o projecto da Praça do Areeiro, inspirado em motivos setecentistas e de monumentalidade nazista, da autoria de Cristino da Silva, um dos homens da vanguarda modernista. Com raras excepções, todos os outros lhe seguiram na peugada. E não deixa assim de espantar que os arquitectos modernos da primeira geração tenham abdicado dso seus ideais de vanguarda, levados por uma atitude voluntária de seguidismo em relação às directivas oficiais. A Arquitectura Moderna em Portugal parecia decapitada por renúncia dos seus próprios protagonistas.
Abre-se então um período em que os dogmas do portuguesismo na Arquitectura e de uma monumentalidade retórica são assumidos autoritariamente pelo regime. Arquitectos mais conscientes, como Adelino Nunes (edifício dos CTT na Praça Dom Luís I) ou Paulo Cunha (estação ferroviária de Cascais) vêem reprovados os seus projectos modernistas e são obrigados a refazê-los de acordo com os canones oficiais. A arquitectura dita portuguesa passa a ser imposta nas encomendas do Estado. Tal estado de coisas tinha paralelo na época com as práticas do nazismo alemão, do fascismo italiano (este apesar de tudo mais tolerante), do franquismo e do estalinismo. Foi uma década negra para a Arquitectura em Portugal, em que o pastiche era a norma. E não deixa de ser curioso que dessas pretensas arquitecturas nacionais tivessem saído produtos formalmente muito semelhantes, formando portanto, à revelia do que apregoavam os seus mentores, uma verdadeira internacional.
É assim que aparecem por todo o País palácios de Justiça, edifícios dos CTT, liceus, escolas primárias (o célebre Plano dos Centenários) e outros edifícios públicos ostentando condimentos em diversas combinações, que iam desde elementos do barroco joanino, aos telhados com beirados múltiplos e a uma monumentalidade retórica de uma clara inspiração nazi, e portanto estrangeira.
Nem os prédios de rendimento que se construiram em Lisboa escapam a isto, como os blocos de edifícios das avenidas Sidónio Pais e António Augusto de Aguiar, com os seus andares “nobre” guarnecidos de varandas, as suas cimalhas e pilastras de cantaria e os seus torreões ponteagudos. É que a Câmara Municipal, querendo dar o exemplo em lotes que vendia com o projecto feito, recomendava aos arquitectos que se inspirassem nos modelos do edifício da EPAL na Avenida, da Casa das Varandas (ao lado da Casa dos Bicos) e do Palácio Ludovice, ao cimo do elevador da Glória. São construções paradigmáticas deste período a tribuna do Estádio Nacional e os prédios em frente do Avenida Palace em Lisboa, todos de clara inspiração germânica dos anos 1930. A cidade do Porto, onde na encomenda de projectos predominava a iniciativa privada, e mais longe do Terreiro do Paço, escapou em parte a esta onda. Aí, com maior ou menor dificuldade, a Arquitectura Moderna pôde seguir o seu curso.
Entretanto, com a derrota do nazi-fascismo, o regime de Salazar ia sendo obrigado a fazer concessões. É assim que no I Congresso Nacional de Arquitectura em 1948, liderado por correntes oposicionistas em que predominava uma nova fornada de jovens arquitectos, estas imposições são abertamente denunciadas e adoptadas conclusões no sentido de a elas os projectistas não se dobrarem. O Congresso fora organizado pelo Governo, juntamente com uma aparatosa Exposição de Obras Públicas, para enaltecer os benefícios do regime. O tiro saiu-lhe pela culatra. É a partir deste momento, que correspondeu a um autêntico ponto de viragem, que a censura oficial começa a enfraquecer, sem que tenha deixado de vigorar durante ainda bastantes anos em alguns organismos estatais. São as entidades dotadas de alguma autonomia administrativa, como as Caixas de Previdência, as empresas hidro-eléctricas, ou as Câmaras Municipais, que vão criar condições para que a Arquitectura Moderna retome o seu curso em Portugal, agora com o protagonismo de arquitectos mais jovens, em que sobressaem Keil Amaral em Lisboa e Januário Godinho no Porto.
Hoje, passado que vai meio século, pode e deve fazer-se uma reavaliação do que foi a Arquitectura do Estado Novo, ressaltando daí alguns aspectos positivos, como a solidez dos processos construtivos, com largo emprego de alvenarias de pedra e cantarias, materiais que resistem bem ao tempo, por oposição ao betão armado, bandeira dos modernistas, que se julgava então perene e que hoje apresenta com frequência preocupantes patologias de envelhecimento. Mas do que não pode haver dúvida é de que a instrumentalização da Arquitectura, através de métodos administrativos limitando a liberdade de expressão dos projectistas, revela uma faceta claramente totalitária, prova de que existiu uma componente fascista hegemónica, pelo menos num longo período, no regime de Salazar.
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Foi o Salazarismo um fascismo? O que diz a Arquitectura”. Público, 18 Jul. 1993, pp. 93-97
Republicado em Escritos: 1947-1996: selecção. Porto: FAUP Publicações, 1996, pp. 268-273
Republicado em Tempos, Lugares, Pessoas. S.l.: Contemporânea e Jornal Público, 1996, pp. 93-97
Foi o Salazarismo um fascismo? O que diz a Arquitectura (1993)
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Chegarão 100 anos para acabar com as barracas?”. Público, 23 set. 1993, p. 48.
Republicado em Tempos, Lugares, Pessoas. S.l.: Contemporânea e Jornal Público, 1996, pp. 27-31
Republicado em Lisboa: temas e polémicas. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2011, pp. 55-58
CHEGARÃO 100 ANOS PARA ACABAR COM AS BARRACAS?
Pelos fins do século passado, começaram a ouvir-se vozes contra as condições degradantes de habitação, principalmente nos grandes centros. Políticos como Augusto Fuschini e higienistas como Ricardo Jorge denunciavam no Parlamento e na imprensa as miseráveis condições em Lisboa e no Porto. Com o processo de industrialização destas cidades ao longo da segunda metade do século, as vagas de imigrantes rurais tinham engrossado a população citadina e o mercado de arrendamento convencional não podia satisfazer essa procura. Os bairros populares, como Alfama e o Barredo, ficaram sobrepovoados e os novos habitantes encontraram alojamento em condições improvisadas, como os pátios lisboetas, conventos desafectados e palácios arruinados. Em breve, mercê de construtores oportunistas, foi surgindo um novo mercado de arrendamento, constituído por módulos de habitação precários e de dimensões ínfimas, sem as mínimas condições de higiene, ocupando terrenos sobrantes no interior de quarteirões. Foram as ilhas do Porto e os pátios e depois as vilas de Lisboa. Era esta a situação denunciada, clamando-se pela intervenção dos poderes públicos, em nome da higiene e da moral.
Nessa época não haveria ainda barracas, senão talvez como construções esparsas, não constituindo aquilo a que veio chamar-se os bairros de lata. Estes terão começado a surgir nos primeiros anos do século actual, principalmente na periferia de Lisboa. Mas o Estado, às costas com défices crónicos do orçamento, demorava a intervir. Enquanto a situação se ia agravando, algumas iniciativas isoladas de carácter filantrópico eram lançadas nas duas cidades: Francisco Grandella e o banqueiro Cândido Sotto Mayor em Lisboa e o jornalista Bento Carqueja são alguns dos seus protagonistas.
Foi preciso esperar até 1918, quando no consulado de Sidónio Pais surgiram as primeiras medidas de protecção estatal à construção de habitações económicas. E logo no ano seguinte são lançados os primeiros “bairros sociais”, em Lisboa, no Arco do Cego e na Ajuda, que levaram no entanto mais de uma década a ficar concluídos.
Com o advento do Estado Novo, estas preocupações conhecem um novo impulso: em 1933 é criado o regime das “casas económicas”, de propriedade resolúvel, corporizando as ideias de Salazar quanto à família: casa própria, modesta e bem portuguesa – em conjuntos que pretendiam reproduzir a estrutura das aldeias, incrustados na cidade. Em 1938, pela mão de Duarte Pacheco, é assumido directamente o combate aos bairros de lata na capital, através do regime das “casas desmontáveis”, feitas de chapas de fibrocimento e para durarem 10 anos como alojamento temporário. Embora muitas tenham sido já substituídas, alguns núcleos ainda persistem passado meio século, nos bairros da Boavista e da Quinta da Calçada. Foi dessa maneira que se fez desaparecer o célebre Bairro das Minhocas, localizado perto do Rego. Acreditou-se então que o fenómeno das barracas era controlável a prazo, quando na verdade estava para lavar e durar.
Em 1945 são criadas as “casas para famílias pobres”, já que os habitantes das barracas não podiam aceder às “casas económicas”. E outras iniciativas surgem na década de 40, não já com o objecto de eliminar as barracas, mas de acudir a outros estratos sociais um pouco por todo o país, já que o problema da habitação se agravava: “casas de renda económica”, “casas de renda limitada”, “casas para pescadores”. Tiveram especial importância neste período as Caixas de Previdência, no tempo em que as prestações pagas por trabalhadores e empresas ainda se capitalizavam e investiam a um juro de sete por cento ao ano.
Entretanto é preciso esperar por 1956 para ver surgir uma acção de combate às ilhas do Porto: um programa de construção de seis mil habitações em 10 anos, destinadas aos moradores dessas ilhas.
Lá estão numerosos bairros municipais, mas as ilhas continuaram a existir na cidade. Entretanto, em Lisboa novos bairros de lata iam aparecendo, espalhando-se pelos concelhos limítrofes.
É então (1959), por decreto do Ministério da Presidência, ocupado por Pedro Teotónio Pereira, que é criado um Gabinete Técnico de Habitação na CML e se lança um programa específico de habitação social em termos integrados, de que resultaram os bairros de Olivais Norte e Sul e depois Chelas, este ainda em desenvolvimento.
Os dois bairros dos Olivais ficam na história de Lisboa como realizações positivas em termos de planeamento urbano, de prazos de execução, de integração de diferentes classes sociais e de intervenção de diversas entidades promotoras. É nestes bairros, e no do Viso, no Porto, que o regime se vê obrigado a abrir mão do ideal da casa unifamiliar para o regime de “casas económicas”.
Mas o fenómeno já era alarmante. Em 1963 o “Diário Popular” realizou um inquérito exaustivo ao problema da habitação, cujas conclusões foram organizadas em 19 artigos a publicar no jornal, e que foi realizado por uma equipa de reportagem composta por Urbano Carrasco, Mário Henriques, Corregedor da Fonseca e Nuno Rocha.
O primeiro artigo ainda chegou a ser publicado. No respectivo título dizia-se que o número de barracas em todo o país passara de 10 mil em 1959 para 50 mil em 64. Os restantes dezoito artigos foram todos cortados pela censura. Tenho na minha biblioteca um volume encadernado contendo as respectivas provas tipográficas que me foi oferecido por alguém de confiança no jornal. É um documento impressionante de como nesses tempos eram ocultadas aos portugueses as realidades do próprio país.
E no entanto a década de 60 viu ocorrer dois importantes fenómenos que actuaram como válvulas de escape na multiplicação das barracas: uma emigração maciça para a Europa, que absorveu fluxos populacionais habitualmente dirigidos para as duas áreas metropolitanas e, sobretudo, na região de Lisboa, a proliferação dos chamados bairros clandestinos, que fizeram desviar dos bairros de lata muitos dos que tinham alguma possibilidade de investimento. Em 1964 é pela primeira vez contemplada a habitação nos Planos de Fomento.
Durante o marcelismo, em que foram centralizadas todas as actividades do sector no Fundo de Fomento da Habitação, foram lançados os chamados “Planos Integrados” (Lisboa, Almada, Setúbal, Aveiro), com o objectivo de estender o exemplo dos Olivais, mas pouco se avançou. Um Colóquio sobre a Habitação e outro sobre o Urbanismo (1969) permitiram no entanto o arejamento dos diferentes problemas em aberto, até então demasiado circunscritos aos gabinetes ministeriais. Mas a Censura, agora denominada “Exame Prévio”, continuava a impedir que muitos dos aspectos sociais desta questão pudessem ser discutidos publicamente.
Veio o 25 de Abril e um processo que hoje podemos classificar de histórico veio ao de cima, com um dinamismo tal que se tornou possível uma vez mais prever o desaparecimento das barracas e das ilhas: o SAAL, Serviço de Apoio Ambulatório Local, criado por Nuno Portas, Secretário de Estado da Habitação dos primeiros governos provisórios.
Organizados os habitantes dos bairros degradados em comissões de moradores, estas desencadearam um processo de reivindicação de norte a sul do país sob a égide da palavra de ordem “Casas Sim, Barracas Não”. Com o apoio estatal, organizaram-se muitas dezenas de equipas técnicas pluridisciplinares, englobando desde arquitectos e engenheiros a sociólogos, economistas, geógrafos e trabalhadores sociais, que se encarregaram dos projectos, entretanto discutidos em assembleias gerais de moradores. As câmaras municipais, através de processos expeditos, iam disponibilizando os terrenos necessários.
Muitos destes projectos iniciaram a construção, embora a grande maioria não tivesse tido tempo de atingir essa fase. É que em 1976 o sistema foi repentinamente suspenso por decisão governamental, sendo ministro da Habitação Eduardo Pereira, no quadro da chamada normalização democrática: o SAAL foi considerado excessivamente revolucionário face ao sistema representativo, por se encontrarem no seu alicerce formas de democracia directa.
Atribuídas as competências do SAAL às Câmaras, sem qualquer apoio da Administração Central, alguns dos bairros puderam ainda ser continuados e certos terrenos aproveitados, mas o sistema tinha sido destruído. Foi o fim de um sonho de poder acabar com as barracas e com as ilhas. Assinados muitos dos projectos por alguns dos mais conceituados arquitectos portugueses, ficaram certas realizações como testemunho de muito do que se poderia ter feito e de uma forma política, social e tecnicamente inovadora para um problema que se arrastava há décadas.
Eram entretanto relançados os Planos Integrados, mas o Fundo de Fomento da Habitação, que os geria, acabou também por ser dissolvido, remetendo-se essencialmente para os mecanismos do mercado, com umas magras bonificações de juros, a resolução do problema habitacional. O Instituto Nacional de Habitação e o IGAPHE, entretanto criados, financiam algumas realizações municipais e cooperativas, mas o problema continua sem solução à vista.
Passadas duas décadas, o nível de vida das populações subiu, o parque automóvel cresceu, mas nem por isso as barracas e as ilhas viram reduzido o seu número. As que são eliminadas no decurso de programas de habitação social são muitas vezes substituídas por outras. Essas formas infra-humanas de habitação mostram assim constituir um problema estrutural da sociedade portuguesa. Ao longo dos últimos anos, a capacidade de realização de alguns municípios tem desenvolvido programas de habitação com a finalidade de acabar com o flagelo, mas a situação não dá mostras de melhorar, agravado o fenómeno com a vaga de emigração oriunda dos PALOP. Permanece como questão de fundo a enorme distância entre os valores pedidos pelo mercado e as possibilidades económicas de um vasto sector da população.
Como há 100 anos, torna-se evidente que só com uma forte intervenção da Administração Central será possível proporcionar habitações decentes às populações que delas necessitam. Foi isso que o Governo finalmente reconheceu ao lançar as medidas que vieram recentemente a público. Resta saber se será desta vez que as barracas vão acabar. E isto sem esquecer que o problema da habitação não se esgota nas barracas. Longe disso.
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Pátios e vilas de Lisboa: 1870-1930: promoção privada do alojamento operário”. Análise Social: Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, nº 127, 1994, pp. 509-524. Também publicado como separata.
Comunicação ao colóquio sobre «Habitação na cidade industrial: 1870-1950», organizado pelo Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, fev. 1993
Republicado em Escritos: 1947-1996: selecção. Porto: FAUP Publicações, 1996, pp. 162-183
PÁTIOS E VILAS DE LISBOA: 1870-1930: PROMOÇÃO PRIVADA DO ALOJAMENTO OPERÁRIO
Introdução
A questão de se encontrarem soluções para as graves situações de alojamento das então chamadas classes laboriosas foi objecto de um debate que se foi pouco a pouco alargando no último quartel do século XIX e nos primeiros anos deste século. O Inquérito Industrial de 1881 chamou a atenção para o assunto, pois revelou a miséria das condições de habitação do operariado nos principais centros industriais do país, com relevo para Lisboa, Porto, Covilhã e Setúbal. O crescente afluxo de populações a estes centros, provocado por um surto industrial que se desenvolveu com o fontismo, não encontrou correspondência nas condições de habitação para este aumento demográfico.
Higienistas como Ricardo Jorge, que denunciava a miserável situação das ilhas do Porto, lançavam o alarme: não era apenas a saúde das famílias que ali se albergavam que oferecia situações de risco, mas o perigo alargava-se a toda a população, que se via ameaçada de contaminação, devido à propagação das bactérias infecciosas.
A tuberculose começava a atingir as várias classes sociais. Daqui que o combate ao flagelo se tornasse uma questão de sobrevivência para o conjunto da sociedade.
Para além de Ricardo Jorge, que foi encarregado de uma missão em Lisboa para estudar a epidemia de 1894, o conselheiro Augusto Fuschini, que várias vezes levantou a questão no Parlamento, os engenheiros Oliveira Simões e Augusto Montenegro, que dirigiu os primeiros inquéritos à habitação em Lisboa, o romancista Fialho de Almeida e Guilherme de Santa-Rita são os principais arautos desse debate. A questão da casa barata e salubre torna-se, assim, em poucas décadas, um tema da actualidade nacional.
Já no início do século, o engenheiro José Maria Melo de Matos, um técnico informado do que se fazia lá fora, propõe soluções para o problema.
E, no entanto, ao longo deste tempo, novos bairros eram acrescentados a Liaboa, por vezes mercê da acção das companhias urbanizadoras: Estefânia, Campo de Ourique, o Bairro Camões e, mais tarde, Almirante Reis e as Avenidas Novas. O problema punha-se nos termos em que ainda hoje se põe: as camadas mais pobres das classes trabalhadoras, com relevo para o operariado, não tinham capacidade económica para habitar esses bairros. Tornava-se necessária, como se via pelos exemplos estrangeiros amiúde citados, a intervenção do Estado ou a iniciativa de cooperativas ou associações sem fins lucrativos. Mas o Estado vivia em endémica situação deficitária e o cooperativismo habitacional também necessitava de apoios, sem os quais a sua acção estaria condenada, começando logo no problema da disponibilidade de terrenos.
As limitadas realizações da Companhia Comercial Construtora no Bairro dos Barbadinhos são bem a prova deste facto.
As camadas mais desfavorecidas da população lisboeta viam-se, assim, na contingência de terem de sofrer condições de alojamento deprimentes, albergadas em palácios arruinados ou conventos desafectados e a maioria das vezes em pátios insalubres. Foi aí que a iniciativa privada começou a interessar-se pela situação, com a construção de vilas operárias, onde as condições não seriam tão miseráveis e que dariam, provavelmente, bons lucros aos investidores. Como excepções, pode apontar-se o caso de empresas, sobretudo do sector têxtil, que construíram, num ou noutro caso, alojamentos para os seus operários, e o de empresários filantrópicos, como Cândido Sotto Mayor. Foi neste quadro que se edificaram as centenas de vilas que ainda hoje existem na capital, constituindo uma parte considerável do seu tecido edificado, ainda que pouco visível da via pública. No âmbito dos programas de reabilitação urbana em curso de realização pela Câmara Municipal, foi criado recentemente o Gabinete dos Pátios e Vilas, destinado a fazer o levantamento destas tipologias e a promover a respectiva reabilitação ou, nos casos em que isso seja impossível, a possibilitar o realojamento das populações.
No Roteiro de Lisboa do Anuário Geral de Portugal, edição de 1979, estão contabilizadas 350 vilas, o que dá ideia da importância destes aglomerados no conjunto da cidade.
Este fenómeno foi abordado pela primeira vez entre nós por Maria João Madeira Rodrigues num ensaio pioneiro publicado em 1979.
1. Os pátios
A partir dos meados do século XIX, um lento processo de industrialização vai provocando a concentração em Lisboa da mão-de-obra operária. A população da cidade aumenta, mas também se modifica a respectiva composição social: ao mesmo tempo que a burguesia se desenvolve e se diversifica em estratos diferenciados, uma classe operária começa a emergir. Para as necessidades de alojamento daquela, o próprio sistema, gerido pelos governos da Regeneração, encontra os mecanismos próprios, que rasgam avenidas e urbanizam novos bairros. Mas da habitação das então chamadas classes laboriosas ninguém cuida: as famílias operárias vêem-se então obrigadas a procurar alojamento em espaços desocupados ou em velhos pardieiros arruinados, onde improvisam elas próprias precárias habitações ou se acomodam de qualquer maneira, sempre mediante o pagamento de uma renda ao proprietário. É assim que surgem os pátios.
Com o incremento da indústria, acompanhado pelo das obras públicas e da própria construção civil, as necessidades crescentes de mão-de-obra intensificam o processo de urbanização e o afluxo de populações à capital. Institucionaliza-se uma nova forma de alojamento e um novo processo de exploração. Senhorios dinâmicos fazem construir, eles próprios, nas traseiras os seus prédios casas abarracadas para alugar a operários; são aproveitadas caves insalubres para o mesmo efeito, sempre com acesso pelas traseiras; conventos das extintas ordens religiosas, adquiridos em hasta pública, ou palácios arruinados são meticulosamente alugados quarto a quarto. E começa a haver quem, com espírito empreendedor, adquira terrenos para aí fazer construir pátios.
Com o desenvolvimento do processo, provocado pelo aumento de uma procura cada vez mais intensa, é esta última modalidade que virá a institucionalizar-se nas últimas décadas de Oitocentos, com a construção das vilas operárias. Os pátios de Lisboa formam-se por toda a extensão da cidade, com maior concentração nos bairros antigos e nos da periferia. Um inquérito oficial efectuado em 1902 identificava 130 em apenas 18 das 29 freguesias da cidade. E é de supor que o número total ultrapassaria as duas centenas, pois das 11 freguesias em falta contavam-se zonas onde ainda hoje existem dezenas de pátios, como São Bento, Santa Isabel e Lapa.
A localização dos pátios está relacionada com a existência das zonas industriais, onde à época existia um forte núcleo na zona da Boavista, e certamente ainda com o porto de Lisboa.
É talvez por isso que se nota um eixo especialmente denso que sobe pelo vale de São Bento e daí se prolonga pelas Amoreiras até Campolide. Leite de Vasconcellos, na sua Etnografia, fala deste fenómeno e aponta o pátio do Biaggi, com as suas centenas de habitações, como o maior existente na capital. Entretanto desaparecido, localizava-se na Rua das Amoreiras, junto ao arco do Aqueduto das Águas Livres. No levantamento que serviu de base a este estudo, e que não foi exaustivo, ainda foram identificados 60 pátios em toda a área da cidade. Desprovidos quase sempre de qualquer tipo de instalações sanitárias e de abastecimento de águas, os pátios não dispunham de condições de salubridade mínimas, ao que acrescia a sua localização térrea, exposta assim às humidades, e a ausência de radiação solar, por se encontrarem ensombrados, muitas vezes em caves atrás de prédios.
A tipologia dos pátios é por demais diversificada, exactamente porque se trata, na maioria dos casos, de aproveitamento de espaços já existentes. E nos casos de construção de raiz, deliberadamente com essa finalidade, essa tipologia não se distingue muitas vezes das vilas que mais tarde surgiram.
2. Da casa bifamiliar à correnteza
No tecido apertado dos bairros pobres da periferia são frequentes as pequenas construções de um só piso com dois fogos e que terão existido mesmo em bairros mais antigos, nas quais o aumento de densidade levou a erguer novos pisos sobre o primitivo. Trata-se, pois, de uma forma de agrupamento tradicional na cidade, como em qualquer pequeno aglomerado. Dotado de um programa mínimo, de construção simples e de custo muito reduzido, este tipo de alojamento adequava-se às possibilidades de famílias de fracos rendimentos.
Susceptível este modelo de ser reproduzido para um maior número de habitações, também aparecem exemplares de três e mesmo quatro fogos. E com o incremento da procura logo se constroem filas ou bandas de casas deste tipo, a que se dá o nome de “correntezas”.
Pela sua versatilidade, esta tipologia conhece um grande desenvolvimento, pois tanto é aplicada no interior de pátios como constitui a forma embrionária de uma das modalidades das vilas no final do século XIX. E chega até aos nossos dias nas primeiras realizações dos bairros económicos do chamado «Estado Novo», como o do Alto da Serafina.
3. Prédios em correnteza e vilas
Com a intensificação da industrialização, as carências habitacionais tornam-se mais prementes, de tal modo que, na sequência do Inquérito Industrial de 1881, que põe a claro a situação, o Governo de Fontes cria uma comissão com a incumbência de a solucionar – o que, evidentemente, não faz.
A persistência do fenómeno faz surgir, entretanto, uma nova modalidade de alojamento: os edifícios ou conjuntos expressamente construídos para habitação de famílias operárias, que começaram a tomar a designação de «vilas», algumas vezes com a de pátio.
É essa a finalidade expressa, presente desde a promoção, embora cobrindo tipologias muito variadas, que distingue em rigor uma designação da outra. O regulamento camarário de 1930 que, aliás, proíbe a construção de novas vilas, define estas como «grupos de edificações destinadas a uma ou mais moradias construídas em recintos que tenham comunicação, quer directa, quer indirecta, com a via pública por meio de serventia». Trata-se, portanto, de espaços à margem dos arruamentos, construídos muitas vezes no interior dos quarteirões. A analogia com as chamadas «ilhas» do Porto é muito clara: só que estas correspondem a padrões pouco variados, que se encontram, aliás, também presentes nas vilas lisboetas.
Dentro desta variedade, um dos tipos mais frequentes escapa, pelo menos em parte, à definição camarária: trata-se dos casos em que a construção acompanha a via pública, como qualquer prédio corrente, mas que – mesmo nos casos, aliás frequentes, em que a designação não é utilizada – recobrem uma realidade que contém o essencial da vila: edificação multifamiliar intensiva, construída pela iniciativa privada e destinada a famílias de baixos rendimentos. Estas últimas situações ocorrem, no entanto, em zonas da cidade, elas próprias segregadas, pelo que a circunstância do acesso directo da rua não contraria o carácter marginal do edifício.
Dois tipos principais se encontram neste caso: os edifícios alongados género correnteza, compostos por unidades de dois ou três pisos, ou os edifícios tipo bloco, com as quatro fachadas livres e acesso central. É possível que este último tipo, pela semelhança formal que apresenta em relação às «vilas» de lazer da burguesia estrangeirada (muitas vezes com coberturas tipo chalet), tenha servido de veículo à designação, que Leite de Vasconcellos diz ser abusiva, por nada ter a ver com a realidade que representa.
Destas vilas em correnteza podem ainda ver-se exemplares no lado oriental do Campo Grande, em vias de serem demolidas, como aconteceu a outra, na Estrada da Luz, já depois de ser efectuado o levantamento – ambas situadas em artérias muito valorizadas com o crescimento da cidade. Das vilas tipo chalet, são interessantes a localizada na Rua Vale Formoso de Baixo e o Casal dos Silvas, na encosta do Alvito.
4. Vilas formando pátio
Uma das características da vila, como da generalidade das construções construídas com fins lucrativos, é o aproveitamento máximo da área disponível. Daí a necessidade da concentração do espaço livre, inútil ou pouco lucrativo do ponto de vista do rendimento, por forma a construir o maior número possível de fogos – também eles reduzidos a áras mínimas – numa dada parcela de terreno. Esta exigência conduz a uma organização espacial em que as habitações se agrupam à volta do terreno, ocupando todo o seu perímetro, com acesso através de um espaço central. Esta é a forma mais imediata e mais generalizada da vila. Por vezes esse espaço é alongado, em forma de corredor, outras vezes é de tipo pátio, permitindo algum desafogo. E na maioria dos casos os logradouros privativos nas traseiras ou não existem, pura e simplesmente, ou são eles também ínfimos.
As vilas, apesar do seu carácter de alojamento especializado para as camadas de baixos rendimentos, até do ponto de vista social, recobrem realidades muito diferentes, pois existem casos – Vila Berta, Vila Santos – em que o nível das habitações e do seu envolvimento ultrapassa claramente o quadro de miséria que acompanha normalmente esta tipologia, correspondendo a camadas da pequena burguesia. É nestes casos que o tratamento formal atinge também níveis de qualidade excepcional, traduzido numa concepção muito elaborada do projecto, num desenho cuidado de todos os elementos da construção e numa riqueza decorativa que chega a atingir a ostentação. Mas estas características mantêm-se, embora em menor grau, em muitas vilas de nível modesto, atestando um cuidado formal que parece ter uma função de compensação. A preocupação da simetria, o guarnecimento por vezes caprichoso dos vãos com materiais baratos, como o tijolo, o desenho cuidado dos letreiros em chapa esmaltada ou simplesmente pintados com a designação da vila, o remate ornamentado das coberturas são constantes num grande número de vilas de Lisboa.
No sentido de reduzir os espaços não directamente rentáveis, as escadas interiores são frequentemente substituídas por galerias exteriores, para acesso aos fogos dos andares, formando por vezes sistemas complexos. Construídas em estruturas de ferro, articulando as respectivas escadas de acesso e por vezes formando ponte, estas galerias adquirem um grande valor como elementos ordenadores do espaço e atestam a introdução de tecnologias modernas na construção de vilas.
Para além das já citadas, também a Vila Luz Pereira, situada na Mouraria, apresenta um cuidado excepcional de desenho. A Vila Romão da Silva, às Amoreiras, dispõe de um espaçoso pátio, enquanto a Vila Gadanho, a Sapadores, construída em 1908, é um caso típico da vila corredor. Um dos exemplos mais característicos é a Vila Bagatella, com frente para a rua, mas recuada, formando um pátio alongado, construída nas Amoreiras em 1890 por Manuel José Monteiro, o «mineiro», emigrante retornado do Brasil, e formando conjunto com o pátio do Monteiro. Das vilas construídas com escadas e galerias de ferro, destaca-se a Vila Rodrigues, de 1902, ostentando com espectacularidade o emprego de modernas tecnologias de construção. Também com frente para a via pública, mas com acesso através de pátio, existem várias vilas na Rua Maria Pia (Vila Ramos, Vila Matos, Vila Neves). A última deste tipo construída em Lisboa (1931), no Campo Pequeno (a já citada Vila Santos), tem resistido teimosamente às ameaças de demolição.
5. Vilas construídas atrás de prédios
As vilas operárias constituem uma forma de alojamento especializado que expressa com clareza uma situação de classe dentro da cidade. Mas essa expressão é ainda mais eloquente nos casos numerosos em que num mesmo lote de terreno são construídas duas tipologias distintas: marginando a rua, um prédio corrente para a burguesia (mais frequentemente para a pequena burguesia); e no interior do talhão, por detrás desse prédio, um pátio, ou vila, destinado a famílias proletárias. Neste caso há uma hierarquia social traduzida directamente ao nível do próprio lote.
O acesso às traseiras, onde se localiza a vila propriamente dita, pode fazer-se de três maneiras: ou à ilharga do prédio através de um corredor lateral descoberto – solução que conduz geralmente a esquemas de ocupação assimétrica, ou obriga a fazer cotovelos para contornar o prédio ou, para evitar este inconveniente, a eixo do lote, também por meio de corredor a céu aberto, que é prolongado em linha recta pelo pátio ou, com a finalidade de aproveitar para a construção toda a extensão da frente, através de uma passagem aberta em arco sob o próprio prédio. Normalmente qualquer destes tipos de entrada é resguardado por um portão de ferro, ostentando uma placa com a indicação do nome da vila, e é inteiramente separado da entrada para o prédio construído na frente.
Esta indicação do nome é um atributo importante deste tipo de edificações. Tem a finalidade de identificar a vila, como modernamente se usa com grandes edifícios representativos. Mas tal finalidade é aproveitada pelo construtor para imprimir uma marca pessoal ao empreendimento. Daí grande parte dos nomes reproduzirem os dos proprietários ou então serem baptizados com nomes por estes escolhidos, nomeadamente de familiares.
Actualmente verifica-se um fenómeno de rejeição, mais patente nas novas gerações, em relação a esta designação específica da vila. Expressando com clareza uma situação de classe, que por vezes pode até ter deixado de se verificar em relação a parte dos respectivos habitantes, o morar-se numa vila é, pois, um ferrete social, de carácter discriminatório em relação ao conjunto da população. É por essa razão que muitas das placas foram destruídas, ou então apagadas, quando se tratava de simples letreiros pintados. E os habitantes fazem por ignorar ou esquecer a antiga designação, preferindo usar, para efeitos de localização, o número da porta que dá acesso ao pátio.
Sendo comum a um grande número de vilas esta situação de traseiras, podem destacar-se nesta tipologia a Vila Luz, na Rua Pascoal de Melo, a Vila Raul, nas Amoreiras, a Vila Fernandez, na Estrada da Luz, a Vila Borba, em Campolide, e a extensa Vila Celarina, na Rua da Escola do Exército. A Vila Sousa, que domina a colina da Graça, com os seus azulejos azuis, constitui um caso à parte, visto tratar-se da ampliação de um antigo palácio,em cujas traseiras existe um amplo pátio envolvido por edifício de cinco pisos. Foi construída em 1889.
6. Vilas formando ruas
A localização das vilas operárias em Lisboa está relacionada com as zonas onde se construíram as fábricas na segunda metade do século XIX e que têm por características serem zonas de periferia, à beira do rio e servidas por caminho de ferro. É assim que as maiores concentrações se deram em Alcântara e na faixa marginal, entre Xabregas e o Poço do Bispo. Tendo como finalidade facilitar a fixação de mão-de-obra para esta indústria nascente, as vilas foram sendo construídas em zonas vizinhas das fábricas, prolongando-se ao longo das vias de acesso às concentrações industriais e afastando-se progressivamente delas à medida que os terrenos iam encarecendo por efeitos da procura.
É assim que a zona industrial de Alcântara favoreceu a construção de vilas no Bairro de Santo Amaro, na encosta do Alvito, no vale de Alcântara e ao longo da escarpa dos Prazeres e do Casal Ventoso, marginando a Rua Maria Pia, então aberta como estrada de circunvalação. Mais tarde, as vilas chegaram a Campolide, onde a abundância de terrenos dava margem à sua construção. Na zona oriental, a edificação de vilas e bairros operários desenvolveu-se ao longo da faixa marginal, paralelamente às próprias fábricas e armazéns, mas encontrou condições de terreno e de mercado propícias junto aos bairros antigos da zona oriental, no planalto da Graça e de Sapadores, onde se localiza o mais importante núcleo hoje existente. Mas também se construiram vilas na periferia norte da cidade e, por vezes, no próprio interior do tecido antigo, em terrenos porventura vagos.
É nas zonas de terreno mais plano e desimpedido que, por vezes, as vilas operárias adquirem formas alongadas, com a implantação de casas ao longo de ruas. Trata-se de casas em que as correntezas assim construídas não se distinguem claramente de tipologias mais correntes, a não ser pelo facto de as ruas pertencerem à própria vila e, por isso, terem a designação de «particulares». Nesta tipologia não se verificam as preocupações formais patentes em muitas das vilas lisboetas: a forma de exploração que representam e as condições mais que precárias de habitabilidade não são aqui suavizadas com cuidados de desenho ou ornatos nas fachadas.
Das vilas formando ruas, as mais significativas são a Vila Dias, junto a Xabregas, construída em 1888, ao longo da linha de caminho de ferro, e a já citada Vila Berta, à Graça. Construída por Diamantino Tojal em 1902, trata-se de um conjunto interclassista, com edifícios para diferentes estratos sociais e de grande apuro formal, em que também é notável o recurso a estruturas metálicas e a rica decoração em azulejos.
7. Vilas directamente ligadas à produção
Na época em que a falta de alojamentos começava a constituir um entrave sério ao desenvolvimento industrial, algumas empresas tomaram a iniciativa de construir blocos de habitações para o seu pessoal. Este fenómeno verificou-se exactamente nas zonas de maior concentração industrial: Alcântara e Xabregas. Tratava-se de empresas do sector têxtil, que necessitavam de mão de obra abundante e barata, e por isso o fornecimento de alojamento constituía um poderoso factor de atracção.
Noutros casos, como parece ser o do Bairro Grandella, a construção de habitações para o pessoal poderia inscrever-se numa atitude de tipo paternalista por parte dos empresários, promovendo imagens como «a grande família» e a «dignificação do trabalho» e não deixando certamente de funcionar como instrumento de controlo e de pressão sobre os assalariados. É notório neste último caso o extremo cuidado do arranjo, a qualidade do desenho e também a diversificação das tipologias, reproduzindo naturalmente a hierarquia do trabalho no local de habitação.
Outra modalidade surgiu mais tarde, associada a empresas de menor dimensão, em sectores específicos da actividade industrial: as habitações integradas no próprio edifício das instalações fabris. O ramo em que esta tipologia se tornou prática corrente foi o do tratamento e distribuição de vinhos, cuja actividade, desenvolvida em «armazéns», se concentrou fortemente na zona do Poço do Bispo – já que esta indústria recebia a matéria-prima quer por caminho de ferro da região do Oeste, quer por via fluvial, por meio de fragatas, que escoavam a produção do Ribatejo. Nesta modalidade, as habitações localizavam-se em andares construídos sobre parte dos armazéns, formando blocos ao longo da rua. Estas casas destinam-se ao escalão superior do pessoal.
Mas também noutros ramos de actividade se conhecem habitações deste tipo, constituindo embora casos raros os que ainda se conservam. Alguns destes, como a Vila Almeida ou o Prédio de Tijolo, são exemplos de extraordinário interesse tanto pela qualidade do desenho e da construção como pela concepção distributiva. A utilização intensiva de galerias antecipou soluções que só muito mais tarde foram avalizadas pela arquitectura encartada e se generalizaram, conservando, apesar disso, a marca proletária que esteve na sua origem. Esta tipologia expressa, a uma escala urbana de construção compacta, a mitologia filantrópica da empresa como quadro exclusivo de vida, numa perspectiva de harmonia social.
A Vila Almeida, atrás citada, situa-se no Jardim José Fontana e compõe-se de três pisos de habitação, com acessos por galerias na fachada de tardoz, sobre um amplo espaço ocupado por uma oficina metalúrgica. O Prédio de Tijolo, construído para habitação de operários da Cerâmica Junça, na Rua Possidónio da Silva, no último quartel do século XIX, mostra uma fachada na qual se demonstra a capacidade decorativa do tijolo. É também servido por galerias de ferro no tardoz.
No que respeita ao sector têxtil, existem vários exemplares interessantes, para além do Bairro Grandella: a grande correnteza da Rua Rodrigues Faria, a Alcântara, construída em 1873 pela Fábrica de Tecidos Lisbonense, que foi pioneira na edificação de casas pelos empresários; a Vila Cabrinha, também em Alcântara, edificada pela Fábrica de Estamparia e Tinturaria de Algodão; a Vila Flamiano, construída em 1887 para o pessoal da Companhia de Fabrico de Algodão de Xabregas, mais tarde comprada pelos Armazéns do Chiado.
No sector vinícola destacam-se, ambas no Poço do Bispo, a Vila Pereira, de 1887, e o grande edifício construído em 1917 por José Domingos Barreiros & Cª., Ldª.
8. Vilas de escala urbana
No tipo mais corrente da vila, esta organiza-se em função de um espaço comum, de carácter privado, fora das vistas da rua, raramente atingindo um elevado volume de construção. Mas com o desenvolvimento desta modalidade de alojamento foi-se diversificando a respectiva tipologia – cada vez mais afastada do primitivo pátio – ao mesmo tempo que o sucesso de anteriores realizações ia estimulando investimentos mais volumosos.
É no quadro desta evolução que surgem as vilas que, pelo volume da edificação ou pela complexidade da sua estrutura, atingem uma escala que as impõe ao nível do espaço da cidade, constituindo neste último caso um sistema viário que, sem perder o carácter segregador, ganha uma dimensão urbana. É assim que surgem verdadeiras unidades de habitação horizontal, como o Bairro Estrela de Ouro, ou conjuntos massivos de blocos em altura, como o Bairro Clemente Vicente. A dimensão destas realizações e o seu cuidadoso planeamento, em articulação com o carácter de autonomia que sempre guardam, conduzem frequentemente à inclusão de elementos de equipamento colectivo nestes conjuntos. Trata-se geralmente de estabelecimentos comerciais de primeira necessidade, mas aparecem também escolas, espaços de convívio e, na Vila Cândida, até uma esquadra da PSP. As entidades construtoras eram, em muitos casos, empresas industriais e, noutros, simples promotores imobiliários que permaneceram como senhorios. Mas a individualização desses promotores, em qualquer dos casos, é um elemento característico deste tipo de alojamento. Essa individualização traduz-se geralmente na própria designação da vila, por vezes representada alegoricamente em placas ou painéis de azulejo. Esta espécie de culto está, provavelmente, ligada à faceta filantrópica que por vezes caracterizava estes empreendimentos: os promotores eram capitalistas que investiam em prol do bem-estar dos seus empregados. É, em alguns casos, este sentido paternalista e tão forte que levava os proprietários a construírem no mesmo terreno, embora com a necessária separação, a sua própria residência. Têm esta característica o Bairro Grandella, o Bairro Estrela de Ouro, a Vila Cândida e o Bairro Clemente Vicente, como exemplares mais interessantes desta tipologia.
O Bairro Grandella, em Benfica, foi edificado junto de uma fábrica têxtil da empresa e denota uma concepção estrutural de arruamentos paralelos com vários tipos de habitação, destinados a diferentes escalões do pessoal. Com frente para a Estrada de Benfica, o bairro é rematado por dois pavilhões, lembrando templos gregos, com colunas e frontões de coroamento, destinados a uso comum. A grade circundante foi retirada há alguns anos. Francisco de Almeida Grandella era um empresário progressista, que construiu outras obras de finalidades sociais.
O Bairro Estrela de Ouro, na Graça, foi construído em 1908 pelo industrial de confeitaria Agapito Serra Fernandes e integra vários arruamentos a que deu o nome de pessoas da sua família. Formado por pequenas unidades habitacionais em forma de U, a estrela de cinco pontas aparece como elemento decorativo sistemático.
A Vila Cândida, à Avenida General Roçadas, constitui como que uma aldeia, com traçado geométrico e um amplo largo de entrada, onde se situavam os edifícios sociais. Construída pelo banqueiro Cândido Sotto Mayor, é o exemplo típico de uma atitude filantrópica e paternalista. Após o 25 de Abril, as casas vieram a ficar na posse dos moradores, pelo que tem vindo a destruir-se a unidade de todo o conjunto.
O Bairro Clemente Vicente, no Dafundo, é constituído por três blocos compactos de cinco pisos, totalizando 240 fogos. Foi construído por um empresário empreendedor dos anos 20 e procurou dar, provavelmente, uma imagem do falanstério. Os acessos fazem-se por uma complicada estrutura metálica de escadas e varandas.
9. Os bairros operários e económicos
Nas últimas décadas de Oitocentos, face ao aumento demográfico verificado em Lisboa e à falta absoluta de condições para alojar a mão de obra que afluía da província para as indústrias nascentes, começaram a ouvir-se vozes que afirmavam competir também ao Estado um contributo para a solução de tão magno problema. Mas seria necessário esperar alguns anos para o primeiro regime de isenções fiscais e alguns decénios para os primeiros bairros de iniciativa oficial. Entretanto, os contributos partiam da iniciativa privada: ou das próprias empresas industriais, ou de construtores-promotores, que tiravam bons rendimentos de pátios e vilas. Simultaneamente, as casas para a burguesia iam-se construindo: aí os lucros eram mais garantidos e começavam a formar-se companhias urbanizadoras, que em 1937 puderam desenvolver a sua acção.
Entretanto, com a formação de um proletariado industrial, o movimento operário dava os primeiros passos e começava a organizar-se para resolver os seus problemas. Verifica-se, assim, um primeiro surto do cooperativismo e do associativismo em Portugal. É neste quadro que se formam algumas sociedades cooperativas de construção e habitação. Entre elas, a Companhia Comercial Construtora, que em 1890 se lança na construção do Bairro Operário dos Barbadinhos. Com a sua arquitectura simples e austera, traduz a penúria de recursos com que foi construído.
Somente na 1ª República foi possível o Estado lançar-se também na construção de bairros. É assim que são iniciados, em 1918, os Bairros Sociais da Ajuda e do Arco do Cego. Planeados com empenho e certa grandiosidade, introduzem uma tipologia nova no tecido da cidade. Pretende-se aqui evitar o carácter lúgubre, típico dos bairros operários, constituídos por monótonos alinhamentos de casas uniformes e sem adornos. Por isso se projectam tipos variados, se enriquecem as fachadas e se prevêem edifícios de fruição colectiva. Só que as obras estiveram vários anos suspensas e, quando concluídas, as casas não foram atribuídas às famílias operárias. O «dar direito de cidade» ao proletariado falhou nessa iniciativa, como noutras subsequentes.
10. Conclusão
As últimas e já raras realizações da iniciativa privada na construção de vilas datam da última década de 20. É assim que, com a construção dos primeiros bairros sociais de iniciativa oficial, se dá uma espécie de passagem de testemunho na tentativa de construção de casas para estratos populares. Tentativa que não vai ter grande sucesso, já que desde o início do século a população de mais fracos recursos se via obrigada a habitar os chamados «bairros de lata», constituídos por barracas improvisadas. Estes bairros vão alastrando ao longo do século, apesar de alguns terem sido demolidos, com o realojamento das populações em casas provisórias, que muitas vezes duravam décadas.
Mais tarde, nos anos 50, começam a construir-se, não já na cidade de Lisboa, mas na sua periferia, os chamados «bairros clandestinos», à margem de qualquer licenciamento camarário, onde, curiosamente, vêm a reproduzir-se algumas tipologias de construção características das vilas operárias, mas entretanto proibidas pelos novos regulamentos camarários em Lisboa.
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Os acontecimentos que se desenrolaram na Capela do Rato nos últimos dias de 1971 [1972], enquadram-se num movimento crescente de contestação à guerra colonial que alastrava na sociedade portuguesa, sobretudo nos sectores mais politizados ou mais directamente afectados pela sua continuação, como era o caso da juventude. A vigília do Rato teve, aliás, como precursora a ocupação da Igreja de S. Domingos, em Lisboa, em 1 de Janeiro de 1969, também feita por um grupo de católicos, conhecidos então por “progressistas”. A data de 1 de Janeiro de cada ano fora escolhida pelo papa Paulo VI como dia dedicado à Paz, na sequência da célebre encíclica de João XXIII Pacem in Terris. Naquela igreja, após a missa da meia-noite da passagem do ano, celebrada pelo cardeal Cerejeira, um grupo de fiéis comunicou-lhe, através de um texto que lhe foi lido, a sua decisão de permanecer no interior da igreja até ao dia seguinte, em clima de reflexão sobre a paz, na situação de guerra como era a de Portugal. Para esta vigília a poetisa Sophia de Mello Breyner tinha composto o poema que depois se celebrizou “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. Ouviram-se muitos testemunhos de vários dos presentes, entre eles jovens que tinham combatido nas colónias, e sustentou-se um vivo debate com o pároco da igreja, que também permaneceu, com a intenção de impedir a vigília. Na manhã seguinte, os fiéis saíram da igreja já sob a vigilância da PIDE, que todavia, para não dar alarde ao caso, não efectuou prisões. Passados três anos sobre este acontecimento, na vigília da Capela do Rato, iniciada em finais de Dezembro de 1971 [1972], repercute-se o crescente mal-estar provocado pela continuação de uma guerra injusta e sem saída, que se verificava agora em meios muito mais alargados. A sua preparação foi mais organizada e previa-se um jejum de três dias, a observar pelos ocupantes, segundo uma declaração lida por Maria da Conceição Moita na tarde do dia 29. Ao mesmo tempo, decidia-se abrir as portas da capela a todos aqueles, crentes e não crentes, que desejassem debater o tema da guerra. A coordenação de toda a acção foi assegurada por Luís Moita, que pediu a colaboração das Brigadas Revolucionárias, organização clandestina chefiada por Carlos Antunes e Isabel do Carmo, com a missão de divulgar o acontecimento na região de Lisboa, o que foi feito através de panfletos. A escolha da Capela do Rato, situada na Calçada Bento da Rocha Cabral, para esta acção ficou a dever-se ao facto de se tratar de um local de culto dirigido pelo padre Alberto Neto, frequentado pelos meios mais inquietos da comunidade católica, e que se tornara conhecido pelas inovações litúrgicas e pelas preocupações de ordem social promovidas e proclamadas por aquele sacerdote. Para o dia 1 de Janeiro de 1972 [1973] a palavra de ordem de Paulo VI era imperativa: “A paz é possível, a paz é obrigatória”. No decurso da sua mensagem, o Papa proclamava que era através do diálogo, e não da guerra, que se deviam procurar as soluções para os conflitos. Tal como em ocasiões anteriores, e perante a atitude da hierarquia católica portuguesa que silenciava as directivas de Roma nesta matéria, o grupo de católicos que promoveu a vigília assumia por inteiro aquela palavra de ordem e propôs-se tirar dela consequências práticas. Nos dias 30 e 31 de Dezembro as portas da capela estiveram abertas de par em par, sem prejuízo no entanto para os ofícios religiosos habituais os fins-de-semana. Centenas de pessoas improvisaram assembleias de discussão, testemunhando o seu ódio à guerra, dissertando sobre os inconvenientes morais e materiais que ela produzia e proclamando a necessidade urgente de lhe pôr cobro, sublinhando o seu carácter injusto. Afixados nas portas, diversos cartazes transcreviam números relativos aos mortos em combate, às populações das colónias dizimadas e aos estropiados de ambos os lados. Mas a repressão não tardou. Ao fim do dia 31, perto da hora do jantar, fez-e uma pausa nas discussões, enquanto cerca de cinquenta pessoas permaneciam na capela. Foi nesta altura que se começaram a ouvir ruídos de carros da polícia de choque, acompanhados do latido de cães-polícia, e fez-se o cerco ao local. Os polícias penetraram no templo e, arrastando à força algumas pessoas que resistiam, levaram todos os assistentes para a vizinha esquadra do Rato, onde foi feita uma primeira triagem. A maior parte foi levada para os calabouços do Governo Civil, onde se deu a passagem do ano. Na manhã do dia seguinte, dezasseis de entre eles foram entregues à PIDE, que os levou para o Forte de Caxias. Foram aí submetidos a interrogatório, mas não torturados e ao fim de um máximo de quinze dias libertados sob caução. Estes processos não tiveram seguimento, talvez com o intuito de não empolar o caso. Entretanto, e devido à importância pública que os acontecimentos tinham provocado, a Censura não os pôde calar, reproduzindo os jornais uma nota oficiosa cheia de diatribes contra os manifestantes, acusando-os de subversão, traição à Pátria, etc. Alguns dias depois o caso foi mesmo levantado na AN [Assembleia Nacional], onde se assistiu a um acalorado combate verbal entre o deputado ultra Casal-Ribeiro e o da ala liberal Miller Guerra. Este deputado teve a coragem de dizer que não se tratava apenas de um pequeno grupo de agitadores, mas que os ocupantes da capela traduziam um mal-estar crescente e alargado acerca da guerra, e que eram tão fiéis da Igreja como outros. No entanto, a repressão não ficou por aqui: cerca de quinze pessoas que foram identificadas pela polícia e que eram funcionários públicos, entre os quais o professor de Economia Pereira de Moura, foram alvo de processos disciplinares conducentes ao seu despedimento. O cardeal-patriarca publicou um comunicado criticando a ocupação e demitiu de capelão o padre Alberto Neto, não obstante este não se encontrar presente durante os acontecimentos, por motivo de doença. Por uma trágica coincidência, nestes dias da ocupação da Capela do Rato. O Exército português em Moçambique massacrava as populações civis das aldeias de Wiriyamu e Chawola, uma operação militar que havia de custar caro à sua credibilidade internacional. Estes massacres foram conhecidos apenas alguns meses mais tarde, através de denúncias feitas por missionários. O caso da Capela do Rato, como ficou conhecido, não deixou de ser referência para acções posteriores de combate à guerra em África e teve projecção internacional, manifestando o descontentamento de parte da população portuguesa contra o seu prosseguimento. Tratou-se de uma acção que se inscreveu na actividade dos chamados “católicos progressistas” contra a guerra colonial, que se vinha desenvolvendo desde 1963 com a publicação do jornal clandestino «Direito à Informação» e continuada no final da década com os «Cadernos GEDOC», animados pelo padre Felicidade Alves, demitido de pároco de Belém. Por esta altura, o mesmo grupo, que se alargara a vários pontos do país, nomeadamente à cidade do Porto, onde também se desenvolviam acções de consciencialização face ao problema da guerra, criou em Lisboa um centro clandestino de informação e divulgação que deu origem, a seguir ao 25 de Abril, ao CIDAC, organização não governamental de cooperação com as antigas colónias. É de salientar neste contexto a acção do padre Mário de Oliveira, pároco de Macieira da Lixa, capelão militar que recusara a guerra, e que foi por duas vezes preso e julgado em Tribunal Plenário. Toda esta acção tinha em vista abrir uma brecha nas posições da hierarquia católica, que não ousava confrontar-se com o Governo, ignorando sistematicamente as directivas do Vaticano acerca dos problemas da paz e da guerra.
BIBLIOGRAFIA: «Diário das Sessões», AN, Janeiro 1972 [1973]
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Capela do Rato, Vigília da”. BARRETO, António; MÓNICA, Maria Filomena (coord.). Dicionário da História de Portugal, vol. VII. Porto: Livraria Figueirinhas, 1999-2000, p. 230
A ocupação por um grupo de católicos da capela do Rato, situada na Calçada Bento da Rocha Cabral, a partir de 29 [30] de Dezembro de 1972, destinava-se a durar até ao dia 1 de Janeiro e pretendia responder à palavra de ordem do Papa Paulo VI para o Dia Mundial da Paz. Essa palavra de ordem era naquele ano imperativa: “A paz é possível, a paz é obrigatória”. Como vinha sendo habitual, os bispos portugueses ignoraram esta directiva da Santa Sé, por lhes trazer incómodos a que não queriam expor-se no contexto de ditadura em que se vivia. Ela foi porém assumida por um grupo de frequentadores habituais da capela do Rato, local de culto inovador nas práticas litúrgicas e aberto às preocupações de ordem social, dirigida pelo padre Alberto Neto. Esta iniciativa da capela do Rato veio na sequência de uma outra vigília organizada anos antes, em 1 de Janeiro de 1969, na igreja de S. Domingos, também para celebrar o Dia Mundial da Paz. Um grupo de católicos decidiu permanecer durante toda a noite na igreja, a seguir à missa celebrada pelo Cardeal Cerejeira, avisado da ocorrência, mas que não encontrou maneira de se lhe opor. Não houve nessa altura repressão policial. A ocupação da capela do Rato obedeceu a uma preparação minuciosa e que contou com a participação das «Brigadas Revolucionárias», que se encarregaram da distribuição de panfletos na região de Lisboa. Depois de dois dias [um dia] de acesos debates, pois as portas foram abertas a crentes e não crentes, a vigília foi interrompida pela intervenção da Polícia de choque ao fim do dia 31, que prendeu todos os presentes, os quais foram identificados na vizinha esquadra do Rato. De entre eles, 16 [14] foram entregues à PIDE, que os levou para o forte de Caxias e mais tarde libertados sob caução. Mais de uma dezena de participantes na vigília, que eram funcionários públicos, foram objecto de processos disciplinares e demitidos. Tanto o Governo como o Patriarcado fizeram publicar notas oficiosas condenando os participantes na vigília e o Padre Alberto Neto foi destituído do seu cargo. O caso não pôde ser silenciado pela Censura e chegou mesmo à Assembleia Nacional, dando lugar a um aceso debate entre o deputado da União Nacional Casal Ribeiro, que acusava os ocupantes de traidores à Pátria, e o deputado pela ala liberal Miller Guerra, que justificava a sua atitude. O caso da capela do Rato teve assim ampla repercussão pública, tanto no País como no estrangeiro, traduzindo o mal-estar crescente perante o prosseguimento de uma guerra sem saída).
BIBLIOGRAFIA: O Caso da Capela do Rato no Supremo Tribunal Administrativo. Porto, Afrontamento, 1971. PEREIRA, Nuno Teotónio – Tempos, Lugares, Pessoas. Matosinhos: Contemporânea, 1996. PORTUGAL. Assembleia Nacional – Diário das sessões. Lisboa: Assembleia Nacional, 1973. Sessões de 15, 17 e 23 de Janeiro de 1973.
Elogio do doutorando Honoris Causa Nuno Teotónio Pereira, por Nuno Portas
Universidade do Porto – Faculdade de Arquitectura, 22 de Janeiro de 2003
Incumbido de apresentar nesta ocasião os perfis de dois personagens maiores da arquitectura europeia do último meio século – que, por proposta da Faculdade de Arquitectura, a Universidade do Porto escolheu homenagear para exemplo dos mais novos – e de justificar o sentido dessa escolha, peço antecipadamente a vossa compreensão para a inabilidade com que o farei: por ter vivido demasiado perto de um e por ter estado demasiado longe de outro e também porque a admiração e o afecto que me ligam há muito a ambos me tornar difícil retratar um e outro nos breves quartos de hora protocolares desta cerimónia. Que me desculpem as falhas os nossos doutores e os nossos convidados.
Uma palavra inicial para explicar porque propusemos juntar no mesmo acto estes dois reconhecidos protagonistas ainda que sediados em países diversos, que raras vezes se terão cruzado, e que tiveram papéis profissionais e teóricos notoriamente distintos embora, a meu ver, mais paralelos do que divergentes.
E a razão mais simples reside no papel que, em ocasiões diferentes, ambos assumiram de reconhecimento da escola de arquitectos do Porto, tornando-a mais visível num caso ao país, noutro à Europa.
Primeiro no tempo, Teotónio Pereira foi um “regionalista critico” (avant la lettre…) que, desde a saída da escola de Lisboa, teve a percepção das afinidades com as preocupações dos seus companheiros de geração da escola do Porto e por isso estabeleceria em diversas ocasiões as primeiras pontes entre Norte e Sul, já então em torno do dualismo da modernidade e da tradição – do global e do local, ou do glocal, como hoje diríamos.
Depois Vittorio Gregotti que se iniciaria como crítico e publicista numa das mais influentes revistas de tendência da altura, defendendo a pluralidade do “moderno”, quer das suas origens quer das suas geografias, e que uma década mais tarde, através de o novo ponto focal de Barcelona, descobriria o grupo da escola do Porto e o grupo “sem escola” de Lisboa.
Ambos não abandonariam as pontes então lançadas e ambos estão aqui como prova do nosso reconhecimento ou seja, da nossa memória.
Nuno Teotónio Pereira, nascido nos primeiros anos da década de vinte – tal como Távora ou Taínha, entre outros arquitectos a diferentes títulos notáveis (de tal forma que poderíamos falar de um verdadeiro “vintage”!) – inicia a vida pública de jovem arquitecto aparecendo no histórico Congresso Nacional dos Arquitectos de 48 a tratar da questão da habitação após ter co-traduzido para o português, a Carta de Atenas de Le-Corbusier e enquanto projectava uma notável igreja no interior do País que constituiria (se não erro), o primeiro sinal do confronto assumido positivamente entre “modernidade” e “tradição”.
Não pretendo, nem poderia fazê-lo, percorrer o rosário das suas numerosas obras significativas , mas simplesmente lembrar o que para muitos de nós, mais novos, foi um exemplo de contínuo compromisso com o país real – e de luta, até ao sacrifício pessoal, para mudar o contexto social e político, das arquitecturas e de muito mais que a Arquitectura. E, em paralelo, de compromisso com a própria arquitectura, confrontando as pessoas e os sítios através de um método aberto que tornou possível o projecto de grupo envolvendo nas suas obras diferentes gerações e disciplinas. Para os que com ele colaboraram, essa prática foi a “escola” que os de Lisboa não tínhamos tido – sem que essa arquitectura de investigação colectiva paciente e crítica tivesse por isso que ser menos arquitectura com autor.
A investigação sobre a casa e o bairro – o tema mais constante do anos 50 aos 90 – pode ser lida em dezena e meia de conjuntos habitacionais de promoção pública em varias cidades e regiões – primeiro nas Caixas de Previdência, depois nos Olivais Norte e Sul e no Restelo, em Lisboa e finalmente no programa PER em Oeiras, formando uma riquíssima e consciente experimentação sobre a tipologia, a construção e os traçados urbanos.
A que há que juntar ainda no início dos anos 50, o emblemático edifício colectivo das Águas Livres inovador a vários níveis, do programa à organização e à linguagem (cor) não por acaso permitido por um claro plano de pormenor de Manuel Taínha que, infelizmente, não pode apadrinhar este acto.
Se me é permitido um testemunho pessoal diria que sem esse trabalho laboratorial que Teotónio Pereira nos propiciou, não teria sido provável, por exemplo, a abertura no LNEC de um sector de investigação interdisciplinar a partir de 63, devido à iniciativa de RJG [Ruy José Gomes] e para onde levei metade do n/atelier… nem a experiência do programa SAAL dos anos da Revolução, que ambos tínhamos imaginado possível, nem talvez a criação dos GAT que tinham tido um precedente na desconcentração de técnicos com autonomia para as várias regiões posta em prática quando Teotónio Pereira era consultor da Federação das Caixas de Previdência em pleno Estado Novo e por onde passaram nomes depois notáveis que me abstenho de enumerar.
Em paralelo com a habitação, Teotónio Pereira tinha , como lembrei, construído a primeira igreja “reformadora” – do conceito litúrgico até à linguagem arquitectónica – e a partir dos anos 50 polariza uma rede de jovens arquitectos e eclesiásticos que se propõe conjugar esforços na linha e João XXIII e, entre outros, do então Bispo do Porto, e lançar o Movimento de Renovação da Arte Religiosa que influenciou, através de exposições e debates, as mentalidades dominantes e daria à arquitectura moderna portuguesa (neste caso dos edifícios ou de assembleia colectivos) numerosas oportunidades de projectos interessantes que a encomenda oficial então negava. Para esse acervo ele próprio contribuiria ao longo da década de 60 com as conhecidas igrejas de Almada e, sobretudo, pela sua complexidade, a do centro da capital.
Também neste campo a procura de uma linguagem arquitectónica que se queria mais realista (ou menos abstracta em relação ao contexto geográfico, histórico, sócio-cultural) – e o adjectivo realista, se não erro, é do seu companheiro de geração talvez mais próximo, Manuel Tainha – não pode separar-se da atitude de intervenção que Teotónio Pereira manteve incansavelmente – antes mas também depois do 25 de Abril – quer no ambiente da profissão e da cultura, quer no dos direitos cívicos e pela paz, de Angola e de Timor.
E ainda posso testemunhar como o período de mais intensa produção de um atelier que sempre foi pequeno e coeso, coincidiu com o tempo dos maiores riscos do seu líder na luta pelas liberdades e contra a guerra colonial que o empenhou pessoalmente até à cadeia, de que o 25 de Abril o libertaria e na qual chegaria a desenhar peças importantes, como o sacrário, para Igreja em construção.
Conquistada a democracia, Teotónio Pereira não deixa de, a par de uma actividade de projectista agora menos intensa, se desdobrar ao serviço da organização da profissão (lançando um processo que levaria à Ordem dos Arquitectos) e a publicar artigos de opinião com maior frequência sobre as políticas urbanas e regionais e, até a realizar trabalho de investigação à habitação popular desde a 1ª industrialização em Lisboa.
Sinto que não terei dado o retrato que Teotónio Pereira merecia na hora deste acto académico que é de admiração e de justiça a alguém que, nunca tendo sido académico (porque não procurou sê-lo e não o deixaram sê-lo) foi um mestre de gerações (dos que trabalhassem ou não com ele) que aprenderam como a racionalidade dialogante que ele praticava podia ser a condição do compromisso realista que sempre defendeu – o da linguagem arquitectónica com a sociedade que a pede e dela se apropria. E ainda pelo que fez por um país mais livre e solidário e uma profissão como a nossa mais responsável.
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Habitação colectiva: pluri-familiar: agrupada”. Original impresso, 4 p.
Comunicação em Conferência promovida pela Universidade Autónoma de Lisboa, 2 jun. 2004
HABITAÇÃO COLECTIVA: PLURI-FAMILIAR: AGRUPADA
A chamada Habitação Colectiva ou Pluri-familiar pode assumir diversas tipologias e densidades que são exemplificadas por variadas formas de agrupamento projectadas ao longo da 2ª metade do século XX pelo nosso atelier. As diferentes soluções arquitectónicas, em que predomina a habitação social mas incluem também empreendimentos privados ou cooperativos, mostram que a intensidade do uso colectivo não depende tanto das formas de agrupamento – blocos, torres, bandas – mas da incorporação no projecto de espaços ou serviços comuns previstos nos respectivos programas ou presentes nas intenções dos projectistas. Dos exemplos apresentados dá-se especial relevo aos dois mais recentes, construídos pelo município de Oeiras e que foram premiados pelo Instituto Nacional de Habitação.
O termo “habitação colectiva”, muito usado, talvez inapropriadamente, pelo Movimento Moderno em inovadores e por vezes panfletários projectos nos anos 20/40, deveria com rigor aplicar-se a edifícios destinados a alojar colectividades ou conjuntos de pessoas a viver em comum. É o caso de internatos, conventos, quartéis, pensionatos, lares de idosos, etc. É por isso que, numa terminologia mais correcta, o termo adoptado seja normalmente o de “habitação pluri-familiar”, por oposição à moradia ou vivenda destinada a um só agregado. No entanto, hoje em dia, a realidade mostra que em edifícios desse tipo uns tantos alojamentos (ou células, fogos ou apartamentos) sejam ocupados por pessoas sós.
É por todas estas razões, e também pela diversidade das soluções abrangidas, que o termo mais adequado poderia ser simplesmente o de “habitação agrupada”. Isto, porque, no que respeita a tipologias arquitectónicas, seja habitual falar-se em “formas de agrupamento”, as quais, na gíria profissional, se podem organizar na horizontal (usando o francesismo “banda”, que fez desaparecer o portuguesíssimo “correnteza”), na vertical (torre), ou ainda nas duas dimensões (bloco).
Estas precisões terminológicas têm sobretudo a ver com a conformação física ou construtiva dos edifícios. Porque, se forem tidos em conta aspectos de ordem funcional, pode dizer-se que, qualquer que seja a forma de agrupamento, o carácter colectivo pode variar consideravelmente de intensidade – ou estar mesmo ausente, como será o caso de um conjunto de moradias em banda. Por isso se pode falar de habitação “mais colectiva” ou “menos colectiva”.
Nos exemplos que ilustram a presente comunicação, e que se estendem ao longo de 40 anos de trabalho, podem encontrar-se diferentes formas de agrupamento e também casos de elevada, média e baixa intensidade colectiva. E não deixa de ser interessante verificar as semelhanças entre a solução mais antiga (Braga, 1950) e as mais recentes (Oeiras, 1990). Isto, porque se trata de conjuntos de edifícios alinhados de 4 pisos, dotados de escada central, com dois fogos por piso, e que de “colectivo” apenas têm a estrutura e o envólucro, os acessos (entrada e escada) e as infraestruturas (água, gás, electricidade e esgotos). É assim que a presente comunicação, constituída por uma viagem através de soluções apresentadas por ordem cronológica e que foram variando, não só de acordo com o contexto e o programa, mas também segundo concepções muito datadas dos modos de habitar, poderia ter como título “Do esquerdo/direito ao esquerdo/direito”.
Efectivamente, da análise sequencial dos exemplos apresentados ressalta com muita nitidez a evolução das soluções adoptadas para o sistema de acesso aos fogos, sobretudo nos projectos de habitação social, traduzidos geralmente em galerias exteriores, propiciando o convívio entre os moradores. Esta questão tem a ver com a preocupação de manter as relações de vizinhança existentes nos bairros de origem ou mesmo de as favorecer, de acordo com práticas de ajuda mútua entre famílias de baixos rendimentos.
Olhando mais tarde para tais soluções, verificou-se que se tratava de uma “mitificação” do social, e por isso elas foram progressivamente abandonadas, chegando-se à conclusão que os moradores – e sobretudo os da segunda geração – ambicionavam viver em casas como as de “toda a gente” – isto é, como as da produção imobiliária corrente. Esta percepção, para a qual contribuíram as leituras do sociólogo francês Chombart de Lauwe, veio a ser plenamente confirmada mais tarde, verificando-se hoje que aqueles espaços de “socialização”, mais não servem do que para acesso às habitações.
1. Conjunto de Casas de Renda Económica – Braga, 1950
Solução simples de esquerdo/direito. As caves, com acesso pela fachada posterior, são aproveitadas, não para garagens, como hoje seria óbvio, mas para arrecadações ou até pequenas oficinas, dado que os destinatários não sonhavam um dia poderem ter acesso a um automóvel.
2. Bloco das Águas Livres – Lisboa, 1953
Neste projecto procurou-se levar ao máximo os espaços e serviços colectivos para os moradores, nada usuais na época. Para além de lojas de primeira necessidade (hoje votadas a outros usos, por falta de rentabilidade), desde logo garagem, arrecadações, lavandaria, jardim e sala de condóminos dotada de um amplo terraço. E, para além disso, recepção, evacuação de lixos, monta-cargas para mobílias e fornecimento de água quente, dispensando assim os esquentadores domésticos.
3. Unidade de Habitação Cooperativa – Lisboa, 1954
Conjunto residencial de carácter social, incluindo serviços de apoio às famílias, como infantário. Galerias exteriores de distribuição, como forma de reduzir o custo dos acessos e de favorecimento do convívio entre vizinhos.
4. Torre de habitação de renda económica – Olivais, Lisboa, 1957
Grande desafogo conferido aos patamares de distribuição (4 fogos/piso), proporcionando envidraçados com amplas vistas, banco e obras de arte, por forma a torná-los espaços convidativos para o convívio. Cobertura em terraço com pequenas arrecadações e estendais para grandes peças de roupa.
5. Edifícios em banda de renda económica – Olivais, Lisboa, 1957
Edifícios simples de esquerdo/direito, mas dotados, frente a cada entrada, de construções satélites destinadas a arrecadações individuais e a um espaço alpendrado, também para proporcionar condições de convívio entre os moradores.
6. Conjunto de renda económica – Barcelos, 1958
Solução de habitação agrupada na orla da cidade, em que o carácter colectivo está quase ausente, pois trata-se de unidades de alojamento sobrepostas mas com acesso independente da via pública e dispondo de logradouros privativos.
7. Blocos de habitação social – Olivais Sul, Lisboa, 1962
Conjunto de edifícios em que é dada particular ênfase às galerias de distribuição, funcionando à época como zonas de convívio. Em alguns dos pisos térreos foram projectados espaços destinados a fins diversos, como garagens, oficinas ou lojas.
8. Urbanização do Restelo – Lisboa, 1970
Conjunto residencial promovido para a classe média, estruturado em quarteirões semi-abertos e integrando duas tipologias distintas: bandas de moradias e blocos multi-familiares nos quais predominam os fogos duplex e em que uma única galeria foi prevista como rua elevada, para acesso aos pisos superiores, já sem quaisquer intenções de espaço de convívio.
9. Conjunto habitacional de Laveiras/Caxias, Oeiras, 1987
Blocos pluri-familiares para realojamento alinhados ao longo de arruamentos seguindo os desníveis do terreno e por forma a favorecer a consolidação do tecido urbano envolvente, ainda em construção. Módulos de construção com escada central e dois fogos/piso. Aproveitamento do declive para multiplicar os logradouros privativos e estruturas anexas a concluir para garagens, oficinas, etc. Piso térreo da artéria principal dotado de galeria comercial.
10. Conjunto habitacional do Alto da Loba, Oeiras, 1990
Destinado a realojamento, com quarteirões mais compactos e utilizando módulos de esquerdo/direito. Espaços térreos previstos para comércio. Tal como no projecto de Laveiras, ausência dos chamados “espaços verdes” de carácter residual, em favor dos logradouros privados e concentrando o espaço público em pequenos largos.
Nota sobre co-autorias
2. Bartolomeu da Costa Cabral
3. Bartolomeu da Costa Cabral
4. Nuno Portas
5. António Freitas
7. Bartolomeu da Costa Cabral
8. Nuno Portas, Pedro Botelho, João Paciência
9. Pedro Botelho
10. Pedro Botelho
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Para que a casa volte a estar na cidade”. Textos e Pretextos, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nº 6, mar. 2005, pp. 102-105.
Republicado em Lisboa: temas e polémicas. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2011, pp. 149-151
PARA QUE A CASA VOLTE A ESTAR NA CIDADE
Logo pela manhã, o sol oblíquo de Inverno inunda a casa com uma luz que aquece. Aproximo-me da janela e olho para a praceta, onde há árvores e gente que passa. Param carros por uns instantes, com mães apressadas a ir para o emprego e que deixam os filhos no infantário aqui ao lado. Logo chamo o elevador e saio também para o trabalho, mas há umas compras rápidas a fazer no supermercado do bairro e, a seguir, a banca dos jornais, aproveitando os semáforos para a primeira olhadela, o que, antes da artrose no joelho, fazia durante a viagem no metro. Arranjo um lugar para estacionar (aproveitando a vaga deixada por algum residente que sai de casa nessa altura), compro tabaco na loja da esquina e subo ao 3º andar, ajudado pelo corrimão, e olho outra vez pelas janelas, de onde vejo as árvores do Jardim Botânico. Janelas, gente, prédios, lojas, trânsito – tudo isto prolonga a casa, é-me familiar. Por isso, não posso conceber a casa sem vizinhos, sem bairro, sem cidade.
Este sentimento vem já desde os tempos da Lapa, bairro de ricos, pobres e remediados, também a espreitar para o Tejo, com a mercearia da esquina, a capelista da “Velha” e a estação dos correios num vulgar 1º andar, onde o funcionário teclava os telegramas em Morse. O percurso para o Liceu, pela rua que já tinha sido da “Bela Vista” e, depois, atravessando o Jardim da Estrela, onde os guardas não deixavam os homens andarem em “mangas de camisa”, nem que a rapaziada corresse pela relva. Entretanto, por vezes aos sábados, quando nas escolas já havia “semana inglesa” mas no trabalho ainda não, acompanhava meu Pai ao escritório, em S. Paulo, descendo o Quelhas e apanhando o eléctrico no Conde Barão. Era no tempo em que este meio de transporte servia as mais diversas classes sociais e que as senhoras da Estrela usavam para ir às compras no Chiado. E era também de eléctrico que, em certos domingos, íamos visitar os primos de Benfica ou então até ao fim das linhas, prosseguindo depois a pé, para que eu conhecesse Lisboa.
Alguns anos mais tarde, estudante nas Belas Artes, comecei a frequentar os cafés do Chiado e a calcorrear a Baixa, vendo escritores consagrados às portas da Bertrand, artistas de renome em tertúlia na Brasileira e ainda banqueiros, advogados e médicos famosos a dirigirem-se a pé para os seus escritórios e consultórios.
Nos finais do curso de Arquitectura um grupo – pluridisciplinar, como se diria agora – de estudantes organizou um colóquio sobre a Cidade, algo que começava a preocupar-nos. Aí ouvimos Vitorino Nemésio, Caldeira Cabral, Orlando Ribeiro e outros mestres.
Começou depois a actividade profissional na construção do Bairro de Alvalade, onde arranjei casa com renda limitada, que me ficou para o resto da vida. Alvalade ganhou forma e vida e, anos mais tarde, uma nova centralidade em Lisboa. Mas ainda é bairro, com seus cafés – o Vá-Vá, a Suprema – mas o Tic-Tac de Vítor Palla já substituído por uma agência bancária e o seu cinema agora demolido. Bairro que tem resistido a ser bairro e por isso ainda gosto de viver aqui. E com o metro nos anos 60, que bom chegar num instante ao atelier, relembrando os velhos eléctricos, mas com grandes diferenças, além da rapidez. É que os ricos e notáveis não o usam. Só uma figura pública encontrava, de vez em quando, nas minhas deslocações casa-trabalho: o Salgado Zenha, que mantinha o seu escritório na Baixa. Com a vaga do automóvel, o Centro alargava-se às Avenidas e a cidade estratificava-se.
E depois veio a praga dos subúrbios-dormitórios. Legais para quem podia pagar casa com créditos bonificados e bairros clandestinos para quem as não podia pagar. E mais tarde os centros de lazer/comerciais, com climatização, seguranças à porta e estacionamento abundante, que foram deixando os jardins desertos.
É claro que houve boas excepções, como os Olivais, com zonas verdes usadas e núcleos de comércio animados, recriando os valores do bairro. Mas, na cidade, a especulação instalou-se e muitos prédios foram ficando vazios à espera dos lucros da demolição. E os carros, sempre cada vez mais carros, ocupando os passeios. E o comércio de bairro, e até o da Baixa, a definhar, com as ruas desertas desde o fim da tarde.
Há quem diga que a cidade agora não pode ser como a de outrora. É verdade. Espalhou-se pelas periferias e até para além delas: a cidade difusa. As pessoas só podem andar de carro (os transportes públicos todos os anos perdem quota relativamente ao automóvel). Porque moram num sítio, as escolas e infantários estão noutro, as compras ainda noutro, para além do trabalho. E começaram a aparecer os condomínios fechados, guardados por seguranças, de onde os moradores saem de carro, entopem as ruas, param nos infantários e escolas, descem às caves dos prédios onde trabalham e voltam à tarde, parando nos supermercados e outra vez nos infantários, entupindo mais uma vez as ruas. Tudo isto à custa de não me lembro de quantos por cento do PIB, da decrescente cobertura das importações pelas exportações, do aumento da poluição e da obesidade, do desperdício de tempo e do enervamento nas deslocações, do endividamento das famílias, da maior probabilidade de doenças cardio-vasculares, do colossal desperdício de capital fixo em prédios abandonados e infraestruturas sub-utilizadas, do desaparecimento das relações de proximidade e da sociabilidade do espaço urbano. E à custa ainda de investimentos públicos gigantescos em infraestruturas e equipamentos nas novas expansões, sempre tardios e insuficientes. E assim, cada vez há menos bairro, há menos cidade – e cada casa passa a ser uma ilha num mar inóspito. E com escolas a fecharem por falta de alunos.
Mas há quem não se resigne, reclamando o retorno à cidade, que agora, em verdade, é muito mais extensa e muito diferente da de outrora. Mas os valores da civitas podem ser recuperados, como se vê nas outras cidades da Europa. Começa entre nós a haver consciência disso, como o provam a recente legislação e novas prioridades camarárias, como a de Lisboa, favorecendo a reabilitação e modernização do edificado existente, em vez da construção nova – cada vez mais distante e dispersa, ocupando solos aptos para o cultivo e destruindo as paisagens.
Mas é preciso ir mais além: penalizar fiscalmente ou mesmo confiscar os milhares de andares devolutos (como se faz no estrangeiro), priorizar o investimento público nos transportes colectivos, restringir a praga dos centros comerciais, evitar a formação de guetos e integrar os que existem, proibir os condomínios fechados, proporcionar nos bairros estacionamento aos residentes, para que possam ter os carros à mão para escapadelas à noite ou passeios nos fins de semana. E, além de tudo isto, refrear a especulação imobiliária e fundiária e ir transformando os subúrbios desordenados e fragmentados em cidades com bairros, equipamentos, serviços, novas centralidades, servidas por bons transportes públicos.
Para que a casa volte a estar na cidade.
PEREIRA, Nuno Teotónio. [Habitação: um direito ou um negócio?]. Original manuscrito, 3 p.
Intervenção nas 1ªas Jornadas de Habitação, organizadas pela Plataforma Artigo 65, Lisboa, Teatro A Barraca, 24 fev. 2007
Publicado em Lisboa: temas e polémicas. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2011, pp. 161-162 [Com o título “1ªs Jornadas da habitação: Plataforma Artº. 65: Teatro A Barraca, 24 Fevereiro 2007”]
HABITAÇÃO: UM DIREITO OU UM NEGÓCIO?
1. Em primeiro lugar, cumpre-me saudar a realização destas Jornadas, que são uma prova da vitalidade e da abertura que a Plataforma 65 veio trazer ao debate sobre as questões da Habitação.
A tónica que procuro focar na minha intervenção resulta exactamente da verificação dessa vitalidade e dessa abertura, pois pretendo chamar a atenção para a importância da participação das comunidades de moradores na resolução do seu problema habitacional.
A verdade é que, percorrendo as longas décadas em que tenho acompanhado ou mesmo participado activamente nas questões ligadas à habitação, verifico que, com a excepção do período imediato após o 25 de Abril, com o SAAL, as políticas da habitação têm negligenciado essa participação dos moradores, tornando-se muitas vezes em processos exclusivamente técnico-políticos ou mesmo burocráticos. Foi assim que conduziram frequentemente a soluções erradas, como a massificação dos empreendimentos de habitação social no âmbito do PER, que se verificou de algum modo em Lisboa.
Tendo referido o processo SAAL, quero deixar claro que não me parece aconselhável retomar agora esse modelo, baseado nas Comissões de Moradores de um dado bairro degradado, como forma a aplicar hoje em dia. De facto, a complexidade dos problemas a enfrentar e resolver exige uma escala de intervenção mais ampla do que a que foi encarada naquele momento tão singular da nossa História. Por exemplo, a utilização das casas devolutas ou a reabilitar, e a necessidade de apontar para soluções duradouras que combatam a exclusão social, não se compadece com processos imediatistas, espontâneos e territorialmente limitados, como os que se implementaram naquela época.
2. É assim que se nos coloca o desafio de – apesar dessa complexidade e desse alargamento da escala de intervenção – encontrar uma metodologia que não ignore no processo formas de participação dos moradores, que podem torná-lo mais dinâmico e mais de acordo com as necessidades dos interessados. Isto, tanto mais que a utilização de casas devolutas, dispersas no tecido urbano – e que deve assumir um papel dominante na política de realojamento – tornará necessariamente mais diversificado e complexo, por exemplo, o regime de atribuição dos fogos e da fixação das rendas.
Ora bem: as soluções do problema da habitação, que, durante a ditadura, dependeram da Administração Central, passaram a ser, com a instauração do poder local democrático, executadas a nível municipal, embora de acordo com legislação necessariamente emanada do poder central. Creio que é a esse nível que a implementação dos processos deve continuar a ser conduzida, mas com uma condição: a de que seja criada uma estrutura participativa que possa fazer ouvir a voz de todos os interessados, quer instituições, quer os próprios moradores organizados em comissões. A par, evidentemente dos serviços públicos responsáveis – quer os de nível nacional, quer municipal, e ainda as SRU, Juntas de Freguesia, etc. O que se propõe é a criação de uma instância que se poderia designar por Conselho Municipal da Habitação, que pudesse ser a casa comum de todos os implicados e interessados em atingir os objectivos que estão definidos no artigo 65 da Constituição.
3. Outra proposta tem a ver com a dinamização do sistema cooperativo nos processos de realojamento e de requalificação urbana. Em vez de as novas habitações ficarem sob a administração municipal ou de empresas municipais, devia ser incentivada a criação de associações a funcionarem no regime de inquilinato cooperativo, como forma de a respectiva gestão – quer se trate de conjuntos já existentes ou a construir, quer de fogos dispersos ou em propriedade horizontal – ser assumida pelos próprios moradores. Assim se passará de uma forma de dependência tipo assistencial para um processo de auto-gestão, garantindo uma administração de proximidade, na qual os moradores assumiriam as suas responsabilidades.
Dentro desta mesma lógica, nos processos que, com muitas dificuldades, a administração central vem alienando o seu enorme parque habitacional, fosse dada prioridade às cooperativas. Isto, em vez de essa gestão ser entregue às Câmaras ou a fundações, como aconteceu há tempos com um bairro em Lisboa, cedido à Fundação D. Pedro IV, com resultados que revoltaram os moradores e que estão agora a ser reavaliados.
O cooperativismo habitacional está, felizmente, numa fase de crescimento sustentado no nosso país, com esplêndidas realizações de Norte a Sul, de que foi expoente o Congresso há meses realizado em Sintra pela FENACHE. É tempo, pois, de aproveitar os benefícios do sistema, aproveitando as suas capacidades para construir, requalificar e gerir, num quadro em que a participação dos interessados acumule com uma sólida experiência nesse campo.
Cerimónia de homenagem ao Arqtº. Nuno Teotónio Pereira
promovida pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU)
Lisboa, Teatro Thalia, 20 de dezembro de 2016
Senhor Secretário de Estado,
Senhor Presidente do IHRU,
caros amigos e amigas
Agradecemos a concretização desta homenagem e também a oportunidade de dizer algumas breves palavras.
Esta iniciativa faz-nos muito sentido. Fundamentalmente por duas razões: porque foi esta a instituição que o Pai escolheu para doar o seu património ligado à intervenção em arquitetura e urbanismo, o qual foi acolhido, preservado e disponibilizado com o maior profissionalismo, que aproveitamos a ocasião para agradecer; e porque uma boa parte da sua vida foi dedicada ao objeto do Prémio do IHRU: a habitação e a reabilitação.
Não vou recordar o percurso profissional do Pai, mas apenas lembrar que além de arquiteto de inúmeras obras, nomeadamente de habitações, em várias épocas e em vários pontos do país, baseadas em diferentes programas (unifamiliar, plurifamiliar, para pessoas com mais e menos meios, com predomínio da habitação social), ele foi também um investigador da habitação. Desde logo no âmbito do Inquérito à Arquitetura Popular em Portugal (1955) e mais tarde em Lisboa quando, com Irene Buarque, realizou um trabalho sobre a evolução dos prédios e vilas de Lisboa, em particular dos séculos XIX e XX (1995) e, ainda, quando coordenou uma equipa que deu origem à publicação “Montijo, um património a preservar: arquitetura doméstica de expressão protomoderna” (2008). Foi ainda, e sobretudo, um lutador pelo direito à “habitação para o maior número” – uma frase sua, que vem do I Congresso Nacional dos Arquitetos, em 1948 e que é igualmente o título de uma obra publicada pelo IHRU e pela Câmara Municipal de Lisboa, sob coordenação científica de Nuno Portas (2013).
Nos últimos anos manteve-se preocupado com a questão da habitação. Falamos muitas vezes das demolições, diria “selvagens”, de bairros no concelho da Amadora, dos despejos de inúmeras famílias provocados pela crise. Ainda hoje um jornal indicava que desde março de 2014 houve uma média de 5 famílias, por dia, despejadas das suas habitações. É um problema que não desapareceu, que se aprofundou com as políticas de austeridade – que o tornou deliberadamente invisível – que deixa profundas sequelas, e que temos de enfrentar, com lucidez e determinação.
Foi dos primeiros a insistir na necessidade de uma aposta séria na reabilitação. Em 1998 escreveu sobre a reabilitação nos bairros históricos de Lisboa e daí em diante foram muitos os artigos e intervenções sobre o tema. Hoje, a reabilitação está, felizmente, na ordem do dia. Mas exige uma mudança de mentalidades, de hábitos, de políticas. Lembro-me de uma inspirada conversa que tivemos, imprevista, há talvez 3 ou 4 anos, que tive pena de não ter gravado, sobre a formação dos arquitetos a esta luz, do que seria necessário alterar. Esta prioridade está em linha com a criação de sociedades mais justas e mais sustentáveis, mais equitativas. Com economias contra o desperdício, com um consumo responsável, em que produzimos menos, compramos menos e recuperamos mais.
Hoje celebramos particularmente as facetas de Nuno Teotónio Pereira ligadas à habitação e à reabilitação. Outras, inseparáveis, porque habitando e coexistindo na mesma pessoa, ficam na sombra: o urbanista, o articulista, o fotógrafo, o geógrafo amador, o militante católico de uma certa época, o ativista social e político de sempre… Traços comuns foram as fortes convicções e a determinação de as traduzir em práticas concretas. É disso que continuamos a precisar.
Luísa Teotónio Pereira
Por iniciativa de familiares, de colegas e amigos, vai este ano ser celebrado o centenário do nascimento de Nuno Teotónio Pereira, arquiteto e ativista político.
Nascido no seio de uma família tradicionalista (era sobrinho de Pedro Teotónio Pereira que foi ministro do Estado Novo e primeiro representante do governo de então junto de Franco, em Burgos), cedo foi tocado pela realidade em que o país vivia e pela ânsia de participar na mudança que se impunha.
Escolheu formar-se em Arquitetura na Escola de Belas-Artes de Lisboa, um curso e uma profissão que não tinham nessa altura o reconhecimento que hoje têm, mas que desde logo o terá colocado perante o problema da habitação para o maior número.
Ainda estagiário participou no 1º Congresso Nacional de Arquitetura, em Maio-Junho de 1948, com uma tese, juntamente com M. Costa Martins, intitulada “Habitação Económica e Reajustamento Social” e lá pode ler-se em conclusão:
“…é condição preliminar e essencial integrar na cidade as habitações da classe proletária, abandonando-se a construção de bairros exclusivos…declaramos acreditar que será necessário incluir objetivos de reajustamento social num programa que pretenda uma autêntica reforma da Cidade.”
Tinha então Nuno Teotónio Pereira 26 anos. Depois, sem rigor cronológico, aqui se refere que ajudou a fundar uma cooperativa de habitação de caráter popular; entendendo que a censura privava a população de uma informação honesta, fundou e colaborava ativamente na redação e distribuição de um jornal clandestino intitulado “Direito à Informação”; com o seu 4L, aproveitando-se da localização da sua casa em Marvão, “passou” muitos antifascistas para a liberdade; recolhia e fazia chegar às famílias dos presos políticos os donativos que a solidariedade de muitos originava; esteve em vigília pela Paz na Capela do Rato.
Foi preso e torturado pela PIDE e no dia 27 de Abril de 1974 foi dos que passou os portões do Forte de Caxias, liberto.
Discursou e foi aclamado no primeiro 1º de Maio em liberdade, junto de Álvaro Cunhal e Mário Soares, como representante dos católicos progressistas.
De Nuno Teotónio Pereira como arquiteto se poderá dizer que cada um dos seus projetos é uma manifestação de arte e humanidade, desde o Bloco das Águas Livres até aos edifícios construídos por iniciativa municipal nos Olivais Norte, em Lisboa. Pois sendo o primeiro destinado à classe média alta e os segundos a populações de menores recursos, com limites orçamentais tão distintos, para qualquer um deles convidou a colaborar artistas plásticos de igual gabarito.
E aqui nos arriscamos a dizer que os prédios dos Olivais são fundamento para afirmar que em Portugal o neorrealismo se manifestou na Arquitetura – no papel da família na organização interna dos fogos e, dentro da família, na posição igualitária da mulher ou na associação dos fogos, nos grandes patamares, nas galerias, nas generosas escadas, tudo espaços convidativos ao convívio vicinal e no desenvolvimento do sentido comunitário.
Francisco da Silva Dias
“A Voz do Corvo” – crónica de março, 2022
Publicada no jornal A Voz do Operário
Arquitetura e cidadania: a vida de Nuno Teotónio Pereira (2022)
Estarmos em Marvão, rodeados de tantos rostos amigos e muito particularmente da família do Nuno Teotónio Pereira, para recordarmos 52 anos depois um dos episódios marcantes da sua vida de militante cristão antifascista, é impressionante e mesmo comovente. Foi aqui em Marvão, precisamente, que o Nuno, juntamente com a sua esposa Natália, os seus filhos e mais alguns amigos, preparou a saída clandestina de Portugal de um pastor protestante e de um ex-carmelita que se recusavam a combater em Africa.
Eramos dois jovens idealistas, lacerados por um conflito íntimo entre a nossa necessária solidariedade com outros jovens que partiam para a guerra, angustiados, tal como nós, com a perspetiva de lutarem numa guerra injustificável e as nossas convicções totalmente contrárias à política colonial do nosso governo. No momento em que esse conflito íntimo mais se agudizou, decidimos desertar. É aqui que o Nuno intervém. Não nos conhecíamos verdadeiramente. Eu já o tinha cruzado em atividades culturais e religiosas, de dimensão ecuménica, frequentes durante os anos em que se estendeu o concílio Vaticano II e onde, pela primeira vez na história do nosso país, os protestantes portugueses eram considerados “irmãos” separados. Portanto, contactado pelo José Alberto Franco, o Nuno preparou o nosso itinerário a partir de Marvão até um local que julgou seguro. Ignoro quais eram as suas convicções no que diz respeito ao ato de deserção. Recordo simplesmente a sua compreensão e empatia. O acolhimento caloroso. O sentimento de segurança e de confiança que nos transmitiu. Ainda surgiram no nosso peregrinar outros “anjos da guarda”. Mas o Nuno tem um lugar especial nessa corrente protetora de que beneficiámos.
Como cristão e eclesiástico, não poderia recordar o Nuno nesta ocasião sem evocar as convicções espirituais em que se enraizava o seu ativismo político. Tal com muitos outros católicos “progressistas” dessa época perturbada, o Nuno transgrediu as regras que regiam a relação entre os católicos e o Estado português durante séculos, resistindo com coragem a um governo que, hipocritamente, se considerava representativo dos valores da civilização cristã. Fê-lo em nome desses mesmos valores, principalmente da mensagem bíblica sobre a dignidade de todos os seres humanos, da justiça e da libertação dos oprimidos, para lá das fronteiras das religiões organizadas. Permitam-me citar dois textos bíblicos que ilustram notavelmente o empenhamento do Nuno que, sendo cristão, foi primeiramente uma criatura humana solidária de outros humanos:
Na “parábola dos ateus” (Mateus 25:31-46), é-nos dito simbolicamente que o Senhor da História sentar-se-á sobre o trono da sua glória reunindo a humanidade à sua volta. Então, para surpresa dos crentes, ele dirá, entre outras coisas, aos que nunca o conheceram (aos sem religião ou aos ateus): Vinde, herdai o reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Eu tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, eu era estrangeiro e acolhestes-me, estava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava na prisão e viestes até mim. Então lhe responderão os justos, dizendo: Senhor, quando te vimos esfomeado e te alimentámos, ou quando (…) fomos ter contigo?…O Senhor responde: quanto fizestes a um destes mais insignificantes dos meus irmãos, a mim o fizestes.
O segundo texto bíblico, extremamente forte e belo, encontra-se em Isaías 58 onde nos é dito que os crentes, ao desejarem relacionar-se com Deus “jejuando”, isto é, praticando seriamente a sua religião, mas ignorando as exigências éticas de Deus, pervertem esse jejum ou essa religião. Lerei simplesmente algumas frases significativas: se jejuais por querelas e lutas e agredis com os punhos uma pessoa humilde… este não é o jejum que eu escolhi, diz o Senhor. Solta todo o grilhão da injustiça! Desfaz os nós dos contratos feitos à força! Manda embora, em liberdade os oprimidos! Rasga toda a nota de dívida injusta! Parte para o faminto o teu pão e leva os mendigos sem abrigo para tua casa…da tua casa não negligenciarás ninguém! Será então que desponta cedo a tua luz… e caminhará à tua frente a tua retidão. E a glória do Senhor te vestirá. Então gritarás e Deus ouvir-te-á. Enquanto falas, Ele dirá: “Eis que estou presente” … Então a tua luz se levantará na escuridão, e a tua escuridão será como o meio-dia! E estará o teu Deus contigo continuamente e serás preenchido, como deseja a tua alma.
(citações bíblicas traduzidas por Frederico Lourenço, “Bíblia”, Quetzal Editores, Lisboa, 2017)
Joel Pinto
Marvão, 27 março 2022
Era uma daquelas ideias loucas, mas era simpática, bonita até. Quando ele voltasse a Portugal, haveria de regressar pelo mesmo exacto caminho, haveria de repisar estrada a estrada, batendo, casa por casa, à porta de quantos o tinham acolhido na fuga. Quando um dia regressasse. Se regressasse. Porque a situação nacional estava, assim parecia, com modos de durar.
Para seu próprio descanso, prometera-se logo dez, quinze, mais anos de exílio. Era moço, sentia-se velho. E era esse o sentimento em que teria morrido se, em vez de atirar-se à deserção, houvesse embarcado para a guerra. Porque, tanto era certo, em 1970. na Guiné, aquele bocado de mundo para onde iam mandá-lo guerrear, a morte acabava por ser, de todas as hipóteses, a mais realista. Operação no mato, uma bala já de olho nele, e pronto. «O oficial, lá, é sempre o primeiro.» Ouvira, e acreditara. «Gajo inseguro, óculos, mais idade. Não engana.» Era de uma lógica mortal.
Decidiu deixar o País no preciso instante em que, no quartel, aparecerm afixadas as notas daquele segundo mês da «especialidade». Decepcionantes. Ele era bom em algumas coisas, se metessem lérias por escrito. Tivera mesmo, com base nisso, planos de classificação vistosa. «Um tipo bem classificado tem grandes chances de não ir», afiançavam-lhe. «Ou só vai no fim, e então é que elas doem. Mas vale a pena arriscar.» Certo. Só que havia testes de desmontagem e montagem da espingarda (a G-3 era uma espingarda? hoje já não tem estas certezas), e esse desempenho, de resto fundamental, revelara-se um alçapão. E fossem ele só as armas! A componente física, ginástica e assim, também ela não dera notas brilhantes. Vendo bem, só os exercícios de orientação nocturna – dropping num pinhal, um mapa sumário e fé na estrela – só eles mereciam menção. O seu grupo, cinco cadetes amigos, era de longe o mais bem classificado. E na unidade todos sabiam, o alferes e o capitão incluídos, que era a ele, à sua incompreensível bússola interna, que se deviam as chegadas às horas e aos postos certos.
Mas o panorama total era alarmante. Nunca ficaria entre os cinco, mesmo os dez, primeiros, ainda que batesse a malta de Coimbra, aqueles quinze indisciplinados universitários que a sabedoria militar havia mantido juntos no seu pelotão. É que bastantes outros lhe passariam à frente: os paisanos, esses a quem a cultura não atrofiara nem o senso prático nem os músculos.
Só muitos anos depois saberia que, ainda ele não cruzara os Pirenéus, já os revoltosos coimbrões estavam de regresso às carteiras. A saída deles transtornava toda a classificação final, deixando mesmo os melhores à beira da mobilização. Nem a genica natural nem o esforçado cerrar de dentes, nada haveria valido aos pobres.
*
Abandonou o país por uma bela tarde de Março de 1970. Já conhecia Marvão, só nunca a imaginara cenário de relevo na sua vida. Era lá que alguém que agora ia ajudá-lo tinha uma casa, um arquitecto da capital, Nuno Teotónio Pereira, que só nesse dia viria a conhecer. Bastantes foragidos haviam, antes dele, saído dessa primorosa mansão para irem «comprar chocolates» a Espanha. Acto ilegal, fraqueza lamentável, mas tão humanos que qualquer guarda-fronteira fecharia os olhos.
Iam um grupinho. O arquitecto e a mulher, um filho deles, porventura dois, um casal amigo a caminho de Cáceres, e mais uma pessoa, Joel Pinto, o jovem tranquilo que, na manhã dessa sexta-feira, em Lisboa, se lhe apresentara como pastor protestante, e ele soubera ir ser seu colega de aventura. Dias depois, descobririam que o pai de um e o de outro eram colegas na CUF.
Dessa surtida em território espanhol, restam boas recordações e uma excelente fotografia de grupo, provavelmente tirada pelo arquitecto.
Quatro anos mais tarde, em Lisboa – porque o exílio afinal só duraria isso – encontraria ele o arquitecto num comício do MESm uma extrema-esquerda moderada. E ele haveria de abordá-lo, e de agradecer-lhe, como quem agradece a um santo. O arquitecto, simpático, sorriu, mas não se lembrava dele. Um santo, nem mais.
Os chocolates, único gasto seu naquele dia, acabaram deveras comprados, e alguns comidos. Mas, na reentrada no país, faltariam ele e o pastor. Foram escondidos num matagal, e ficaram esperando que um carro, pela fronteira legal, os viesse buscar. «Duas horitas, e a gente vem apanhá-los.» Procedimento banal, mas ele não o sabia. Cento e vinte minutos podem levar eternidades a passar. Nem por teima, era aquilo uma Sexta-feira Santa, à exacta hora em que também o Outro aguentara horas, e em piores condições.
A madrugada de sábado achou-os em Madrid. O casalinho – José Alberto Franco e a namorada – que os resgatara no matagal e estava para deixá-los em Cáceres acabou por levá-los à grande capital, a uma casa de padres, perturbados no sono, mas logo solícitos. Um deles, ainda o sol não rompera, pegou no carro e meteu-se com eles a caminho da longínqua Barcelona. «De comboio, pela fronteira, nunca. É um suicídio», diziam-lhes, querendo demovê-los do plano inicial: passar a fronteira em Irun, na legalidade. E mais lhes disseram que, em Barcelona, havia alguém, um padre também ele, que conhecia palmo a palmo os Pirenéus, onde nascera, e que os poria salvos em França.
[Aproveito para recordar um susto (e, informo, em toda esta vadiagem por Espanha não havia ainda um quilómetro de auto-estrada). Na viagem para Cáceres, fomos parados pela Guarda Civil. Na troca de palavras com o Zé Alberto, surgiu a palavra denuncia, que nós, compreensivelmente, interpretámos da pior maneira, mas que, ali, se relacionava com uma eventual multa].
Chegaram à tardinha desse Sábado Santo à capital catalã. Foram entregues em nova casa paroquial, tão suspeita politicamente como a de Madrid, se não mais. Os senhores priores, entre si, falavam um impenetrável catalão, mas com eles condescendiam no castelhano. O tal padre fronteiriço apareceu horas depois. Vinha exactamente de uma caminhada pelas montanhas natais. «Combinado», disse ele. «Eu ponho-vos em França. De hoje a oito dias.» Oito dias! Outra eternidade. Mas não sobrava alternativa.
O valium é uma grande invenção. Uma invenção triste, mas a vida, às vezes, é uma tristeza toda ela. Doze horas de sono podem ser, e no caso ali eram, uma prenda inestimável. E, depois, até ao perigo uma pessoa se habitua. Já ao quarto dia eles iniciavam a volta turística de Barcelona. As Ramblas, Montjuic, o trivial.
E chegou o dia aprazado da fuga definitiva, domingo, o primeiro domingo de Abril. Eram as cinco da tarde quando, a dois mil e quinhentos metros, no cocuruto do monte que haviam subido, se lhes desdobrou ante os olhos o mais deslumbrante dos panoramas. De Oeste a Leste, quanto a vista abarcava, uma cordilheira refulgia, rosa e laranja, ao sol declinando. Os Pirenéus.
Não, a liberdade pode vir na mais fria das brumas, ter o cheiro da imundície, e será sempre uma bênção. Não era preciso ela chegar assim, nesse assombroso esplendor.
Desceram até à primeira aldeia francesa, La Preste, onde novo carro e novo sacerdote os esperava. Foram dormir a Montpellier, a um convento de frades dominicanos. O companheiro, Joel, decidiu ficar. Iria em breve demandar a Suíça, onde estudos de teologia, e depois a mulher, Margarida, o esperariam.
Ele, não. Era o Norte que o atraía. Ao terceiro dia, meteram-lhe na mão uma bucha, um bilhete de comboio e um endereço de convento dos mesmos pregadores em Paris.
Só que Paris era o que já se conhecia de filmes e bilhetes-postais, e por isso rumou ainda mais a norte, a outros países, outras gentes. Guarda hoje, ciosamente, o bilhete até Amsterdam. Por lá ficaria 47 anos, mas isso não o sabia ele.
Chegou à capital holandesa com o exacto dinheiro com que partira de Lisboa. Cinco mil escudos. Uma fortuna, num escudo ainda forte, que um casal católico progressista do Lumiar lhe emprestara. Ao fim de três meses de salários nórdicos, conseguiu devolver por inteiro o empréstimo.
*
Quando pôde regressar, numa amnistia no Natal de 74, fê-lo banalmente de avião. O peregrinar por terra, que se havia proposto, não foi esquecido, mas estava impraticável. Não guardara moradas nem de Paris, nem de Montpellier, nem de Barcelona, nem de Madrid. Não tivera esse cuidado, ele que tão lindos planos concebera. Não havia, assim, meio de agradecer àquela santa gente.
E, depois, o mais certo era todos eles, como santos verdadeiros, já nem dele se lembrarem.
Um forte abraço, Joel.
Um eterno obrigado, Zé Alberto.
À memória do arquitecto Nuno Teotónio Pereira
Fernando Venâncio
Março de 2022
Por José Manuel Fernandes
Uma caracterização
Numa das investigações por Nuno Teotónio Pereira, publicada na obra Prédios e vilas de Lisboa (1) o autor refere no último capítulo a “Influência do Movimento Moderno – dos anos vinte à consolidação do ‘Estado Novo”. Neste capítulo, denomina de “estilo nacional” a arquitectura dos prédios erigidos nos anos de 1940 e 1950, subordinados a uma estilística virada para o passado, retrógrada, inpregnada de valores sobretudo formais, com símbolos nacionalistas. Dá o exemplo das edificações das avenidas Sidónio Pais / António Augusto de Aguiar, que servira à CML para determinar um suposto modelo de fachada evocativa do século XVIII, a ser seguido pelos arquitectos autores de novas edificações.
José Augusto França, no seu livro A Arte em Portugal no Século XX (2), refere igualmente esta área e época de Lisboa e as suas arquitecturas de “novo cânone tradicionalista” (3) – que viria a designar, com algum humor e ironia, de estilo “setecentesco”, entre o tentame de um setecentismo historicista e o grotesco de uma imitação de formas fora do seu tempo.
No meu Português Suave – Arquitecturas do Estado Novo (4) tentei caracterizar esta “nova” arquitectura dos prédios lisboetas, num capítulo dedicado a “Invenção: os arquétipos formais”, onde seriei e exemplifiquei as expressões construtivas e arquitectónicas mais frequentes, como a do chamado “portal barroquizante”. Noutro capítulo, “Estruturação e seriação: os tipos funcionais”, nas páginas dedicadas à habitação, procurei caracterizar este tipo de edificações em termos mais gerais, não só para a capital mas para todo o país, e até para as colónias desta época (5): “ O prédio de rendimento (…) de inspiração joanina e pombalina (…) a composição simétrica dos volumes, a sua inserção em sequências de lotes justapostos, a tendência para a utilização de elementos e materiais tradicionais, pouco salientes das fachadas habitualmente lisas e de longos panos verticais, fazem do prédio do ´Português Suave´ um paradigma da edílica anti-moderna, retrocesso nos modos do novo urbanismo e da nova arquitectura ensaiados nos anos 1930 e retomados depois nos anos 1950.”
Mais adiante, no mesmo livro, descrevo os aspectos visualmente mais definidores (6): “embasamento em pedra; janelas aquadradadas de peito, e vãos de sacada com varanda de ferro forjado decorativo (preferencialmente no ´andar nobre´); portais estilizados em pedra, nos vãos térreos; coberturas telhadas, por vezes amansardadas `à Pombalino`, com uso de coruchéus triangulares.(…). Por vezes (…) uso de pináculos de remate superior, ou de colunatas de pedra na fachada; mais raramente, por sugestão de frontões nas fachadas e cimalhas.”
Os exemplos
No meu livro segue-se uma enumeração exemplificativa deste tipo de prédios fachadistas, como (pp.152 a 163): na praça do Saldanha (arq. Carlos Ramos); no gaveto da rua Alexandre Herculano / rua de Santa Marta; na praça do Saldanha ns 31 e 31-a (por João Simões); na avenida Sidónio Pais n.6 (por Rodrigues Lima e Fernando Silva), n.14 (por Reis Camelo) e n.16 (por Pardal Monteiro); na avenida António Augusto de Aguiar n.9 (por Jacobetty Rosa); e na rua Artilharia 1 n.105 (por João Simões).
Refiro ainda, no mesmo livro, o célebre e monumental prédio por Cassiano Branco no gaveto da praça de Londres; o prédio na rua Rodrigues Sampaio, com uma fachada mais classicizante, por Victor Piloto; a frente urbana de Campo de Ourique, com uma série de frontarias lote a lote, defrontando a igreja do Santo Condestável, por Raul Tojal; as sequências de fachadas ao longo da Alameda de Afonso Henriques; e o edifício no gaveto da rua do Salitre com a rua Castilho.
Verifica-se deste modo que este tipo de arquitectura se disseminou fortemente por toda a cidade, desde o arranque da década de 1940 e sobretudo ao longo da de 1950, quer integrado em programas de conjunto, quer em lotes isoladamente erigidos – mostrando a capacidade municipal e estatal, para divulgar e colocar “em moda” este tipo de arquitectura genericamente neo-tradicional. Os programas edificatórios, de facto, foram levados a cabo sobretudo por privados e servindo o “prédio de rendimento”.
As designações
Constata-se também que os diferentes investigadores deste tema utilizaram várias designações para definir ou caracterizar uma mesma arquitectura – “nacional” (por NTP), “setecentesca” (por JAF), ou “neo-tradicional e neo-conservadora”, e “arquitectura do “Português Suave” e do “Estado Novo” (por JMF); verifica-se mesmo assim que há uma convergência de “olhar crítico”, por estes autores, para além do uso da diversa terminologia, e que essa convergência tende a considerar este tipo de obras como formalistas, evocativas de épocas passadas, visando de algum modo expressões arquitectónicas nacionalistas e monumentalizantes – ou seja, trata-se quase sempre de uma arquitetcura enfática, proclamativa, solene.
A rua D. João V
O caso do conjunto arquitectónico neo-tradicional da rua de D. João V ao Rato / Amoreiras, traduz-se num exemplo interessante destas tipologias e destes sistemas formais, embora menos conhecido e divulgado – de facto, como o dito conjunto se situa cerca do famoso “Bloco das Águas Livres” de NTP e Bartolomeu da Costa Cabral – de que é sensivelmente (quase) contemporâneo, podemos, por clara observação comparativa, verificar todo um sistema de oposições, espaciais, formais, urbanísticas que separa ambos os objectos, ou exemplos, ou conjuntos.
Embora o conjunto da rua D. João V seja no seu todo mais modesto do que os exemplos atrás referidos, quer na escala, quer na elaboração de cada fachada, não deixa por isso mesmo de se tornar aqui especialmente relevante, pois representou de algum modo a vulgarização e a aceitação do modelo “setecentesco” na mancha da cidade, pelos seus contrutores das “obras quotidianas”.
Em termos de oposições e contrastes “de partido” entre ambas as edificações e conjuntos, repare-se em primeiro lugar na distinta atitude urbanística – enquanto na rua D.João V temos um exemplo de loteamento convencional, executado lote a lote, com os prédios encostados entre si, formando a tradicional “rua canal”, com oposição nítida entre a fachada representativa e “de prestígio” ou ostentação, e as traseiras ocultas à cidade – no caso do Bloco das Águas Livres há a afirmação de uma concepção de cidade aberta, com uma edificação isolada de grande escala, formando em si um sistema e uma visão de urbe nova, sem contraste entre fachadas e traseiras, sem imposição de estilos do passado. Enfim, trata-se de um representante da chamada “Arquitectura Moderna” do pós-guerra, realizado inovadoramente no coração de Lisboa.
O aspecto tecnológico e de programa espacial é outro tema, gerador de contraste entre as edificações da rua D. João V e o Bloco das Águas Livres: enquanto nesta rua cada prédio apresenta cerca de 4 a 5 pisos, dispostos no sistema convencional de esquerdo-direito, com acesso a partir de uma caixa de escadas central e do átrio de entrada em posição simétrica, utilizando por regra espessas paredes portantes de alvenaria, tradicionais, e cobertura telhada – já no Bloco a opção é por um sistema inovador, em grandes apartamentos com acesso por amplos átrios e escadas, elevadores e galerias de serviço, com utilização de uma estrutura onde o betão armado e as novas tecnologias da época, em geral, pontificam. A cobertura, em vez de telhada, é em terraço, permitindo a solução inovadora de ocupação por ateliers. Representa a concepção do “edifício-cidade”, autónomo e de grande efeito na paisagem urbana.
Finalmente, é a expressão arquitectónica, formal e decorativa, que contrasta as duas tipologias em apreciação: na rua D. João V os prédios recorrem nas frontarias às habituais molduras e temas decorativos, por artesãos anónimos, de sentido historicista (portais barroquizantes, vãos moldurados em pedra, arcos redondos) – enquanto no Bloco vigora a expressão abstracta das formas arquitecturais modernas, estruturais, sem decoração convencional, e onde a intervenção plástica se traduz em obras específicas, assinadas por autores modernos, como as peças por Almada Negreiros.
Finalizando, constata-se deste modo um total contraste, nos aspectos urbanísticos, espaciais e de programa, bem como nos formais e estilístcos, entre as arquitecturas dos prédios da rua D. João V, representativos da chamada “Arquitectura do Estado Novo”, de cunho ”nacionalista, setecentesco”, e a do Bloco das Águas Livres, livre exactamente na sua afirmada modernidade.
Notas
1 com Irene Buarque, ed. Livros Horizonte, 1995 (esgotado) e Evolução das formas de habitação plurifamiliar na cidade de Lisboa, ed. Câmara Municipal de Lisboa, 2017
2 ed. Livraria Bertrand, 1974
3 op. cit., p.254
4 ed. IPPAR, 2003
5 op cit, p.152
6 op cit, p.154
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Capela do Rato: a rebelião católica”. Público, 31 dez. 1992.
Republicado em Tempos, Lugares, Pessoas. S.l.: Contemporânea e Jornal Público, 1996, pp. 111-113
Os acontecimentos que há 20 anos se deram na capela do Rato, em Lisboa, pode dizer-se que constituíram um ponto marcante na atitude da comunidade católica face à guerra que desde 1961 estalara em Angola e que em 63 e 64 se estendera à Guiné e a Moçambique. Num mundo em que as guerras de libertação (Argélia, Vietname) provocavam conflitos regionais que pagavam o seu tributo à guerra fria entre as super potências, a Igreja Católica decidia comprometer-se nos esforços de paz, apelando aos crentes a que se reunissem no primeiro dia de cada ano com aquela intenção.
Passados estes 20 anos, podemos interrogar-nos por que razão em Portugal esta directiva do Papa não encontrava eco na Igreja oficial, tão pressurosa em seguir as indicações do Vaticano noutros domínios. De facto, contrapôr à guerra a via do diálogo e da negociação, como insistentemente tinham reclamado os movimentos de libertação, era trair a Pátria una e indivisível. Colocada nesta encruzilhada, a Igreja portuguesa fez a sua opção: mandou às urtigas os apelos de Roma e preferiu obedecer a César, colaborando anos e anos na campanha de desinformação e de silêncio que rodeava as guerras de África.
Esta atitude, contra a qual os católicos mais conscientes se iam rebelando, tinha a sua explicação. Dizer que a Igreja estava feita com o regime salazarista é pouco: na verdade, ela era parte integrante desse regime. Por isso se compreende a mágoa e a raiva do ditador em falar em defecções, quando alguns grupos de fiéis e o bispo do Porto procurara distanciar-se após a campanha eleitoral de Humberto Delgado.
Na realidade o Estado Novo integrou na sua constituição uma Igreja sequiosa de uma restauração, após as vicissitudes de 1910 e Afonso Costa. Mas a tragédia dessa Igreja é que após a geração do cardeal Cerejeira não soube desvincular-se do regime para poder viver a sua missão apostólica. Por isso falhou o concílio Vaticano II e reprimiu o dinamismo de movimentos cristãos que então despertaram na sociedade portuguesa. Foi assim possível ao deputado Casal Ribeiro, no debate da Assembleia Nacional a seguir aos acontecimentos da capela do Rato, declarar com inegável razão que não se tratava de católicos, mas apenas de “alguns católicos”.
As consequências desta demissão face às directivas da Igreja Universal no que tocava à situação de guerra concreta que era vivida no País não podem ser ajuizadas com rigor. Mas não se andará longe da verdade se se pensar que uma tomada de consciência séria sobre as origens e a natureza dessa guerra face aos apelos do Vaticano poderia ter mudado o curso dos acontecimentos.
Dispondo de um poder e de uma liberdade únicas no regime ditatorial, a Igreja poderia ter-se feito ouvir no sentido de que a via do diálogo substituísse a linguagem das armas, fazendo parar a tempo uma guerra que fez incontáveis vítimas. Aquilo que as Forças Armadas fizeram já tardiamente em 74 poderia a Igreja tê-lo feito muito antes, se fizesse seus os apelos que no dia primeiro de cada ano emanavam de Roma. Poderá até supôr-se que as dramáticas consequências de uma descolonização precipitada e os conflitos devastadores que têm assolado alguns dos territórios até hoje teriam sido porventura evitados. O que foi feito da “missão profética da Igreja” e da leitura dos “sinais dos tempos” em que João XXIII tanto insistia?
Foi neste contexto que a vigília na Igreja de S. Domingos em Lisboa no 1º de Janeiro de 1969 – quatro anos antes da capela do Rato – apelando a uma tomada de consciência face aos problemas da guerra em África, caiu em saco roto.
Nesta velada de S. Domingos, que se iniciou após a missa da meia noite celebrada pelo cardeal Cerejeira, ao qual foi na altura dado conhecimento das intenções dos organizadores, e que durou até às 6 da manhã, a Pide, embora informada, entendeu sabiamente não intervir, do que resultou um menos impacto do acontecimento. Mas foi publicada nos jornais uma nota do Patriarcado condenando a iniciativa , dizendo que a mesma trazia “grave prejuízo à causa da Igreja e da verdadeira Paz”.
No manifesto dos organizadores dizia-se que “todos nos deixámos instalar nesta guerra; que a admitimos como inevitável e imposta; que nos acobardamos sob a desculpa dos riscos que corre quem ousar pôr dúvidas à sua justiça e à sua legitimidade; que somos todos cúmplices de uma conspiração de silêncio à sua volta.”
E no entanto, a situação era tanto mais paradoxal quando se sabia que os católicos enquanto tais e acusados de delitos de opinião ou de manifestação não eram sujeitos a maus-tratos ou torturas na Pide, ao contrário da maior parte daqueles que se opunham ao regime. As sanções mais fortes ocorreram só no rescaldo da capela do Rato, quando onze funcionários públicos foram vítimas de demissão compulsiva. Isto mostra a grande margem de manobra que então existia para os católicos e consequentemente para a Igreja, para não falar na abundância de lugares de culto e de reunião e de publicações não sujeitas à censura, e que poderiam ter sido utilizados a favor da paz.
Passados vinte anos sobre os acontecimentos da capela do Rato, custa-nos a compreender por que motivo uma simples vigília organizada num local de culto teve tão ampla repercussão no país. Não seria natural que houvesse iniciativas do género em muitas igrejas portuguesas, ao cabo de onze anos de uma guerra que parecia eternizar-se e obedecendo a uma directiva muito concreta vinda do Papa?
Na verdade, alguns outros actos isolados se verificaram. Refira-se por exemplo, a distribuição de um manifesto em igrejas do Porto na vigília de 1 de Janeiro de 1969 e as atitudes desassombradas do padre Mário de Oliveira em Macieira da Lixa, que o levaram à prisão. E ainda as corajosas homilias do padre Felicidade Alves nos Jerónimos, e em Moçambique a acção do bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto, e dos Padres Brancos, de Burgos e do Macuti, denunciando os massacres feitos pelas tropas portuguesas.
As linhas que se deixam escritas procuram ser um contributo para a compreensão do caso, que foi, para muitos efeitos, uma pedrada no charco do silêncio cúmplice de uma Igreja que teimava na infidelidade à missão a que era chamada.
Os treze longos anos da guerra , até ao 25 de Abril, foram ainda assim demasiado curtos para que se operasse uma conversão.