Atividade cívica Igreja católica

Abel Varzim

Perfazem-se agora trinta anos da morte do padre Abel Varzim, falecido em 20 de Agosto de 1964 na sua aldeia natal de Cristelo, concelho de Barcelos. A sua vida é um claro testemunho de como um autêntico apóstolo cristão era combatido até à destruição física e psicológica no regime de Salazar com a conivente complacência e até colaboração da hierarquia religiosa.

Logo após a ordenação, em 1925, põe-se ao serviço da diocese de Beja, muito carenciada de padres, que abundavam no norte do País.

Neste gesto revela-se um primeiro aspecto da sua personalidade: estar, e estar activo, onde fizesse mais falta. Ali se manteve como responsável pelo seminário de Serpa, até 1930. Neste ano, estimulado pelo seu desejo de aprender e tomar contacto com os problemas sociais, matricula-se na universidade de Lovaina, onde conheceu o fundador da Juventude Operária Católica, Cardijn, tendo como colega o padre Manuel Rocha, que havia de seguir um caminho paralelo ao seu, e que acabou por ser exilado para os Estados Unidos, onde ainda hoje vive. Doutorou-se em Ciências Políticas e Sociais em 1934 com uma tese sobre uma obra que o apaixonou: o Boerenbond (em flamengo, Federação dos Agricultores) que velava pela defesa dos agricultores através da sua organização e elevação do seu nível moral, intelectual, técnico e económico. É curiosamente actual para nós o que diz um biógrafo de Abel Varzim, Domingos Rodrigues, acerca deste caso: “Com as fronteiras abertas, deu-se a invasão dos produtos do exterior, enquanto o liberalismo económico tinha tirado a direcção dos mercados aos produtores e aos consumidores. Os agricultores belgas começaram a sentir a asfixia económica, visto que os preços de venda eram inferiores aos seus preços de custo. Os agricultores estremeceram, mas encontraram a sua força na associação. O Boerenbond salvou-os.” Que triste contraste com a nossa CAP [Confederação dos Agricultores de Portugal] perante situações semelhantes.

De regresso a Portugal, Varzim vem viver para Lisboa, integrando-se no Patriarcado, onde pontificava o cardeal Cerejeira. Ainda em Lovaina, ele e Manuel Rocha são encarregados de elaborar as bases da Acção Católica Portuguesa, que vieram a ser publicadas em 1933, em curiosa e eloquente sincronia com a constituição salazarista. Passa pela revista “Renascença” escreve assiduamente no órgão oficial da Igreja “Novidades” artigos doutrinários sobre problemas sociais.

Em 1938 é convidado por Salazar para integrar as listas únicas da União Nacional para a Assembleia Nacional, pois o regime tinha por costume incluir em todas as legislaturas um ou dois padres na sua lista de deputados. Mas logo em Janeiro de 39 Abel Varzim apresenta um aviso-prévio questionando o funcionamento dos chamados sindicatos nacionais, onde denuncia arbitrariedades cometidas no mundo laboral: “Estou convencido de que a situação em que se encontram os sindicatos nacionais e de que a facilidade com que muitos patrões abusam dos operários se deve algumas vezes ao próprio Estado.” Tanto bastou para ser alcunhado de comunista e considerado um opositor ao regime. Efectivamente, acreditava no sistema corporativo, mas feto de baixo para cima, e não ao contrário. Também se manifestou contra o decreto que obrigava os oficiais das Forças Armadas a fazerem casamento com meninas dotadas de bens materiais.

Mas a maior obra de Abel Varzim foi a que desenvolveu à frente do Jornal “O Trabalhador”. Fundado no primeiro de Maio de 1934, publicou-se até 1946 como quinzenário, como órgão da Acção Católica Portuguesa. Os editoriais ardentes de Abel Varzim defendendo a libertação da classe operária, enfureciam o regime. “O Trabalhador” causa confusão a muita gente – lê-se num deles – “porque a classe operária está calada, está resignada e contenta-se com o que tem. Que nós a andamos a espicaçar, a desinquietá-la, que a andamos a revolucionar, sem necessidade nenhuma, porque ela lá se vai aguentando como está, e continuaria calada se nós não falássemos dos seus direitos”. Entretanto a Censura, como era natural, cortava páginas inteiras do jornal, fazendo agravar-se a situação económica, que levou à auto-suspensão do quinzenário.

Mas Abel Varzim não desiste: funda a “Sociedade Editorial O Trabalhador”, com acções a 100$00, e retoma a publicação em 1948 com um semanário com o mesmo nome. Ousava escrever, num editorial: “ Se o operário não e resgatar a si mesmo, ninguém o resgatará.” A partir daqui, o destino do jornal estava traçado. Primeiro, foi uma nota oficiosa de intimação do sub-secretário das Corporações. Como não tivesse resultado, a Censura obrigava a compor doze páginas de texto para que se aproveitassem oito, ao mesmo tempo que chegava ao jornal uma proposta de compra, sem identificação do comprador, que foi naturalmente rejeitada. Já anteriormente tinha havido uma proposta de subsídio, também ela rejeitada. Foi assim que em 9 de Julho de 1948 o jornal foi suspenso sine die pela Censura.

A hierarquia católica, como se tornou habitual perante casos destes, não reagiu. Nem um protesto, apesar de os responsáveis do jornal terem pedido apoio ao Núncio do Vaticano e ao cardeal Cerejeira. Este, ouviu-os com simpatia, mas decepcionou-os, quando lhes disse que mais tarde haviam de ter ocasião de fazer alguma coisa.

Entretanto Abel Varzim dispunha, segundo o seu biógrafo, de mais três postos onde exercia a sua actividade social: Director do Secretariado Económico-social da Acção Católica, professor do Instituto do Serviço Social e assistente da Liga Operária Católica. Aqui não podia o Governo intervir directamente. Mas fê-lo indirectamente, pressionando a hierarquia, que docilmente se submeteu, demitindo-o destes cargos num curto intervalo de tempo.

No seu diário, escrevia Varzim em 1948: “Os nossos chefes hierárquicos vêm cometendo desde há muito um gravíssimo erro – são covardes – ou pelo menos parecem-no – e são comodistas e burgueses.” O oportunismo também marcou a sua maneira de actuar, como testemunha uma conversa relatada no mesmo diário com Cerejeira, que lhe tinha dito que o aguardava como uma reserva da Igreja. “Porque, acrescentou, esta situação política não pode durar muito; nós não temos ninguém, a não ser o padre Varzim, com prestígio suficiente para desfraldar, depois da queda disto, uma bandeira… Isto não é maquiavelismo, mas prudência.”

Após dois anos de inactividade, Abel Varzim foi nomeado pároco da freguesia da Encarnação, em Lisboa. Abrangia o Bairro Alto, e logo o pároco se interessa pela sorte das prostitutas. Em 1953, fundou um lar para a sua reintegração social, e um posto médico. Mas as elites da paróquia não descansaram, enquanto também não foi afastado deste cargo.

Em 1957, cansado, doente e abatido pela maledicência e pela calúnia, regressou à sua aldeia de Cristêlo.

Foi aqui que Francisco Lino Neto o foi encontrar em 1959 para pedir que subscrevesse dois documentos que denunciavam por um lado a subserviência da Igreja face ao Estado e por outro os crimes da Pide. Assinou-os ambos, integrando um grupo de 47 católicos, entre os quais vários padres, que assim se demarcavam do regime. E na lista das assinaturas, organizada por ordem alfabética, o seu nome aparece simbolicamente em primeiro lugar. Aos signatários foi aberto um processo pela Pide, mas logo veio uma amnistia, pois o caso era demasiado embaraçoso para a ditadura.

Fui visitá-lo com minha mulher, Maria Natália, a Cristêlo, pouco antes da sua morte. Mesmo ali, não descansava: tinha organizado a cooperativa SAMI (Sociedade Avícola do Minho), para que os interesses dos avicultores fossem defendidos. E dizia sonhar que mais tarde, sem alteração da sigla, esta associação se pudesse transformar em Sociedade Agrícola do Minho. Era uma espécie de voltar ao princípio: a aplicação da experiência do Boerenbond belga, tema da sua tese de doutoramento, e cuja publicação entre nós poderia ser bem útil na actual conjuntura.

É este homem, ostracizado pela Igreja, sacrificado pelos seus superiores às razões do Estado de um poder ditatorial, e condecorado a título póstumo com a Ordem da Liberdade em 1980, que os seus discípulos, acompanhados, agora sim, por um cortejo também póstumo de bispos e arcebispos, homenageiam neste trigésimo aniversário de uma morte solitária. Mas é tudo isto tão póstumo, que faz doer.

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Um homem que não pode ser esquecido: Abel Varzim”. Público, 20 ago. 1994, p. 22.
Existe original impresso, 3 p.
Republicado em Tempos, Lugares, Pessoas. S.l.: Contemporânea e Jornal Público, 1996, pp. 114-117
Republicado em Transformar, Ano IX, nº 31, out.-dez 2006, pp. 13-14 [Com o título “Quem foi Abel Varzim?: um homem que não pode ser esquecido”]

 

ABEL VARZIM – UM LUTADOR ATÉ AO FIM
Apaixonado desde cedo pelas questões sociais, o padre Abel Varzim doutorou-se em Sociologia na Universidade de Lovaina e conheceu nessa altura monsenhor Cardijn, fundador do Movimento Operário Católico. De regresso a Portugal, não mais baixou os braços no combate pela justiça social, tendo sido dos mais destacados membros da Igreja a erguer-se contra a ditadura salazarista.

Acreditando no início na doutrina corporativa instaurada pelo chamado Estado Novo, a ponto de ter sido nomeado para deputado à Assembleia Nacional, aproveitou esta tribuna para erguer a voz na defesa de um sindicalismo autêntico, e por isso livre, ao mesmo tempo que desenvolvia uma actividade incansável de divulgação doutrinária e consciencialização social no jornal “O Trabalhador”, órgão da Liga Operária Católica. É que o corporativismo de Salazar era imposto aos trabalhadores pelo poder do Estado e aquele que Abel Varzim poderia aceitar seria sempre construído a partir da classe operária.

Por tudo isso passou a ser considerado pelo regime como um perigoso comunista, levando o governo a proibir o jornal. Mas a repressão foi mais longe: era preciso que Abel Varzim fosse também demitido de todos os cargos e responsabilidades que exercia na Igreja. Para isso foi suficiente pressionar a hierarquia católica que, como era habitual, prontamente obedeceu, sem uma palavra de protesto.

Nomeado anos mais tarde para pároco da Encarnação, em Lisboa, Abel Varzim desenvolveu aí uma dedicada acção em favor da reabilitação e defesa das prostitutas, trabalho que depois se estendeu à cidade do Porto, criando a Obra das Raparigas, num claro desafio às autoridades da época, empenhadas em esconder os problemas sociais.

Regressado a Cristelo, ostracizado, abandonado e já doente, procurou organizar os agricultores na defesa dos seus interesses, em prol de condições de vida mais justas, tal como antes fizera no mundo operário. Em 1959 foi o primeiro signatário de dois documentos de protesto contra a opressão que era imposta aos portugueses: um deles, denunciando a subserviência da Igreja face ao Estado ditatorial – o outro, protestando contra os crimes da polícia política.

Abel Varzim foi assim um lutador até ao fim, mesmo desprovido dos meios de expressão a que tinha direito, mas que lhe foram escandalosamente subtraídos.

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Abel Varzim: um lutador até ao fim”. Transformar, Ano V, nº 13, abril 2002, p. 6
Existe original impresso, 1 p.

ABEL VARZIM DA CUNHA E SILVA (1902-1964). Padre católico.
Coleção CDAV – Coleção documental Abel Varzim