PEREIRA, Nuno Teotónio. “Para que a casa volte a estar na cidade”. Textos e Pretextos, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nº 6, mar. 2005, pp. 102-105.
Republicado em Lisboa: temas e polémicas. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2011, pp. 149-151
PARA QUE A CASA VOLTE A ESTAR NA CIDADE
Logo pela manhã, o sol oblíquo de Inverno inunda a casa com uma luz que aquece. Aproximo-me da janela e olho para a praceta, onde há árvores e gente que passa. Param carros por uns instantes, com mães apressadas a ir para o emprego e que deixam os filhos no infantário aqui ao lado. Logo chamo o elevador e saio também para o trabalho, mas há umas compras rápidas a fazer no supermercado do bairro e, a seguir, a banca dos jornais, aproveitando os semáforos para a primeira olhadela, o que, antes da artrose no joelho, fazia durante a viagem no metro. Arranjo um lugar para estacionar (aproveitando a vaga deixada por algum residente que sai de casa nessa altura), compro tabaco na loja da esquina e subo ao 3º andar, ajudado pelo corrimão, e olho outra vez pelas janelas, de onde vejo as árvores do Jardim Botânico. Janelas, gente, prédios, lojas, trânsito – tudo isto prolonga a casa, é-me familiar. Por isso, não posso conceber a casa sem vizinhos, sem bairro, sem cidade.
Este sentimento vem já desde os tempos da Lapa, bairro de ricos, pobres e remediados, também a espreitar para o Tejo, com a mercearia da esquina, a capelista da “Velha” e a estação dos correios num vulgar 1º andar, onde o funcionário teclava os telegramas em Morse. O percurso para o Liceu, pela rua que já tinha sido da “Bela Vista” e, depois, atravessando o Jardim da Estrela, onde os guardas não deixavam os homens andarem em “mangas de camisa”, nem que a rapaziada corresse pela relva. Entretanto, por vezes aos sábados, quando nas escolas já havia “semana inglesa” mas no trabalho ainda não, acompanhava meu Pai ao escritório, em S. Paulo, descendo o Quelhas e apanhando o eléctrico no Conde Barão. Era no tempo em que este meio de transporte servia as mais diversas classes sociais e que as senhoras da Estrela usavam para ir às compras no Chiado. E era também de eléctrico que, em certos domingos, íamos visitar os primos de Benfica ou então até ao fim das linhas, prosseguindo depois a pé, para que eu conhecesse Lisboa.
Alguns anos mais tarde, estudante nas Belas Artes, comecei a frequentar os cafés do Chiado e a calcorrear a Baixa, vendo escritores consagrados às portas da Bertrand, artistas de renome em tertúlia na Brasileira e ainda banqueiros, advogados e médicos famosos a dirigirem-se a pé para os seus escritórios e consultórios.
Nos finais do curso de Arquitectura um grupo – pluridisciplinar, como se diria agora – de estudantes organizou um colóquio sobre a Cidade, algo que começava a preocupar-nos. Aí ouvimos Vitorino Nemésio, Caldeira Cabral, Orlando Ribeiro e outros mestres.
Começou depois a actividade profissional na construção do Bairro de Alvalade, onde arranjei casa com renda limitada, que me ficou para o resto da vida. Alvalade ganhou forma e vida e, anos mais tarde, uma nova centralidade em Lisboa. Mas ainda é bairro, com seus cafés – o Vá-Vá, a Suprema – mas o Tic-Tac de Vítor Palla já substituído por uma agência bancária e o seu cinema agora demolido. Bairro que tem resistido a ser bairro e por isso ainda gosto de viver aqui. E com o metro nos anos 60, que bom chegar num instante ao atelier, relembrando os velhos eléctricos, mas com grandes diferenças, além da rapidez. É que os ricos e notáveis não o usam. Só uma figura pública encontrava, de vez em quando, nas minhas deslocações casa-trabalho: o Salgado Zenha, que mantinha o seu escritório na Baixa. Com a vaga do automóvel, o Centro alargava-se às Avenidas e a cidade estratificava-se.
E depois veio a praga dos subúrbios-dormitórios. Legais para quem podia pagar casa com créditos bonificados e bairros clandestinos para quem as não podia pagar. E mais tarde os centros de lazer/comerciais, com climatização, seguranças à porta e estacionamento abundante, que foram deixando os jardins desertos.
É claro que houve boas excepções, como os Olivais, com zonas verdes usadas e núcleos de comércio animados, recriando os valores do bairro. Mas, na cidade, a especulação instalou-se e muitos prédios foram ficando vazios à espera dos lucros da demolição. E os carros, sempre cada vez mais carros, ocupando os passeios. E o comércio de bairro, e até o da Baixa, a definhar, com as ruas desertas desde o fim da tarde.
Há quem diga que a cidade agora não pode ser como a de outrora. É verdade. Espalhou-se pelas periferias e até para além delas: a cidade difusa. As pessoas só podem andar de carro (os transportes públicos todos os anos perdem quota relativamente ao automóvel). Porque moram num sítio, as escolas e infantários estão noutro, as compras ainda noutro, para além do trabalho. E começaram a aparecer os condomínios fechados, guardados por seguranças, de onde os moradores saem de carro, entopem as ruas, param nos infantários e escolas, descem às caves dos prédios onde trabalham e voltam à tarde, parando nos supermercados e outra vez nos infantários, entupindo mais uma vez as ruas. Tudo isto à custa de não me lembro de quantos por cento do PIB, da decrescente cobertura das importações pelas exportações, do aumento da poluição e da obesidade, do desperdício de tempo e do enervamento nas deslocações, do endividamento das famílias, da maior probabilidade de doenças cardio-vasculares, do colossal desperdício de capital fixo em prédios abandonados e infraestruturas sub-utilizadas, do desaparecimento das relações de proximidade e da sociabilidade do espaço urbano. E à custa ainda de investimentos públicos gigantescos em infraestruturas e equipamentos nas novas expansões, sempre tardios e insuficientes. E assim, cada vez há menos bairro, há menos cidade – e cada casa passa a ser uma ilha num mar inóspito. E com escolas a fecharem por falta de alunos.
Mas há quem não se resigne, reclamando o retorno à cidade, que agora, em verdade, é muito mais extensa e muito diferente da de outrora. Mas os valores da civitas podem ser recuperados, como se vê nas outras cidades da Europa. Começa entre nós a haver consciência disso, como o provam a recente legislação e novas prioridades camarárias, como a de Lisboa, favorecendo a reabilitação e modernização do edificado existente, em vez da construção nova – cada vez mais distante e dispersa, ocupando solos aptos para o cultivo e destruindo as paisagens.
Mas é preciso ir mais além: penalizar fiscalmente ou mesmo confiscar os milhares de andares devolutos (como se faz no estrangeiro), priorizar o investimento público nos transportes colectivos, restringir a praga dos centros comerciais, evitar a formação de guetos e integrar os que existem, proibir os condomínios fechados, proporcionar nos bairros estacionamento aos residentes, para que possam ter os carros à mão para escapadelas à noite ou passeios nos fins de semana. E, além de tudo isto, refrear a especulação imobiliária e fundiária e ir transformando os subúrbios desordenados e fragmentados em cidades com bairros, equipamentos, serviços, novas centralidades, servidas por bons transportes públicos.
Para que a casa volte a estar na cidade.