PEREIRA, Nuno Teotónio. “Vigília da Capela do Rato”. ROSAS, Fernando; BRITO, José Maria Brandão de (dir.). Dicionário da História do Estado Novo, vol. II. Venda Nova: Bertrand Editores, 1996, pp. 1008-1010
Os acontecimentos que se desenrolaram na Capela do Rato nos últimos dias de 1971 [1972], enquadram-se num movimento crescente de contestação à guerra colonial que alastrava na sociedade portuguesa, sobretudo nos sectores mais politizados ou mais directamente afectados pela sua continuação, como era o caso da juventude. A vigília do Rato teve, aliás, como precursora a ocupação da Igreja de S. Domingos, em Lisboa, em 1 de Janeiro de 1969, também feita por um grupo de católicos, conhecidos então por “progressistas”. A data de 1 de Janeiro de cada ano fora escolhida pelo papa Paulo VI como dia dedicado à Paz, na sequência da célebre encíclica de João XXIII Pacem in Terris. Naquela igreja, após a missa da meia-noite da passagem do ano, celebrada pelo cardeal Cerejeira, um grupo de fiéis comunicou-lhe, através de um texto que lhe foi lido, a sua decisão de permanecer no interior da igreja até ao dia seguinte, em clima de reflexão sobre a paz, na situação de guerra como era a de Portugal. Para esta vigília a poetisa Sophia de Mello Breyner tinha composto o poema que depois se celebrizou “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. Ouviram-se muitos testemunhos de vários dos presentes, entre eles jovens que tinham combatido nas colónias, e sustentou-se um vivo debate com o pároco da igreja, que também permaneceu, com a intenção de impedir a vigília. Na manhã seguinte, os fiéis saíram da igreja já sob a vigilância da PIDE, que todavia, para não dar alarde ao caso, não efectuou prisões. Passados três anos sobre este acontecimento, na vigília da Capela do Rato, iniciada em finais de Dezembro de 1971 [1972], repercute-se o crescente mal-estar provocado pela continuação de uma guerra injusta e sem saída, que se verificava agora em meios muito mais alargados. A sua preparação foi mais organizada e previa-se um jejum de três dias, a observar pelos ocupantes, segundo uma declaração lida por Maria da Conceição Moita na tarde do dia 29. Ao mesmo tempo, decidia-se abrir as portas da capela a todos aqueles, crentes e não crentes, que desejassem debater o tema da guerra. A coordenação de toda a acção foi assegurada por Luís Moita, que pediu a colaboração das Brigadas Revolucionárias, organização clandestina chefiada por Carlos Antunes e Isabel do Carmo, com a missão de divulgar o acontecimento na região de Lisboa, o que foi feito através de panfletos. A escolha da Capela do Rato, situada na Calçada Bento da Rocha Cabral, para esta acção ficou a dever-se ao facto de se tratar de um local de culto dirigido pelo padre Alberto Neto, frequentado pelos meios mais inquietos da comunidade católica, e que se tornara conhecido pelas inovações litúrgicas e pelas preocupações de ordem social promovidas e proclamadas por aquele sacerdote. Para o dia 1 de Janeiro de 1972 [1973] a palavra de ordem de Paulo VI era imperativa: “A paz é possível, a paz é obrigatória”. No decurso da sua mensagem, o Papa proclamava que era através do diálogo, e não da guerra, que se deviam procurar as soluções para os conflitos. Tal como em ocasiões anteriores, e perante a atitude da hierarquia católica portuguesa que silenciava as directivas de Roma nesta matéria, o grupo de católicos que promoveu a vigília assumia por inteiro aquela palavra de ordem e propôs-se tirar dela consequências práticas. Nos dias 30 e 31 de Dezembro as portas da capela estiveram abertas de par em par, sem prejuízo no entanto para os ofícios religiosos habituais os fins-de-semana. Centenas de pessoas improvisaram assembleias de discussão, testemunhando o seu ódio à guerra, dissertando sobre os inconvenientes morais e materiais que ela produzia e proclamando a necessidade urgente de lhe pôr cobro, sublinhando o seu carácter injusto. Afixados nas portas, diversos cartazes transcreviam números relativos aos mortos em combate, às populações das colónias dizimadas e aos estropiados de ambos os lados. Mas a repressão não tardou. Ao fim do dia 31, perto da hora do jantar, fez-e uma pausa nas discussões, enquanto cerca de cinquenta pessoas permaneciam na capela. Foi nesta altura que se começaram a ouvir ruídos de carros da polícia de choque, acompanhados do latido de cães-polícia, e fez-se o cerco ao local. Os polícias penetraram no templo e, arrastando à força algumas pessoas que resistiam, levaram todos os assistentes para a vizinha esquadra do Rato, onde foi feita uma primeira triagem. A maior parte foi levada para os calabouços do Governo Civil, onde se deu a passagem do ano. Na manhã do dia seguinte, dezasseis de entre eles foram entregues à PIDE, que os levou para o Forte de Caxias. Foram aí submetidos a interrogatório, mas não torturados e ao fim de um máximo de quinze dias libertados sob caução. Estes processos não tiveram seguimento, talvez com o intuito de não empolar o caso. Entretanto, e devido à importância pública que os acontecimentos tinham provocado, a Censura não os pôde calar, reproduzindo os jornais uma nota oficiosa cheia de diatribes contra os manifestantes, acusando-os de subversão, traição à Pátria, etc. Alguns dias depois o caso foi mesmo levantado na AN [Assembleia Nacional], onde se assistiu a um acalorado combate verbal entre o deputado ultra Casal-Ribeiro e o da ala liberal Miller Guerra. Este deputado teve a coragem de dizer que não se tratava apenas de um pequeno grupo de agitadores, mas que os ocupantes da capela traduziam um mal-estar crescente e alargado acerca da guerra, e que eram tão fiéis da Igreja como outros. No entanto, a repressão não ficou por aqui: cerca de quinze pessoas que foram identificadas pela polícia e que eram funcionários públicos, entre os quais o professor de Economia Pereira de Moura, foram alvo de processos disciplinares conducentes ao seu despedimento. O cardeal-patriarca publicou um comunicado criticando a ocupação e demitiu de capelão o padre Alberto Neto, não obstante este não se encontrar presente durante os acontecimentos, por motivo de doença. Por uma trágica coincidência, nestes dias da ocupação da Capela do Rato. O Exército português em Moçambique massacrava as populações civis das aldeias de Wiriyamu e Chawola, uma operação militar que havia de custar caro à sua credibilidade internacional. Estes massacres foram conhecidos apenas alguns meses mais tarde, através de denúncias feitas por missionários. O caso da Capela do Rato, como ficou conhecido, não deixou de ser referência para acções posteriores de combate à guerra em África e teve projecção internacional, manifestando o descontentamento de parte da população portuguesa contra o seu prosseguimento. Tratou-se de uma acção que se inscreveu na actividade dos chamados “católicos progressistas” contra a guerra colonial, que se vinha desenvolvendo desde 1963 com a publicação do jornal clandestino «Direito à Informação» e continuada no final da década com os «Cadernos GEDOC», animados pelo padre Felicidade Alves, demitido de pároco de Belém. Por esta altura, o mesmo grupo, que se alargara a vários pontos do país, nomeadamente à cidade do Porto, onde também se desenvolviam acções de consciencialização face ao problema da guerra, criou em Lisboa um centro clandestino de informação e divulgação que deu origem, a seguir ao 25 de Abril, ao CIDAC, organização não governamental de cooperação com as antigas colónias. É de salientar neste contexto a acção do padre Mário de Oliveira, pároco de Macieira da Lixa, capelão militar que recusara a guerra, e que foi por duas vezes preso e julgado em Tribunal Plenário. Toda esta acção tinha em vista abrir uma brecha nas posições da hierarquia católica, que não ousava confrontar-se com o Governo, ignorando sistematicamente as directivas do Vaticano acerca dos problemas da paz e da guerra.
BIBLIOGRAFIA: «Diário das Sessões», AN, Janeiro 1972 [1973]