Texto Habitação

Pátios e vilas de Lisboa (1994)

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Pátios e vilas de Lisboa: 1870-1930: promoção privada do alojamento operário”. Análise Social: Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, nº 127, 1994, pp. 509-524. Também publicado como separata.
Comunicação ao colóquio sobre «Habitação na cidade industrial: 1870-1950», organizado pelo Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, fev. 1993
Republicado em Escritos: 1947-1996: selecção. Porto: FAUP Publicações, 1996, pp. 162-183


PÁTIOS E VILAS DE LISBOA: 1870-1930: PROMOÇÃO PRIVADA DO ALOJAMENTO OPERÁRIO


Introdução

A questão de se encontrarem soluções para as graves situações de alojamento das então chamadas classes laboriosas foi objecto de um debate que se foi pouco a pouco alargando no último quartel do século XIX e nos primeiros anos deste século. O Inquérito Industrial de 1881 chamou a atenção para o assunto, pois revelou a miséria das condições de habitação do operariado nos principais centros industriais do país, com relevo para Lisboa, Porto, Covilhã e Setúbal. O crescente afluxo de populações a estes centros, provocado por um surto industrial que se desenvolveu com o fontismo, não encontrou correspondência nas condições de habitação para este aumento demográfico.

Higienistas como Ricardo Jorge, que denunciava a miserável situação das ilhas do Porto, lançavam o alarme: não era apenas a saúde das famílias que ali se albergavam que oferecia situações de risco, mas o perigo alargava-se a toda a população, que se via ameaçada de contaminação, devido à propagação das bactérias infecciosas.

A tuberculose começava a atingir as várias classes sociais. Daqui que o combate ao flagelo se tornasse uma questão de sobrevivência para o conjunto da sociedade.

Para além de Ricardo Jorge, que foi encarregado de uma missão em Lisboa para estudar a epidemia de 1894, o conselheiro Augusto Fuschini, que várias vezes levantou a questão no Parlamento, os engenheiros Oliveira Simões e Augusto Montenegro, que dirigiu os primeiros inquéritos à habitação em Lisboa, o romancista Fialho de Almeida e Guilherme de Santa-Rita são os principais arautos desse debate. A questão da casa barata e salubre torna-se, assim, em poucas décadas, um tema da actualidade nacional.

Já no início do século, o engenheiro José Maria Melo de Matos, um técnico informado do que se fazia lá fora, propõe soluções para o problema.

E, no entanto, ao longo deste tempo, novos bairros eram acrescentados a Liaboa, por vezes mercê da acção das companhias urbanizadoras: Estefânia, Campo de Ourique, o Bairro Camões e, mais tarde, Almirante Reis e as Avenidas Novas. O problema punha-se nos termos em que ainda hoje se põe: as camadas mais pobres das classes trabalhadoras, com relevo para o operariado, não tinham capacidade económica para habitar esses bairros. Tornava-se necessária, como se via pelos exemplos estrangeiros amiúde citados, a intervenção do Estado ou a iniciativa de cooperativas ou associações sem fins lucrativos. Mas o Estado vivia em endémica situação deficitária e o cooperativismo habitacional também necessitava de apoios, sem os quais a sua acção estaria condenada, começando logo no problema da disponibilidade de terrenos.

As limitadas realizações da Companhia Comercial Construtora no Bairro dos Barbadinhos são bem a prova deste facto.

As camadas mais desfavorecidas da população lisboeta viam-se, assim, na contingência de terem de sofrer condições de alojamento deprimentes, albergadas em palácios arruinados ou conventos desafectados e a maioria das vezes em pátios insalubres. Foi aí que a iniciativa privada começou a interessar-se pela situação, com a construção de vilas operárias, onde as condições não seriam tão miseráveis e que dariam, provavelmente, bons lucros aos investidores. Como excepções, pode apontar-se o caso de empresas, sobretudo do sector têxtil, que construíram, num ou noutro caso, alojamentos para os seus operários, e o de empresários filantrópicos, como Cândido Sotto Mayor. Foi neste quadro que se edificaram as centenas de vilas que ainda hoje existem na capital, constituindo uma parte considerável do seu tecido edificado, ainda que pouco visível da via pública. No âmbito dos programas de reabilitação urbana em curso de realização pela Câmara Municipal, foi criado recentemente o Gabinete dos Pátios e Vilas, destinado a fazer o levantamento destas tipologias e a promover a respectiva reabilitação ou, nos casos em que isso seja impossível, a possibilitar o realojamento das populações.

No Roteiro de Lisboa do Anuário Geral de Portugal, edição de 1979, estão contabilizadas 350 vilas, o que dá ideia da importância destes aglomerados no conjunto da cidade.

Este fenómeno foi abordado pela primeira vez entre nós por Maria João Madeira Rodrigues num ensaio pioneiro publicado em 1979.

1. Os pátios

A partir dos meados do século XIX, um lento processo de industrialização vai provocando a concentração em Lisboa da mão-de-obra operária. A população da cidade aumenta, mas também se modifica a respectiva composição social: ao mesmo tempo que a burguesia se desenvolve e se diversifica em estratos diferenciados, uma classe operária começa a emergir. Para as necessidades de alojamento daquela, o próprio sistema, gerido pelos governos da Regeneração, encontra os mecanismos próprios, que rasgam avenidas e urbanizam novos bairros. Mas da habitação das então chamadas classes laboriosas ninguém cuida: as famílias operárias vêem-se então obrigadas a procurar alojamento em espaços desocupados ou em velhos pardieiros arruinados, onde improvisam elas próprias precárias habitações ou se acomodam de qualquer maneira, sempre mediante o pagamento de uma renda ao proprietário. É assim que surgem os pátios.

Com o incremento da indústria, acompanhado pelo das obras públicas e da própria construção civil, as necessidades crescentes de mão-de-obra intensificam o processo de urbanização e o afluxo de populações à capital. Institucionaliza-se uma nova forma de alojamento e um novo processo de exploração. Senhorios dinâmicos fazem construir, eles próprios, nas traseiras os seus prédios casas abarracadas para alugar a operários; são aproveitadas caves insalubres para o mesmo efeito, sempre com acesso pelas traseiras; conventos das extintas ordens religiosas, adquiridos em hasta pública, ou palácios arruinados são meticulosamente alugados quarto a quarto. E começa a haver quem, com espírito empreendedor, adquira terrenos para aí fazer construir pátios.

Com o desenvolvimento do processo, provocado pelo aumento de uma procura cada vez mais intensa, é esta última modalidade que virá a institucionalizar-se nas últimas décadas de Oitocentos, com a construção das vilas operárias. Os pátios de Lisboa formam-se por toda a extensão da cidade, com maior concentração nos bairros antigos e nos da periferia. Um inquérito oficial efectuado em 1902 identificava 130 em apenas 18 das 29 freguesias da cidade. E é de supor que o número total ultrapassaria as duas centenas, pois das 11 freguesias em falta contavam-se zonas onde ainda hoje existem dezenas de pátios, como São Bento, Santa Isabel e Lapa.

A localização dos pátios está relacionada com a existência das zonas industriais, onde à época existia um forte núcleo na zona da Boavista, e certamente ainda com o porto de Lisboa.

É talvez por isso que se nota um eixo especialmente denso que sobe pelo vale de São Bento e daí se prolonga pelas Amoreiras até Campolide. Leite de Vasconcellos, na sua Etnografia, fala deste fenómeno e aponta o pátio do Biaggi, com as suas centenas de habitações, como o maior existente na capital. Entretanto desaparecido, localizava-se na Rua das Amoreiras, junto ao arco do Aqueduto das Águas Livres. No levantamento que serviu de base a este estudo, e que não foi exaustivo, ainda foram identificados 60 pátios em toda a área da cidade. Desprovidos quase sempre de qualquer tipo de instalações sanitárias e de abastecimento de águas, os pátios não dispunham de condições de salubridade mínimas, ao que acrescia a sua localização térrea, exposta assim às humidades, e a ausência de radiação solar, por se encontrarem ensombrados, muitas vezes em caves atrás de prédios.

A tipologia dos pátios é por demais diversificada, exactamente porque se trata, na maioria dos casos, de aproveitamento de espaços já existentes. E nos casos de construção de raiz, deliberadamente com essa finalidade, essa tipologia não se distingue muitas vezes das vilas que mais tarde surgiram.


2. Da casa bifamiliar à correnteza

No tecido apertado dos bairros pobres da periferia são frequentes as pequenas construções de um só piso com dois fogos e que terão existido mesmo em bairros mais antigos, nas quais o aumento de densidade levou a erguer novos pisos sobre o primitivo. Trata-se, pois, de uma forma de agrupamento tradicional na cidade, como em qualquer pequeno aglomerado. Dotado de um programa mínimo, de construção simples e de custo muito reduzido, este tipo de alojamento adequava-se às possibilidades de famílias de fracos rendimentos.

Susceptível este modelo de ser reproduzido para um maior número de habitações, também aparecem exemplares de três e mesmo quatro fogos. E com o incremento da procura logo se constroem filas ou bandas de casas deste tipo, a que se dá o nome de “correntezas”.

Pela sua versatilidade, esta tipologia conhece um grande desenvolvimento, pois tanto é aplicada no interior de pátios como constitui a forma embrionária de uma das modalidades das vilas no final do século XIX. E chega até aos nossos dias nas primeiras realizações dos bairros económicos do chamado «Estado Novo», como o do Alto da Serafina.


3. Prédios em correnteza e vilas

Com a intensificação da industrialização, as carências habitacionais tornam-se mais prementes, de tal modo que, na sequência do Inquérito Industrial de 1881, que põe a claro a situação, o Governo de Fontes cria uma comissão com a incumbência de a solucionar – o que, evidentemente, não faz.

A persistência do fenómeno faz surgir, entretanto, uma nova modalidade de alojamento: os edifícios ou conjuntos expressamente construídos para habitação de famílias operárias, que começaram a tomar a designação de «vilas», algumas vezes com a de pátio.

É essa a finalidade expressa, presente desde a promoção, embora cobrindo tipologias muito variadas, que distingue em rigor uma designação da outra. O regulamento camarário de 1930 que, aliás, proíbe a construção de novas vilas, define estas como «grupos de edificações destinadas a uma ou mais moradias construídas em recintos que tenham comunicação, quer directa, quer indirecta, com a via pública por meio de serventia». Trata-se, portanto, de espaços à margem dos arruamentos, construídos muitas vezes no interior dos quarteirões. A analogia com as chamadas «ilhas» do Porto é muito clara: só que estas correspondem a padrões pouco variados, que se encontram, aliás, também presentes nas vilas lisboetas.

Dentro desta variedade, um dos tipos mais frequentes escapa, pelo menos em parte, à definição camarária: trata-se dos casos em que a construção acompanha a via pública, como qualquer prédio corrente, mas que – mesmo nos casos, aliás frequentes, em que a designação não é utilizada – recobrem uma realidade que contém o essencial da vila: edificação multifamiliar intensiva, construída pela iniciativa privada e destinada a famílias de baixos rendimentos. Estas últimas situações ocorrem, no entanto, em zonas da cidade, elas próprias segregadas, pelo que a circunstância do acesso directo da rua não contraria o carácter marginal do edifício.

Dois tipos principais se encontram neste caso: os edifícios alongados género correnteza, compostos por unidades de dois ou três pisos, ou os edifícios tipo bloco, com as quatro fachadas livres e acesso central. É possível que este último tipo, pela semelhança formal que apresenta em relação às «vilas» de lazer da burguesia estrangeirada (muitas vezes com coberturas tipo chalet), tenha servido de veículo à designação, que Leite de Vasconcellos diz ser abusiva, por nada ter a ver com a realidade que representa.

Destas vilas em correnteza podem ainda ver-se exemplares no lado oriental do Campo Grande, em vias de serem demolidas, como aconteceu a outra, na Estrada da Luz, já depois de ser efectuado o levantamento – ambas situadas em artérias muito valorizadas com o crescimento da cidade. Das vilas tipo chalet, são interessantes a localizada na Rua Vale Formoso de Baixo e o Casal dos Silvas, na encosta do Alvito.


4. Vilas formando pátio

Uma das características da vila, como da generalidade das construções construídas com fins lucrativos, é o aproveitamento máximo da área disponível. Daí a necessidade da concentração do espaço livre, inútil ou pouco lucrativo do ponto de vista do rendimento, por forma a construir o maior número possível de fogos – também eles reduzidos a áras mínimas – numa dada parcela de terreno. Esta exigência conduz a uma organização espacial em que as habitações se agrupam à volta do terreno, ocupando todo o seu perímetro, com acesso através de um espaço central. Esta é a forma mais imediata e mais generalizada da vila. Por vezes esse espaço é alongado, em forma de corredor, outras vezes é de tipo pátio, permitindo algum desafogo. E na maioria dos casos os logradouros privativos nas traseiras ou não existem, pura e simplesmente, ou são eles também ínfimos.

As vilas, apesar do seu carácter de alojamento especializado para as camadas de baixos rendimentos, até do ponto de vista social, recobrem realidades muito diferentes, pois existem casos – Vila Berta, Vila Santos – em que o nível das habitações e do seu envolvimento ultrapassa claramente o quadro de miséria que acompanha normalmente esta tipologia, correspondendo a camadas da pequena burguesia. É nestes casos que o tratamento formal atinge também níveis de qualidade excepcional, traduzido numa concepção muito elaborada do projecto, num desenho cuidado de todos os elementos da construção e numa riqueza decorativa que chega a atingir a ostentação. Mas estas características mantêm-se, embora em menor grau, em muitas vilas de nível modesto, atestando um cuidado formal que parece ter uma função de compensação. A preocupação da simetria, o guarnecimento por vezes caprichoso dos vãos com materiais baratos, como o tijolo, o desenho cuidado dos letreiros em chapa esmaltada ou simplesmente pintados com a designação da vila, o remate ornamentado das coberturas são constantes num grande número de vilas de Lisboa.

No sentido de reduzir os espaços não directamente rentáveis, as escadas interiores são frequentemente substituídas por galerias exteriores, para acesso aos fogos dos andares, formando por vezes sistemas complexos. Construídas em estruturas de ferro, articulando as respectivas escadas de acesso e por vezes formando ponte, estas galerias adquirem um grande valor como elementos ordenadores do espaço e atestam a introdução de tecnologias modernas na construção de vilas.

Para além das já citadas, também a Vila Luz Pereira, situada na Mouraria, apresenta um cuidado excepcional de desenho. A Vila Romão da Silva, às Amoreiras, dispõe de um espaçoso pátio, enquanto a Vila Gadanho, a Sapadores, construída em 1908, é um caso típico da vila corredor. Um dos exemplos mais característicos é a Vila Bagatella, com frente para a rua, mas recuada, formando um pátio alongado, construída nas Amoreiras em 1890 por Manuel José Monteiro, o «mineiro», emigrante retornado do Brasil, e formando conjunto com o pátio do Monteiro. Das vilas construídas com escadas e galerias de ferro, destaca-se a Vila Rodrigues, de 1902, ostentando com espectacularidade o emprego de modernas tecnologias de construção. Também com frente para a via pública, mas com acesso através de pátio, existem várias vilas na Rua Maria Pia (Vila Ramos, Vila Matos, Vila Neves). A última deste tipo construída em Lisboa (1931), no Campo Pequeno (a já citada Vila Santos), tem resistido teimosamente às ameaças de demolição.


5. Vilas construídas atrás de prédios

As vilas operárias constituem uma forma de alojamento especializado que expressa com clareza uma situação de classe dentro da cidade. Mas essa expressão é ainda mais eloquente nos casos numerosos em que num mesmo lote de terreno são construídas duas tipologias distintas: marginando a rua, um prédio corrente para a burguesia (mais frequentemente para a pequena burguesia); e no interior do talhão, por detrás desse prédio, um pátio, ou vila, destinado a famílias proletárias. Neste caso há uma hierarquia social traduzida directamente ao nível do próprio lote.

O acesso às traseiras, onde se localiza a vila propriamente dita, pode fazer-se de três maneiras: ou à ilharga do prédio através de um corredor lateral descoberto – solução que conduz geralmente a esquemas de ocupação assimétrica, ou obriga a fazer cotovelos para contornar o prédio ou, para evitar este inconveniente, a eixo do lote, também por meio de corredor a céu aberto, que é prolongado em linha recta pelo pátio ou, com a finalidade de aproveitar para a construção toda a extensão da frente, através de uma passagem aberta em arco sob o próprio prédio. Normalmente qualquer destes tipos de entrada é resguardado por um portão de ferro, ostentando uma placa com a indicação do nome da vila, e é inteiramente separado da entrada para o prédio construído na frente.

Esta indicação do nome é um atributo importante deste tipo de edificações. Tem a finalidade de identificar a vila, como modernamente se usa com grandes edifícios representativos. Mas tal finalidade é aproveitada pelo construtor para imprimir uma marca pessoal ao empreendimento. Daí grande parte dos nomes reproduzirem os dos proprietários ou então serem baptizados com nomes por estes escolhidos, nomeadamente de familiares.

Actualmente verifica-se um fenómeno de rejeição, mais patente nas novas gerações, em relação a esta designação específica da vila. Expressando com clareza uma situação de classe, que por vezes pode até ter deixado de se verificar em relação a parte dos respectivos habitantes, o morar-se numa vila é, pois, um ferrete social, de carácter discriminatório em relação ao conjunto da população. É por essa razão que muitas das placas foram destruídas, ou então apagadas, quando se tratava de simples letreiros pintados. E os habitantes fazem por ignorar ou esquecer a antiga designação, preferindo usar, para efeitos de localização, o número da porta que dá acesso ao pátio.

Sendo comum a um grande número de vilas esta situação de traseiras, podem destacar-se nesta tipologia a Vila Luz, na Rua Pascoal de Melo, a Vila Raul, nas Amoreiras, a Vila Fernandez, na Estrada da Luz, a Vila Borba, em Campolide, e a extensa Vila Celarina, na Rua da Escola do Exército. A Vila Sousa, que domina a colina da Graça, com os seus azulejos azuis, constitui um caso à parte, visto tratar-se da ampliação de um antigo palácio,em cujas traseiras existe um amplo pátio envolvido por edifício de cinco pisos. Foi construída em 1889.


6. Vilas formando ruas

A localização das vilas operárias em Lisboa está relacionada com as zonas onde se construíram as fábricas na segunda metade do século XIX e que têm por características serem zonas de periferia, à beira do rio e servidas por caminho de ferro. É assim que as maiores concentrações se deram em Alcântara e na faixa marginal, entre Xabregas e o Poço do Bispo. Tendo como finalidade facilitar a fixação de mão-de-obra para esta indústria nascente, as vilas foram sendo construídas em zonas vizinhas das fábricas, prolongando-se ao longo das vias de acesso às concentrações industriais e afastando-se progressivamente delas à medida que os terrenos iam encarecendo por efeitos da procura.

É assim que a zona industrial de Alcântara favoreceu a construção de vilas no Bairro de Santo Amaro, na encosta do Alvito, no vale de Alcântara e ao longo da escarpa dos Prazeres e do Casal Ventoso, marginando a Rua Maria Pia, então aberta como estrada de circunvalação. Mais tarde, as vilas chegaram a Campolide, onde a abundância de terrenos dava margem à sua construção. Na zona oriental, a edificação de vilas e bairros operários desenvolveu-se ao longo da faixa marginal, paralelamente às próprias fábricas e armazéns, mas encontrou condições de terreno e de mercado propícias junto aos bairros antigos da zona oriental, no planalto da Graça e de Sapadores, onde se localiza o mais importante núcleo hoje existente. Mas também se construiram vilas na periferia norte da cidade e, por vezes, no próprio interior do tecido antigo, em terrenos porventura vagos.

É nas zonas de terreno mais plano e desimpedido que, por vezes, as vilas operárias adquirem formas alongadas, com a implantação de casas ao longo de ruas. Trata-se de casas em que as correntezas assim construídas não se distinguem claramente de tipologias mais correntes, a não ser pelo facto de as ruas pertencerem à própria vila e, por isso, terem a designação de «particulares». Nesta tipologia não se verificam as preocupações formais patentes em muitas das vilas lisboetas: a forma de exploração que representam e as condições mais que precárias de habitabilidade não são aqui suavizadas com cuidados de desenho ou ornatos nas fachadas.

Das vilas formando ruas, as mais significativas são a Vila Dias, junto a Xabregas, construída em 1888, ao longo da linha de caminho de ferro, e a já citada Vila Berta, à Graça. Construída por Diamantino Tojal em 1902, trata-se de um conjunto interclassista, com edifícios para diferentes estratos sociais e de grande apuro formal, em que também é notável o recurso a estruturas metálicas e a rica decoração em azulejos.


7. Vilas directamente ligadas à produção

Na época em que a falta de alojamentos começava a constituir um entrave sério ao desenvolvimento industrial, algumas empresas tomaram a iniciativa de construir blocos de habitações para o seu pessoal. Este fenómeno verificou-se exactamente nas zonas de maior concentração industrial: Alcântara e Xabregas. Tratava-se de empresas do sector têxtil, que necessitavam de mão de obra abundante e barata, e por isso o fornecimento de alojamento constituía um poderoso factor de atracção.

Noutros casos, como parece ser o do Bairro Grandella, a construção de habitações para o pessoal poderia inscrever-se numa atitude de tipo paternalista por parte dos empresários, promovendo imagens como «a grande família» e a «dignificação do trabalho» e não deixando certamente de funcionar como instrumento de controlo e de pressão sobre os assalariados. É notório neste último caso o extremo cuidado do arranjo, a qualidade do desenho e também a diversificação das tipologias, reproduzindo naturalmente a hierarquia do trabalho no local de habitação.

Outra modalidade surgiu mais tarde, associada a empresas de menor dimensão, em sectores específicos da actividade industrial: as habitações integradas no próprio edifício das instalações fabris. O ramo em que esta tipologia se tornou prática corrente foi o do tratamento e distribuição de vinhos, cuja actividade, desenvolvida em «armazéns», se concentrou fortemente na zona do Poço do Bispo – já que esta indústria recebia a matéria-prima quer por caminho de ferro da região do Oeste, quer por via fluvial, por meio de fragatas, que escoavam a produção do Ribatejo. Nesta modalidade, as habitações localizavam-se em andares construídos sobre parte dos armazéns, formando blocos ao longo da rua. Estas casas destinam-se ao escalão superior do pessoal.

Mas também noutros ramos de actividade se conhecem habitações deste tipo, constituindo embora casos raros os que ainda se conservam. Alguns destes, como a Vila Almeida ou o Prédio de Tijolo, são exemplos de extraordinário interesse tanto pela qualidade do desenho e da construção como pela concepção distributiva. A utilização intensiva de galerias antecipou soluções que só muito mais tarde foram avalizadas pela arquitectura encartada e se generalizaram, conservando, apesar disso, a marca proletária que esteve na sua origem. Esta tipologia expressa, a uma escala urbana de construção compacta, a mitologia filantrópica da empresa como quadro exclusivo de vida, numa perspectiva de harmonia social.

A Vila Almeida, atrás citada, situa-se no Jardim José Fontana e compõe-se de três pisos de habitação, com acessos por galerias na fachada de tardoz, sobre um amplo espaço ocupado por uma oficina metalúrgica. O Prédio de Tijolo, construído para habitação de operários da Cerâmica Junça, na Rua Possidónio da Silva, no último quartel do século XIX, mostra uma fachada na qual se demonstra a capacidade decorativa do tijolo. É também servido por galerias de ferro no tardoz.

No que respeita ao sector têxtil, existem vários exemplares interessantes, para além do Bairro Grandella: a grande correnteza da Rua Rodrigues Faria, a Alcântara, construída em 1873 pela Fábrica de Tecidos Lisbonense, que foi pioneira na edificação de casas pelos empresários; a Vila Cabrinha, também em Alcântara, edificada pela Fábrica de Estamparia e Tinturaria de Algodão; a Vila Flamiano, construída em 1887 para o pessoal da Companhia de Fabrico de Algodão de Xabregas, mais tarde comprada pelos Armazéns do Chiado.

No sector vinícola destacam-se, ambas no Poço do Bispo, a Vila Pereira, de 1887, e o grande edifício construído em 1917 por José Domingos Barreiros & Cª., Ldª.


8. Vilas de escala urbana

No tipo mais corrente da vila, esta organiza-se em função de um espaço comum, de carácter privado, fora das vistas da rua, raramente atingindo um elevado volume de construção. Mas com o desenvolvimento desta modalidade de alojamento foi-se diversificando a respectiva tipologia – cada vez mais afastada do primitivo pátio – ao mesmo tempo que o sucesso de anteriores realizações ia estimulando investimentos mais volumosos.

É no quadro desta evolução que surgem as vilas que, pelo volume da edificação ou pela complexidade da sua estrutura, atingem uma escala que as impõe ao nível do espaço da cidade, constituindo neste último caso um sistema viário que, sem perder o carácter segregador, ganha uma dimensão urbana. É assim que surgem verdadeiras unidades de habitação horizontal, como o Bairro Estrela de Ouro, ou conjuntos massivos de blocos em altura, como o Bairro Clemente Vicente. A dimensão destas realizações e o seu cuidadoso planeamento, em articulação com o carácter de autonomia que sempre guardam, conduzem frequentemente à inclusão de elementos de equipamento colectivo nestes conjuntos. Trata-se geralmente de estabelecimentos comerciais de primeira necessidade, mas aparecem também escolas, espaços de convívio e, na Vila Cândida, até uma esquadra da PSP. As entidades construtoras eram, em muitos casos, empresas industriais e, noutros, simples promotores imobiliários que permaneceram como senhorios. Mas a individualização desses promotores, em qualquer dos casos, é um elemento característico deste tipo de alojamento. Essa individualização traduz-se geralmente na própria designação da vila, por vezes representada alegoricamente em placas ou painéis de azulejo. Esta espécie de culto está, provavelmente, ligada à faceta filantrópica que por vezes caracterizava estes empreendimentos: os promotores eram capitalistas que investiam em prol do bem-estar dos seus empregados. É, em alguns casos, este sentido paternalista e tão forte que levava os proprietários a construírem no mesmo terreno, embora com a necessária separação, a sua própria residência. Têm esta característica o Bairro Grandella, o Bairro Estrela de Ouro, a Vila Cândida e o Bairro Clemente Vicente, como exemplares mais interessantes desta tipologia.

O Bairro Grandella, em Benfica, foi edificado junto de uma fábrica têxtil da empresa e denota uma concepção estrutural de arruamentos paralelos com vários tipos de habitação, destinados a diferentes escalões do pessoal. Com frente para a Estrada de Benfica, o bairro é rematado por dois pavilhões, lembrando templos gregos, com colunas e frontões de coroamento, destinados a uso comum. A grade circundante foi retirada há alguns anos. Francisco de Almeida Grandella era um empresário progressista, que construiu outras obras de finalidades sociais.

O Bairro Estrela de Ouro, na Graça, foi construído em 1908 pelo industrial de confeitaria Agapito Serra Fernandes e integra vários arruamentos a que deu o nome de pessoas da sua família. Formado por pequenas unidades habitacionais em forma de U, a estrela de cinco pontas aparece como elemento decorativo sistemático.

A Vila Cândida, à Avenida General Roçadas, constitui como que uma aldeia, com traçado geométrico e um amplo largo de entrada, onde se situavam os edifícios sociais. Construída pelo banqueiro Cândido Sotto Mayor, é o exemplo típico de uma atitude filantrópica e paternalista. Após o 25 de Abril, as casas vieram a ficar na posse dos moradores, pelo que tem vindo a destruir-se a unidade de todo o conjunto.

O Bairro Clemente Vicente, no Dafundo, é constituído por três blocos compactos de cinco pisos, totalizando 240 fogos. Foi construído por um empresário empreendedor dos anos 20 e procurou dar, provavelmente, uma imagem do falanstério. Os acessos fazem-se por uma complicada estrutura metálica de escadas e varandas.


9. Os bairros operários e económicos

Nas últimas décadas de Oitocentos, face ao aumento demográfico verificado em Lisboa e à falta absoluta de condições para alojar a mão de obra que afluía da província para as indústrias nascentes, começaram a ouvir-se vozes que afirmavam competir também ao Estado um contributo para a solução de tão magno problema. Mas seria necessário esperar alguns anos para o primeiro regime de isenções fiscais e alguns decénios para os primeiros bairros de iniciativa oficial. Entretanto, os contributos partiam da iniciativa privada: ou das próprias empresas industriais, ou de construtores-promotores, que tiravam bons rendimentos de pátios e vilas. Simultaneamente, as casas para a burguesia iam-se construindo: aí os lucros eram mais garantidos e começavam a formar-se companhias urbanizadoras, que em 1937 puderam desenvolver a sua acção.

Entretanto, com a formação de um proletariado industrial, o movimento operário dava os primeiros passos e começava a organizar-se para resolver os seus problemas. Verifica-se, assim, um primeiro surto do cooperativismo e do associativismo em Portugal. É neste quadro que se formam algumas sociedades cooperativas de construção e habitação. Entre elas, a Companhia Comercial Construtora, que em 1890 se lança na construção do Bairro Operário dos Barbadinhos. Com a sua arquitectura simples e austera, traduz a penúria de recursos com que foi construído.

Somente na 1ª República foi possível o Estado lançar-se também na construção de bairros. É assim que são iniciados, em 1918, os Bairros Sociais da Ajuda e do Arco do Cego. Planeados com empenho e certa grandiosidade, introduzem uma tipologia nova no tecido da cidade. Pretende-se aqui evitar o carácter lúgubre, típico dos bairros operários, constituídos por monótonos alinhamentos de casas uniformes e sem adornos. Por isso se projectam tipos variados, se enriquecem as fachadas e se prevêem edifícios de fruição colectiva. Só que as obras estiveram vários anos suspensas e, quando concluídas, as casas não foram atribuídas às famílias operárias. O «dar direito de cidade» ao proletariado falhou nessa iniciativa, como noutras subsequentes.


10. Conclusão

As últimas e já raras realizações da iniciativa privada na construção de vilas datam da última década de 20. É assim que, com a construção dos primeiros bairros sociais de iniciativa oficial, se dá uma espécie de passagem de testemunho na tentativa de construção de casas para estratos populares. Tentativa que não vai ter grande sucesso, já que desde o início do século a população de mais fracos recursos se via obrigada a habitar os chamados «bairros de lata», constituídos por barracas improvisadas. Estes bairros vão alastrando ao longo do século, apesar de alguns terem sido demolidos, com o realojamento das populações em casas provisórias, que muitas vezes duravam décadas.

Mais tarde, nos anos 50, começam a construir-se, não já na cidade de Lisboa, mas na sua periferia, os chamados «bairros clandestinos», à margem de qualquer licenciamento camarário, onde, curiosamente, vêm a reproduzir-se algumas tipologias de construção características das vilas operárias, mas entretanto proibidas pelos novos regulamentos camarários em Lisboa.


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