PEREIRA, Nuno Teotónio. “Reflexões sobre a ocupação da Capela do Rato”. Original dactilografado, dez. 1982, 4 p.
Revista Reflexão Cristã, nº 56, 2023 (no prelo)
1. A ocupação da Capela do Rato como manifestação de cristãos contra a Guerra Colonial vem na sequência de uma longa marcha dos católicos portugueses face à ditadura salazarista (ou de alguns católicos, como sustentaram, não sem uma certa razão, os deputados Tenreiro e Casal Ribeiro durante o debate que a Assembleia fascista foi obrigada a fazer acerca da Capela do Rato).
As raízes dessa longa marcha remontam aos primeiros anos quarenta, quando um pequeno número de jovens cristãos amigos de António Sérgio publicava os Cadernos Metanoia, nos quais eram divulgados os ideais franciscanos e o estilo de vida das comunidades cristãs primitivas. Isto enquanto o padre Joaquim Alves Correia era obrigado a partir para o exílio, donde não mais voltaria, com o conivente silêncio dos seus superiores eclesiásticos.
Foi preciso que chegassem as primeiras “eleições” a que a oposição foi autorizada a concorrer – mercê da derrota fascista na II Grande Guerra – para que viesse a público uma tomada de posição inédita e insólita: a do Dr. José Vieira da Luz que, em entrevista ao Diário de Lisboa, se declarava simultaneamente católico e democrata. Estava-se em 1945, isto é, 19 anos após a instauração de uma ditadura implacável.
Pois foram precisos ainda mais 13 anos para que surgissem – como reflexo da viragem provocada pela campanha de Humberto Delgado – os primeiros abaixo-assinados de católicos pondo em causa o regime. Foi aliás este mesmo contexto que provocou a carta do Bispo do Porto a Salazar, numa atitude que o levou ao exílio e que nenhuma solidariedade encontrou da parte dos seus colegas na hierarquia (a ponto de por eles ter sido marginalizado durante a celebração do Concílio Vaticano II).
Este facto e aquele espaço de tempo mostram como Igreja e Ditadura eram unha-com-carne: foram assim necessários nada menos de 32 anos de supressão das liberdades, de censura total, de partido único, de deportações e torturas, para que um punhado de fiéis, meia dúzia de padres e um bispo, iniciassem – e timidamente – a contestação da ditadura.
É assim que a partir de Humberto Delgado (1958), este movimento vai ganhando lentamente adesões, ao mesmo tempo que a participação de católicos em acções contra o salazarismo se radicaliza e diversifica, ultrapassando-se finalmente a fórmula do abaixo-assinado: revoltas da Sé e de Beja, cooperativas Pragma e Confronto, publicação clandestina do “Direito à Informação” (1963/69) e do jornal “Igreja Presente” (1964), furando a censura do governo e a auto-censura da Igreja. Entre outros, padres como Abel Varzim, Adriano Botelho e Costa Pio, perseguidos pela PIDE, marginalizados e até exilados pela hierarquia, não podem ser esquecidos nesta fase.
Mas foi ainda preciso o eclodir da guerra colonial, com a prisão de padres patriotas angolanos e as acções de genocídio contra as populações, foi ainda preciso João XXIII e a sua “Pacem in Terris”, foi preciso o fortalecimento das lutas de estudantes, operários e intelectuais para que o combate contra o colonial-fascismo ganhasse novas camadas de cristãos. Tornava-se assim mais difícil manter completamente obediente e calado o rebanho, perante as cada vez mais gritantes contradições entre a doutrina apregoada e a prática política concreta dos hierarcas da Igreja, de aliança clara ou mal disfarçada com o regime.
É neste contexto que surgem as tomadas de posição de um agora já numeroso grupo de cristãos nas eleições de 1965, de missionários em Moçambique a partir deste mesmo ano e do prior de Belém, padre Felicidade, em 1968/69, a ocupação da igreja de S. Domingos na noite de 31 de Dezembro de 1968 para o 1º de Janeiro de 1969, a acção desassombrada do padre Mário de Oliveira (1970/74), a divulgação sistemática de publicações clandestinas anti-colonialistas (1971/73).
2. A resistência de alguns sectores minoritários da Igreja ao regime, e sobretudo ao prosseguimento da guerra colonial, já vinha assim de há uns anos. Mas a ocupação da Capela do Rato significou uma viragem nessa luta, provocando uma alteração qualitativa. Em primeiro lugar, pela adopção de uma forma de luta aberta, na linha da resistência passiva. Em segundo lugar com a inclusão de acções de agitação preparadas clandestinamente, mediante a colaboração das Brigadas Revolucionárias. Em terceiro lugar, com a abertura do debate na capela expressamente a cristãos e não cristãos, dada a dimensão nacional dos problemas em causa. Finalmente, face ao impacto público conseguido, obrigando o governo a noticiar os acontecimentos na imprensa censurada e a aceitar um debate sobre os mesmos na chamada Assembleia Nacional, imposto por deputados da ala liberal.
Essa alteração foi possível porque o contexto político se tinha modificado substancialmente: morte do velho ditador, evidência cada vez maior da impossibilidade de uma vitória militar nas colónias, crescente condenação internacional, agudização das contradições internas, tanto no seio da ditadura, como no seio da própria Igreja.
3. Perante esta cronologia é oportuno fazer algumas reflexões. E há uma pergunta que logo salta: porquê tudo tão tarde? Porque se fez a ocupação da Capela do Rato quando já iam decorridos 12 anos de guerra colonial? A pergunta tem razão de ser, pois é fácil imaginar que, se acção semelhante tivesse ocorrido alguns anos mais cedo, outro poderia ter sido o curso dos acontecimentos. Face a esta pergunta, algumas pistas de resposta podem ser avançadas.
Em primeiro lugar – quem éramos nós? Donde vínhamos?
Como mero exemplo – que não se pretende generalizar, mas que considero significativo – o meu próprio caso:
– aos 15 anos: dos primeiros inscritos voluntários na Mocidade Portuguesa, logo graduado em alta patente; participante entusiasta num comboio automóvel de abastecimento para a zona franquista no início da guerra civil em Espanha, confraternizando com militares alemães e italianos em Sevilha;
– aos 30 anos: devoto católico, anti-comunista convicto, mas sem querer meter-me em política; preocupado (mas não ocupado) com os problemas sociais; como profissional, ausente das Exposições Gerais de Artes Plásticas, onde muitos colegas militavam na oposição à ditadura. Eu militava antes na conversão da Igreja à Arte Moderna…
Em segundo lugar: a tomada de consciência foi lenta, mas foi possível mercê de influências exteriores de dois tipos.
Por um lado, os acontecimentos políticos: na luta contra o salazarismo, a campanha de Humberto Delgado, embora a ditadura já contasse 32 anos. Na luta anti-colonial, a eclosão das lutas armadas desencadeadas pelos movimentos de libertação: só alguns anos depois é que sectores cristãos, a exemplo do que acontecia com a oposição democrática, começaram a denunciar com clareza o colonialismo; no entanto, ele era bem antigo…
Por outro lado, os contactos com o estrangeiro, onde não se entendia, mesmo em meios católicos, como aqui aceitávamos tão docilmente o salazarismo, e sobretudo a guerra colonial. Jovens padres, que regressavam de estudos lá fora, ou dirigentes da Acção Católica, que participavam em reuniões internacionais, ou ainda a leitura da imprensa católica estrangeira mais aberta aos valores evangélicos, muito contribuíram para essa lenta evolução. À minha conta, muito fiquei a dever à leitura do semanário “Témoignage Chrétien” que assinei durante uns dez anos, que cobriram todo o período da descolonização francesa e sobretudo da guerra da Argélia, que sectores católicos franceses denunciaram com coragem.
Em terceiro lugar: a constante vigilância montada pelo aparelho eclesiástico, desencorajando, reprimindo, depurando, censurando – numa acção que prolongava e desdobrava a PIDE e os outros órgãos de repressão do regime. Desde o exílio puro e simples para o estrangeiro de padres considerados incómodos, até à sua nomeação para lugares isolados da província e à suspensão de ordens, passando pela oferta de bolsas de estudo fora do país (“pois eram inteligências que se estavam aqui a perder”) – tudo isto e muito mais foi feito.
4. A ocupação da Capela do Rato foi uma acção de massas na linha da não-violência, assumindo a forma mais típica das lutas dos cristãos contra a opressão, e que no nosso tempo tem conhecido um grande desenvolvimento em muitos países. E aqui pergunta-se: porque não houve mais, e mais cedo, com idêntica projecção? As razões também serão várias; apontam-se algumas.
Primeiro, era necessário que se ultrapassasse a dimensão do pequeno grupo ultra-minoritário e disperso, à base de intelectuais e sem qualquer inserção institucional. Face a esta limitação, havia o receio da repressão que uma acção aberta provocaria, privilegiando-se então a luta clandestina no domínio da informação e da consciencialização – tarefa aliás indispensável para que a corrente engrossasse. Era no entanto infundado aquele receio, pois ignorava a situação de privilégio a que os católicos, enquanto tais, gozavam face à repressão, sobretudo os de diploma universitário ou ligados a famílias conhecidas da burguesia – como era o caso da maioria dos que se opunham ao regime.
Entretanto, à medida que o número aumentava, outra dificuldade aparecia: a generalidade dos que se iam radicalizando, ia do mesmo passo desdenhando das formas de luta não-violenta, propugnando (o que só poucos aliás praticaram) a luta armada, numa visão incorrecta porque exclusiva.
Finalmente, o processo de radicalização política fazia com que muitos se afastassem da Igreja (ou pelo menos de uma prática intensiva) – ou por decisão própria, ou porque a tal eram compelidos pelo aparelho eclesiástico – afrouxando assim os laços com a massa praticante.
Chegou-se assim a um paradoxo: os mais convictamente não-violentos tinham medo da repressão e por isso não arriscavam participar em acções abertas; os que estavam dispostos a arriscar (e muitos arriscaram mesmo) ou desdenhavam da não-violência ou já estavam demasiado desligados do meio católico para aí desenvolverem uma acção eficaz.
Na ocupação da Capela do Rato foi possível pela primeira vez superar estas contradições. E o seu êxito ficou a provar que os católicos só muito tardiamente foram capazes de utilizar uma forma de luta que o regime temia (e com razão) e a que foi poupado durante anos e anos.
5. A intensificação da luta anti-colonial por parte de alguns sectores católicos, de que é exemplo a ocupação da Capela do Rato, e que conheceu desenvolvimentos posteriores, foi o resultado de uma opção estratégica de que os acontecimentos se encarregaram de comprovar a justeza: a de que a derrota da guerra movida contra os movimentos de libertação pelo poder colonial-fascista acarretaria inevitavelmente a sua queda. Parecendo hoje óbvia esta opção, ela não o era na altura, havendo sectores que sustentavam que se tornava necessário primeiro derrubar o regime para depois acabar com a guerra colonial. Sem de modo algum diminuir o valor da luta directa contra o fascismo travada por diferentes sectores da oposição ao regime, parece correcto, à luz da História a que pertence já o caso da Capela do Rato, assinalar esta facto.