Texto Habitação

Problemas de política habitacional (1966)

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Problemas de política habitacional”. Brotéria. Lisboa: abr. 1966, pp. 478-488.

PROBLEMAS DE POLÍTICA HABITACIONAL

1. Quando há e quando não há uma política de habitação

«Mesmo que um governo não considere a política da habitação como um sector definido e não tome nenhuma decisão especial relativa ao problema no seu todo, estará a praticar, mesmo assim, uma determinada política. Mas essa política será mais o resultado de diversas medidas isoladas do que um programa estruturado. E isto passa-se quando se intervém, por exemplo, na contribuição predial, na remuneração do capital, na taxa de juro, no ordenamento territorial, nos esforços para aumentar ou restringir os investimentos, na política da mão-de-obra, dos salários ou preços, etc.».

Esta simples observação, feita por um grupo de economistas que no ano passado se reuniu em Inglaterra para estudar os aspectos económicos da habitação[1], mostra que uma política da habitação feita do avesso, não orientada em função de uma lógica própria, mas resultante de medidas parcelares relativas a outros sectores, não deixa de ter efeitos que podem ser determinantes em ordem ao agravamento ou à superação da crise habitacional.

Mas não é a isto que se poderá chamar com propriedade uma política de habitação. Nem mesmo quando se verifica a existência de um abundante caudal legislativo ou ainda um vultuoso investimento no sector – porque pode acontecer que os efeitos de uma política de omissão sobrelevem a tudo isso. E, ao contrário, pode admitir-se a existência de uma política, ainda que a produção legislativa seja sucinta e parcos os recursos votados à habitação; ou até se pode inclusivamente dar o caso de a grande maioria das novas habitações se localizar, se construir, se vender, arrendar e ocupar à margem de quaisquer orientações governativas ou de qualquer espécie de planeamento – e mesmo assim, existir uma política – neste caso, a do laissez faire. Mas esta política, para o ser efectivamente, terá de ser intencional, fundamentada e proclamada. Porque, se isto acontecer assim, mas se se disser que a política que se pratica não é esta, mas outra, que visa objectivos sociais, que se enquadra num planeamento global, que postula uma intervenção activa em ordem à solução da crise e critérios de prioridade na utilização dos recursos, etc., etc. – então não se pode dizer que exista uma política de habitação.

Porque, na verdade, uma política pressupõe coerência entre o que se proclama e o que se faz, pressupõe um sistema lógico de relações entre os objectivos propostos e os instrumentos que efectivamente condicionam a actividade do sector. E, se admite a intervenção, implica uma atenta observação da conjuntura e providências oportunas em ordem a corrigir desvios, superar dificuldades ou canalizar recursos. Pressupõe ainda que os instrumentos legislativos, ordenadamente articulados, sejam seguidos na sua aplicação, ajustados à prática, completados ou mesmo substituídos, se é que não foram atingidos os objectivos visados.

E entre nós, qual é a situação, à luz desta problemática? Parece clara: o Plano Intercalar de Fomento inclui entre os seus objectivos, no sector da habitação, a estruturação de uma política habitacional, apta a funcionar no início do próximo plano de Fomento – o que não deixou de suscitar alguma controvérsia, sustentando-se, exactamente, que já temos uma política de habitação. E efectivamente, algo do que se disse atrás, num plano de generalidade, pode aplicar-se ao nosso caso.

Mas tentemos agora abordar o problema de uma forma mais ordenada: quais os tempos em que se desdobra uma política, para ter este nome? Basicamente – e isto para uma qualquer política – haverá pelo menos: a delimitação do objecto; o conhecimento das necessidades; a avaliação e atribuição dos recursos; a fixação dos objectivos; e finalmente a disposição dos instrumentos de execução. Na verdade, uma política precisa pelo menos disto. E precisa ainda de algo mais: o empenho efectivo, a firme determinação de enfrentar, senão de resolver, o problema que é a sua própria razão de ser.

Sem qualquer preocupação de análise sistemática, vejamos alguns aspectos de incontestável interesse relativos aos tópicos atrás indicados, aspectos-chave na definição de uma política de habitação.

2. A delimitação do objecto: novas dimensões

«A história da habitação económica mostra que as primeiras realizações oficiais em matéria de alojamento se dirigiam para determinadas categorias da população, que tinham especiais dificuldades em resolver o seu problema habitacional… Tal concepção, que teve a sua expressão urbanística nos bairros económicos, está hoje francamente ultrapassada pelas necessidades, uma vez que só em Lisboa, por exemplo, quase metade das famílias não dispõe de casa em utilização exclusiva, e carece, portanto, urgentemente, de habitação. Na realidade, o problema, que começou por ser só de certos grupos mais desfavorecidos, atinge hoje praticamente a generalidade da população»[2].

Isto significa que o chamado problema da habitação ganhou uma nova dimensão, o que se compreende facilmente se se pensar que o principal factor que o determina não é o crescimento global da população, mas sim a sua redistribuição no território. E isto, que por vezes no passado foi considerado como uma anomalia do corpo social, acidental e curável – a emigração em massa para as zonas urbanas – não é senão uma consequência inelutável do próprio processo do desenvolvimento: a passagem de grandes massas de população activa do sector primário para a indústria ou para os serviços não se faz normalmente sem deslocações maciças. E esta é uma das razões (juntamente com o aumento dos requisitos de conforto) pelas quais as necessidades de habitação aumentam com o próprio crescimento económico. Daí a característica de saco sem fundo que a crise habitacional apresenta, mesmo nos países que se dispuseram seriamente a debelá-la[3].

É por isso, justamente, que tal crise não se resolve com medidas parcelares ou episódicas, mas com um conjunto de providências inserido no próprio processo do desenvolvimento, numa perspectiva global.

E neste factor radica uma outra nova dimensão: a espacial. Já não é à escala dos pequenos bairros que se pode enfrentar o problema, mas à escala de extensas zonas urbanas. E daí o não ser permitido agora falar de habitação sem falar de urbanismo, tanto mais que, por outro lado, a evolução social se processa no sentido de que «a casa não é uma célula estanque; donde se segue que a noção de alojamento deve abranger não só o núcleo familiar, mas todo o meio envolvente. É o bairro e não a casa, enquanto construção individual, que deve ser a nova unidade…»[4]

Tendo em conta esta nova dimensão, nos diversos aspectos apontados, resulta que o problema da habitação podia antes resolver-se construindo casas, mas agora só o poderá ser construindo cidades. Assim se torna evidente que uma política que pretenda basear-se na construção de casa própria, sobre um lote de terreno situado algures e acessoriamente alguns bairros aqui e ali, é uma política que nem sequer sabe apreender a dimensão do seu próprio objecto.

Em termos de política habitacional, os aspectos focados, que fazem descobrir mais amplas dimensões, não esgotam no entanto a problemática com que uma administração atenta se tem que defrontar, pois há realidades de outra ordem que actuam em sentido restritivo. Um conceito que nos vem da América Latina coloca-nos no centro de uma outra questão: «O problema habitacional é a diferença que existe actualmente entre o valor das habitações existentes e o valor do capital material, social e financeiro disponível para ser investido na habitação».[5]

Isto tem suma importância, porque mostra que as massas populacionais afectadas pela crise do alojamento podem dividir-se em dois grandes grupos: aqueles que teriam recursos para pagar a utilização de uma casa normal, mas que as perturbações que actuam no sector, impedem de satisfazer essa necessidade (especulação com os terrenos, falta de mão-de-obra ou de materiais, carência de capitais, etc.) e aqueles cujos réditos são tão baixos que não teriam essa possibilidade. No1º caso, verifica-se um desequilíbrio entre o poder aquisitivo de uma dada população e uma oferta insuficiente: é o problema habitacional puro; no outro caso, uma situação típica, generalizada a outros sectores das necessidades elementares, de incapacidade de consumo, e que só poderá ser resolvida no âmbito de um processo de desenvolvimento global da população interessada. Em geral, pode dizer-se que os grupos de população já radicados na vida urbana e com rendimentos ao nível da indústria ou dos serviços estão no 1º caso, pertencendo ao outro as populações das regiões agrárias retardadas.

Esta distinção, se não importa a um reconhecimento das necessidades de alojamento em termos absolutos, é da maior importância quando se passa à atribuição dos recursos e sobretudo à escolha dos meios de actuação. Porque, ao confundir-se um problema de habitação com uma situação de subdesenvolvimento, procurando solucionar uma carência parcelar resultante dum quadro de insuficiência global causal, estão a viciar-se os termos do problema do alojamento, alargando-o muito para além dos limites que lhe competem.

3. O conhecimento das necessidades: a realidade que se impõe

O que se disse atrás já pressupõe um certo conhecimento da situação nas suas linhas gerais de evolução. Mas quanto ao conhecimento concreto da realidade? É o momento de passarmos a considerar o nosso quadro de observação nacional, através de uma rápida retrospecção.

No passado recente, duas obras pioneiras de interesse fundamental apareceram: o Inquérito Habitacional na cidade de Lisboa, organizado pelo Dr. Jorge Niny e publicado pela D. G. da Saúde Pública em colaboração com o I.N.E. em 1941; e o Inquérito à Habitação Rural, cujo 1º volume, elaborado pelos Prof. Lima Basto e Henrique de Barros foi publicado em 1943. Foi através destes documentos que se teve pela 1ª vez uma notícia objectiva da situação do habitat no País. Mas, a despeito do quadro trágico que documentavam, a sua influência foi nula: o ideal da casa portuguesa continuou o seu curso, pois, para quem não quisesse ver a realidade relatada, as soluções pareciam ao alcance de uma função assistencial, através de algumas verbas votadas pela administração para a demolição dos bairros de lata de Lisboa e das ilhas do Porto. E estávamos na infância do problema habitacional, muito longe da crise generalizada que a industrialização, então incipiente, iria desencadear.

Foi preciso chegar o ano de 1952 para que uma nova revelação se fizesse sentir um pouco mais: os resultados do 1º Inquérito às Condições de Habitação, realizado pelo I.N.E. quando do Censo de 1950, foram apurados à pressa para apresentação a um congresso internacional que então se reunia entre nós. E ficou a saber-se, nessa altura, por exemplo, que 30% das famílias de Lisboa viviam em barracas ou em partes de casa[6] e que, no conjunto do País, 64% das casas não dispunham de um mínimo de instalações sanitárias.

Este panorama, acentuado em 1960 nos seus aspectos mais críticos, retrata uma situação a uma escala muito maior e em evolução crescente, cuja melhoria já não é possível sem a adopção de medidas de base de um âmbito muito vasto, como agora já se reconhece, até em documentos oficiais.

É neste contexto que aparecem, finalmente, os primeiros estudos sobre a situação do alojamento à escala do País, com a publicação de nada menos do que 5 estimativas das necessidades no espaço de 4 anos, referentes ao deficit carencial existente em 1960, por ocasião do último censo, e que mostram resultados que variam entre 250 000 e 500 000 fogos[7].

A diversidade dos números apresentados denota que os critérios de avaliação e os próprios métodos utilizados não foram idênticos, sem esquecer ainda que os dados disponíveis se prestam em muitos casos a interpretações diversas ou obrigam a formular hipóteses arbitrárias.

O que interessa – isso sim – é que a ordem de grandeza das necessidades não deixe lugar a dúvidas sobre o alcance das medidas que se torna necessário adoptar para que a superação da crise possa ser apontada como uma meta a atingir, ainda que a longo prazo. E ao conhecimento objectivo de alguns aspectos da realidade nacional, como os que foram apontados, não é certamente estranha a circunstância de a Habitação ter sido finalmente incluída no nosso planeamento económico.

Mas se o conhecimento das necessidades carenciais é indispensável para o vigor de uma dada política, o que é verdadeiramente importante em ordem ao estabelecimento de programas de execução e a previsão das necessidades de reposição é a sua tradução espacial, em correlação com planos de ordenamento territorial. Quanto às necessidades carenciais, há que distinguir as de ordem quantitativa, que serão na generalidade resolvidas pela construção de novos fogos, e que afectam sobretudo as zonas de concentração urbana, das de ordem qualitativa, mais características das regiões rurais, e que poderão parcialmente ser satisfeitas através de programas de beneficiação.

4. Os recursos: avaliação, rateio e novas fontes

A avaliação dos recursos que se podem consagrar à habitação entra já na esfera das opções e é inseparável de uma determinada visão dos objectivos a atingir. Por outro lado, supõe ainda uma tomada de posição em face dos mecanismos estruturais existentes.

Em 1º lugar, e feito o balanço dos recursos globais disponíveis, há que considerar, e que decidir, uma ordem de prioridades na aplicação desses recursos, em termos de investimento, mão-de-obra, equipamento, etc., no quadro do desenvolvimento do País. E aqui as opções a fazer são de natureza eminentemente política.

Pondo de lado aspectos especializados de ordem económica e financeira, aliás de importância decisiva nesta matéria, parece útil considerar aqui os recursos potenciais, de feição associativa, que se poderiam obter pela introdução de conceitos ainda desconhecidos na legislação e sobretudo na prática.

É um lugar comum dizer-se que nos países que lutam com falta de meios o aproveitamento integral de todos os recursos se torna imperioso; mas é já também um lugar comum que é justamente nos países de evolução retardada que isso se torna mais difícil, visto que esse aproveitamento depende em certa medida da evolução das mentalidades, do nível geral de educação e da capacidade organizativa da sociedade.

Mas se isto é incontroverso, a experiência tem mostrado que a utilização de certos recursos latentes, sobretudo se não for atrofiada por atitudes autoritárias ou paternalistas, poderá fornecer um contributo adicional ao progresso social da comunidade. É assim, através do exercício de faculdades até então inaproveitadas, que as próprias inibições de base vão sendo superadas, ao mesmo tempo que os problemas concretos são atacados. Por esta razão, os métodos associativos são instantemente recomendados e pode dizer-se que, quase por toda a parte, as cooperativas de habitação desempenham um papel relevante na construção de habitações.

Mas, falando de cooperativas, pergunta-se: que tipo de cooperativas? Aquelas que associam temporariamente uma centena de pretendentes ao acesso à propriedade e que vão buscar à cooperativa um magro suplemento ao capital pessoal de que já dispõem e um apoio técnico e burocrático, como sucede com a generalidade das cooperativas de habitação no nosso País? Não serão estas que poderão ter qualquer peso na resolução da crise do alojamento, como prova o facto de construírem apenas cerca de 300 casas por ano. As cooperativas que poderiam ter um peso decisivo teriam de ser de tipo inteiramente diferente, alicerçadas numa ampla base popular, aproveitando dos seus sócios o sentido de cooperação de que as camadas burguesas não podem normalmente dispor e as pequenas poupanças individuais. Mas cooperativas deste tipo não podem lutar em condições de igualdade com as forças especulativas do mercado livre: precisam do apoio das autoridades no que respeita a aquisição de terrenos e a obtenção de créditos. Mas é precisamente o seu forte cunho popular e a indispensabilidade de uma autogestão que figuram na base dos seus sucessos conhecidos e explicam ao mesmo tempo o seu abandono hic et nunc.

Estas considerações feitas a propósito das cooperativas valem para todos os movimentos afins que se possam inscrever numa linha de promoção social comunitária – a sua vitalidade, e portanto a possibilidade que têm de dar um contributo à superação das carências da população interessada e ao progresso da comunidade mais ampla em que se inserem, são impraticáveis em contextos impregnados de autoritarismo e paternalismo. É por isso que, no quadro actual, experiências nesse sentido têm sido extremamente limitadas, não se vendo forma de superar as contradições apontadas.

Limitado a uma via autoritária de iniciativa e financiamento públicos e a uma via especulativa em que a construção de casas não é um produto industrial mas um objecto de comércio, um país de reduzidos recursos vê-se privado do concurso de uma fonte que poderia fornecer o necessário, quando adequadamente canalizada, para a superação de um processo contínuo de acumulação de deficits.

É verdade que pode argumentar-se com a protecção e o estímulo ao esforço próprio, para cada um construir a sua casa. Mas esta miragem, a ser prosseguida e arvorada em símbolo de toda uma política, produzirá situações graves de diversa ordem, se a sua expressão quantitativa atingir níveis substanciais.

Falando de recursos, e já num plano inteiramente diverso, uma nota é indispensável focar, relacionada aliás com algo que foi dito atrás: nos países em vias de desenvolvimento, se por um lado o aumento do poder de compra da generalidade da população poderia colocá-la em melhores condições para ter acesso a uma casa, por outro verifica-se que o respectivo custo cresce em geral mais rapidamente do que o nível médio dos rendimentos. E isto deve-se não só à variação dos componentes do custo, como ao aumento das exigências quantitativas e qualitativas na habitação, como ainda à maior incidência que os encargos com as infraestruturas e o equipamento vão tendo nesse custo. Desta incapacidade crescente, que contraria, no plano habitacional, os próprios efeitos do crescimento económico, resulta a necessidade de uma política de subsídio, envolvendo uma problemática complexa e que tenderá a traduzir-se em termos de uma redistribuição dos rendimentos.

5. Os objectivos: prioridades a definir

O binómio necessidades-recursos, analisado no quadro do planeamento global à luz de uma linha de opções, define os objectivos a atingir por uma dada política habitacional. Tais objectivos serão colocados a médio e a longo prazo, pois os mecanismos que actuam no domínio do urbanismo e da construção de casas são lentos a movimentar-se.

Alguns pontos interessa realçar aqui.

Em primeiro plano, aparece a questão das prioridades. Se no quadro de uma política nacional de desenvolvimento, se põe uma questão de prioridades – e pode acontecer que, em certas circunstâncias e obedecendo a determinadas perspectivas, a habitação não seja colocada numa 1ª linha – este problema repõe-se dentro do próprio sector na formulação dos objectivos e na atribuição dos recursos.

E aqui, muitas soluções são possíveis: atender em primeiro lugar às mais agudas situações (bairros insalubres, superlotação crítica, etc.) ou obter a maior reprodutividade imediata dos investimentos, atribuindo prioridade aos empreendimentos ligados à implantação de novas indústrias ou a projectos de reorganização agrária; promover a atenuação das carências habitacionais propriamente ditas, com objectivos no interior do próprio sector, ou fazer participar os investimentos em operações de promoção social ou de desenvolvimento económico.

Mas duas coisas parecem sobretudo importantes: harmonizar os critérios de prioridade com os objectivos do planeamento global e subordinar a estes critérios todos os investimentos a realizar no sector, pois todos provêm da parte dos recursos nacionais que é consagrada à habitação.

Outro ponto a referir relaciona-se com funções que cabem validamente a uma política de habitação como instrumento, por exemplo, de uma política de redistribuição dos rendimentos (através de mecanismos fiscais e de subsídios e do controlo das relações encargos-rendas) ou de uma política de desenvolvimento regional.

6. Os meios de execução: pedra de toque de uma política

Numa matéria de si dificilmente controlável, actuando sob a acção de mecanismos raramente bem conhecidos e movendo-se numa trama de interrelações extremamente complexas, o problema dos meios de execução assume a maior importância.

Quer se trate da estrutura técnica, jurídica ou político-social, quer dos quadros humanos indispensáveis a todos os níveis em número e qualificação fortemente crescentes, quer da organização da produção, as carências revelam-se maiores e as barreiras mais difíceis de vencer à medida que se tenta avançar na execução de uma dada política.

Nas circunstâncias actuais, dois problemas assumem particular gravidade – o dos terrenos e o da indústria da construção.

No que respeita à política do solo, trata-se em primeiro lugar – e independentemente da complexidade do problema – de inverter a própria orientação básica: uma política de defesa estreita do direito de propriedade de alguns será substituída por uma política de defesa real do direito à habitação de quase todos, no caso de se pretender debelar a crise habitacional. Neste campo, todas as medidas de compromisso têm um alcance muito limitado: «Com efeito, a experiência tem mostrado que as providências legislativas relativas à utilização do solo no processo de expansão urbana têm-se revelado as mais das vezes insuficientes, obrigando a acertos sucessivos que por vezes atingem o valor de verdadeiras mutações: a adaptabilidade a novas condições dos processos especulativos é bem conhecida, e daí resulta muitas vezes a breve prazo a insuficiência de medidas que tinham sido consideradas decisivas»[8].

No que respeita à indústria da construção, é conhecida nas linhas gerais a sua situação actual. A existência de uma mão-de-obra barata, de que beneficiámos durante anos, representa uma vantagem que tende a desaparecer; a sua contrapartida terá de ser encontrada à custa de uma profunda reorganização da indústria, a qual não se fará sem o apoio de uma política da habitação que atenda às necessidades do processo produtivo. Só a continuidade da procura no mercado da construção poderá tornar viável tal reorganização, que se processará através da introdução de novas técnicas, da reestruturação dos mecanismos administrativos das empresas e da formação intensiva de pessoal qualificado.

É no campo dos meios de execução, dos instrumentos de uma dada política que tal política se revela efectivamente o que é. Pode conhecer-se a extensão dos males, pode fazer-se ainda um diagnóstico correcto, podem apontar-se objectivos vigorosos, podem mesmo ordenar-se em certo sentido determinados recursos – mas tudo isto pode ficar no plano das boas intenções traduzidas em declarações programáticas. Não será preciso esperar pelos frutos da próxima colheita para se ver novamente se a árvore é boa ou má; o Evangelho nos ensina a interpretar certos indícios seguros: a folhagem das figueiras rebenta quando vem próximo o estio. Assim, para os instrumentos de uma política – neste caso uma política de habitação: só quando surgirem poderemos crer que essa política se fará[9].

  1. Conferência promovida pela Associação Internacional de Ciências Económicas em Ditchley Park, Oxfordshire, Abril de 1965. In Revue Internationale des Sciences Sociales, nº 4/ 1965.
  2. Relatório do Grupo de Trabalho nº 7 para o Plano Intercalar de Fomento, Lisboa, 1964.
  3. Parece que a crise habitacional começa a ser resolvida quando o simples crescimento económico se transforma em progresso social. Verifica-se, por exemplo, que nos países de economia de mercado, a viragem coincide com a adopção de medidas socializantes e de métodos de planeamento, enquanto nos países de economia centralizada a solução do problema habitacional caminha a par com um certo processo de liberalização.
  4. LEWIS MUMFORD – Une Conception Nouvelle du Logement Ouvrier in Revue Internationale du Travail, nº 2/Vol. 75 (Fev. 1957).
  5. John C. Turner – Recursos habitacionais na América do Sul in Architectural Design, nº 8/1963.
  6. Segundo novo inquérito realizado em 1960, este número subiu para 41% dos agregados domésticos vivendo nessas condições.
  7. São os seguintes os trabalhos referidos:
    – Eng.º GASTÃO RICOU – II Colóquio Nacional do Trabalho, da Organização Corporativa e da Previdência Social (4ª Secção) – Comunicações / 1962
    – RAUL DA SILVA PEREIRA – Problemática da Habitação em Portugal, separata da revista Análise Social / 1963
    – Plano Intercalar de Fomento, relatório do Grupo de Trabalho nº 7, citado no Parecer Subsidiário da Câmara Corporativa, in Actas da Câmara Corporativa, nº 82 / 1964
    – NELSON MONTES e A. VAZ PINTO – Aspectos do Desenvolvimento da Indústria da Construção em Portugal – O Colóquio da Produtividade na Indústria da Construção, 1964
    – HENRIQUE VEIGA DE MACEDO – Comunicação à Assembleia Nacional in Diário das Sessões, nº 169 / 1964 ↑
  8. Plano Intercalar de Fomento – Relatório do Grupo de Trabalho nº 7 /Habitação, p. 181
  9. Cf. Plano Intercalar de Fomento para 1965-1967, Volume I – Lisboa, 1964, pp. 467 a 483
    Actas da Câmara Corporativa, nº 82, 17 de Novembro de 1964 – Parecer sobre o Projecto de Plano Intercalar de Fomento – pp. 893 a 900.