Património

No seguimento da Conversa sobre património e reabilitação

Os três principais intervenientes, o arquiteto Victor Mestre, a investigadora Deolinda Folgado e o engenheiro Vítor Cóias corresponderam ao convite feito para partilhar pequenos apontamentos no seguimento da Conversa sobre património e reabilitação. Eis as suas contribuições, que muito agradecemos.

A GRAVAÇÃO DESTA  2ª CONVERSA PODE SER VISTA AQUI.

NUNO TEOTÓNIO PEREIRA: DEFENSOR E CONSTRUTOR DE PATRIMÓNIO

O arquitecto Nuno Teotónio Pereira incorporou o tema do património arquitectónico no seu desempenho disciplinar, enquanto cidadão e arquitecto, considerando que este é parte específica da cultura identitária das comunidades que o acolhem. Esta constatação deriva da obra em si, mas também dos seus textos e das suas palavras ditas em diversas palestras que reflectiam um pensamento estruturado onde cultura e ciência se entrecruzam. No início dos anos oitenta a convite de Jorge Custódio, integra o núcleo fundador da Associação de arqueologia Industrial da Região de Lisboa(1), com o propósito de estancar as sucessivas demolições que ocorriam em toda a cidade e, sobretudo dinamizar a discussão pública em redor deste tema. As décadas de setenta e oitenta, caracterizaram-se pelo abandono programado e por atentados a edifícios com valor patrimonial, alguns classificados ou integrados em zonas de protecção. Abandono, vandalismo, destelhamento e incêndios a meio da noite e consequente derrocada, ocorria com frequência. Nuno Teotónio Pereira procurou contrariar esta realidade, chamando a atenção quer dos media quer através da intervenção política, de que dou por exemplo as cartas que juntos entregamos ao então ministro Gonçalo Ribeiro Teles sobre as planeadas torres de Belém e em outro momento ao presidente Mário Soares, sobre a intenção do governo de Macau demolir a escola Pedro Nolasco da autoria do Arqt.º Raul Chorão Ramalho.

Em 1989, partilhei com o Arqt.º Nuno Teotónio Pereira uma intervenção no I Encontro Nacional Sobre o Património Industrial(2), onde apresentamos a reabilitação de uma fábrica em Santos, na rua do Cais do Tojo. A ideia, era tão-somente demonstrar que era possível manter a identidade patrimonial, mesmo com novos usos. Neste período a batalha centrava-se também na arquitectura para os arquitectos e o Nuno Teotónio procurava demonstrar a relevância desta necessidade colocando na equação as questões de cultura e património, valores intrínsecos na formação do arquitecto. A sua atenção recaia também sobre o património contemporâneo, do século XX, incluindo as décadas pós segunda guerra mundial de que referenciou, o caso dos “Cafés, pastelarias & snacks” (Pereira, 1996, p. 53-56)(3) reportando a pastelaria Mexicana, entre muitos outros exemplos em risco de se descaracterizarem e ou desaparecerem na senda da voragem dos anos setenta.

A dimensão humanista de Nuno Teotónio Pereira, está presente na sua herança social e cultural enquanto pensador e criador de património arquitectónico, legado às gerações vindouras. Na actualidade usufruímos desse legado que sendo uma continuidade histórica, continua a ser um referencial incontornável em termos civilizacionais, provando que em todas as épocas se constrói património, ou seja, aquele que merece a estima pública.

(1) O autor deste texto integrou o grupo fundador por proposta do N.T.P.
(2) AAVV (1989) I Encontro Nacional sobre o Património Industrial. Coimbra, Guimarães, Lisboa/1986: Actas e Comunicações, vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, Limitada. ISBN: 972-32-0394-4. Depósito Legal: 26642/89.
(3) Pereira, Teotónio (1996) Tempos, Lugares, Pessoas. Matosinhos: Contemporânea | Jornal Público. ISBN: 972-8305-38-9. Depósito Legal: 102861/96.

Victor Mestre, arquitecto
Abril 2023

NUNO TEOTÓNIO PEREIRA. CONVERSAS ESSENCIAIS.
PATRIMÓNIO E REABILITAÇÃO: CONTINUAM NA ORDEM DO DIA

Naquele fim de tarde, de dia 20 de Abril de 2023, ecoaram numa das salas do Centro Nacional de Cultura, as palavras do Nuno Teotónio Pereira, dando mote ao arranque da nossa conversa. Datadas de 1988, a propósito do que se poderia prospectivar para a recuperação do Chiado após o fatídico incêndio, ocorrido em Agosto desse ano, ideias provocatórias e assertivas foram lidas.
De facto, a reabilitação do património cultural é um tema actual e apesar das múltiplas cartas e recomendações emitidas pelo Conselho da Europa ou por outras entidades (UNESCO, ICOMOS, etc.), uma grande reflexão se exige quando se intervém em património construído ou urbano, nunca podendo ser descurado o trabalho interdisciplinar e o conhecimento prévio, necessariamente inerente às opções a tomar na realização do projecto de intervenção. A adaptação a um novo uso constituirá, certamente, um outro nível de preocupação, de modo a preservar os valores inerentes ao património que se irá reabilitar e refuncionalizar, muita das vezes.

Porém, intervir na cidade consolidada lança também grandes desafios. Construir novos projectos com uma linguagem que rompa com a envolvente, pode também acrescentar novos valores a preservar para o futuro. Exemplo disso, são as obras da autoria do próprio Nuno Teotónio Pereira em colaboração com os arquitectos Bartolomeu da Costa Cabral, no caso do “Bloco das Águas Livres”, um projecto habitacional datado de 1953; e Nuno Portas, em relação à Igreja do Sagrado Coração de Jesus, inaugurada em 1970. Ambos os edifícios encontram-se classificados, o primeiro como Monumento de Interesse Público (Portaria n.º 370/2012, DR, 2.ª série, n.º 156, de 13 de Agosto) e o segundo enquanto Monumento Nacional (Decreto n.º 18/2010, DR, 1.ª série, n.º 250, de 28 de Dezembro).

Deolinda Folgado, investigadora
Abril 2023

O EXEMPLO DO CHIADO

Para abertura do debate, Ana Isabel Ribeiro, a moderadora, selecionou um texto sobre o que deveria ser a reconstrução do Chiado destruído pelo incêndio de agosto de 1988. Nesse texto, escrito apenas alguns dias ou, quando muito, semanas, após o fatídico evento, Nuno Teotónio Pereira (NTP) defende que na reconstrução daquela célula do tecido pombalino da Baixa se ponham em evidência os valores estéticos e tecnológicos da nova arquitetura, embora, segundo ele, “num sábio diálogo” com o antigo.

Onze anos mais tarde, a partir de meados de 1999 NTP começou a escrever, para a revista “Pedra & Cal”, quarenta e uma crónicas sob o título genérico “Perspectivas”, onde a temática deste “diálogo” é diversas vezes abordada, em contexto de reabilitação urbana. Ao longo destas crónicas, NTP defende a preservação do caráter e identidade não só dos centros e bairros históricos, mas também das zonas mais recentes das cidades, admitindo o recurso a tecnologias e expressões contemporâneas “desde que integradas com acerto”. (“Pedra & Cal” n.º 23, 2004).

Até que ponto a presença dos valores estéticos e tecnológicos da nova arquitetura se revelou necessária para a revitalização do Chiado?

O que se entende por “sábio diálogo” ou por “integração com acerto” entre a nova arquitetura e a antiga?
Decorridos 35 anos sobre o incêndio, constata-se que a revitalização do Chiado foi, há muito, claramente conseguida. Numa entrevista de 2013 Siza Vieira, o autor do projeto, considera: “Não fazia sentido, num grande projeto unitário… meter uma nova arquitetura”. Mais adiante, acrescenta “A procura foi que os elementos novos não pusessem em questão o espírito da arquitetura pombalina”.

Vítor Cóias, engenheiro
Abril 2023