Arquitetura

Alvar Aalto

ALVAR AALTO E A ARQUITECTURA EM PORTUGAL

Dos três arquitectos que mais terão influenciado a arquitectura do nosso século – Le Corbusier, F. L. Wrigth e Alvar Aalto – este foi o mais discreto e subtil, e não só por ter sido o último na ordem cronológica e por isso poder ter integrado sabiamente contributos dos colegas que o precederam.

Coubu foi o empolgante arauto do Movimento Moderno, impulsionador dos CIAM e inspirador da Carta de Atenas. Wrigth, o fundador da Arquitectura Orgânica, que se afirmou mais pelas obras do que pela doutrinação, mas em que aquelas eram portadoras de uma mensagem plena de eloquência. Aalto foi o sereno e proficiente profissional que construiu a sua obra projecto-a-projecto, imune ao vedetismo e que não deu o nome a nenhuma escola, a nenhuma tendência, a nenhum ismo. E que por isso não deixou discípulos nem seguidores facilmente reconhecíveis. Mas que, apesar disso, acompanhou o seu trabalho de uma permanente reflexão crítica, caracterizada mais pela intuição persuasiva do que pelo discurso dogmático.

À medida que as suas obras iam sendo divulgadas, Aalto tendia a ser colocado numa prateleira particularizada, como expoente de uma cultura específica – neste caso a Europa quase ártica das florestas – talvez como Kenzo Tange o foi para a cultura oriental e Oscar Niemeyer para a América Latina.

Depois do sanatório de Paimio e da biblioteca de Viipuri, apressadamente considerados como manifestações do racionalismo do centro europeu, foi isso que aconteceu com a Vila Mairea e os pavilhões da Finlândia nas exposições de 37 em Paris e 39 em Nova York. Tratava-se de um talentoso e promissor arquitecto nórdico que dava expressão às possibilidades inexploradas da construção em madeira – o material por excelência do seu país natal – visão que os seus bancos e cadeiras ajudavam a confirmar. Foi ainda nesta perspectiva que o centro de Säynätsalo, uma obra-prima de pequena escala, foi apreciado, com o emprego sistemático do tijolo e, mais uma vez a madeira.

Mas, de súbito, a residência de estudantes de Cambridge, Mass – obra aliás pouco anterior àquela última – surpreende o mundo da Arquitectura. Já não era a pequena escala, já não era o uso novo de materiais tradicionais, já não se tratava da expressão de uma cultura regional. Esta obra de Alvar Aalto impunha-se como um contributo inesperado para a criação arquitectónica a nível mundial. E então começou-se a seguir de perto os seus projectos, a olhar com outro cuidado para as obras iniciais e a seguir com atenção as suas reflexões acerca do ofício de arquitecto. Foi assim, de mansinho, que Aalto entrou pouco a pouco na galeria dos grandes mestres do século.

Avaliar, com a ajuda da memória e um gratificante trabalho de pesquisa nas nossas revistas de arquitectura, as repercussões em Portugal da obra e do pensamento de Aalto é o que se tenta fazer a seguir.

Os textos

É interessante verificar que, nas revistas portuguesas de arquitectura, a publicação de textos de Alvar Aalto antecede a das suas obras. Estas iam sendo conhecidas entre nós através das revistas estrangeiras, de que Carlos Antero Ferreira dá conta numa “Bibliografia sumária” publicada no nº 19 da revista “Binário” de Abril de 1960, por ocasião da apresentação em Lisboa de uma exposição itinerante da Arquitectura Finlandesa. Aí se referem alguns números das revistas mais divulgadas em Portugal no pós-guerra: “L’Architecture d’Aujourd’hui”, “Casabella”, “L’Architettura”, “Werk”. “Zodiac”.

O primeiro desses textos é a tradução parcial de um artigo de Aalto numa revista inglesa de 1940 com o título “A humanização da Arquitectura”, publicada no nº 35 de “Arquitectura” de Agosto de 1950. Recorda-se que esta revista fora em 1947 adquirida pelo grupo ICAT (Iniciativas Culturais Arte e Técnica), dinamizado por Keil do Amaral, sendo seu director Alberto José Pessoa e assumindo-se desde então como instrumento de defesa e divulgação do Movimento Moderno entre nós.

Ao longo ao artigo, Aalto desenvolve a tese de que o funcionalismo e o racionalismo que haviam guiado a arquitectura moderna na sua fase inicial – e que à data da redacção do texto eram alvo de duras críticas por parte de meios conservadores e reaccionários (veja-se o que aconteceu entre nós e nos países de regimes totalitários) – não deviam ser negados, mas antes levados mais longe; para além do campo estritamente material, técnico-económico, deviam agora também abranger as necessidades humanas na sua totalidade: “o funcionalismo técnico é correcto, apenas se for desenvolvido de modo a abranger também o campo psicofisiológico. É este o único caminho para humanizar a arquitectura.”.

O segundo texto de Aalto publicado entre nós foi-o também na revista “Arquitectura” alguns anos mais tarde (nº 46, de Fevereiro de 1953). Trata-se do célebre “O ovo de peixe e o salmão”, escrito em resposta a um inquérito feito pela “Domus” e cujo eco ficou certamente na memória dos arquitectos que o leram – pois foi esse o meu caso.

Neste belo texto, Aalto procura descrever a maneira algo misteriosa como lhe surge a ideia mestra de um projecto, num momento chave do processo criativo em que as complexas e numerosas exigências sociais, humanas, técnicas e económicas foram temporariamente arredadas da mente, “pois formam um labirinto que não se presta aos métodos da resolução racional, [dado que] a complexidade que daí resulta impede a ideia mestra de tomar forma”. “Ponho-me a desenhar deixando-me guiar inteiramente pelo instinto – e, de repente, nasce a ideia principal, um ponto de partida que reúne os diferentes elementos mencionados atrás, muitas vezes contraditórios – e os põe em harmonia”.

É nesta prática da “arte abstracta” que Aalto vê a articulação entre a arquitectura e as outras formas artísticas, numa altura em que se proclamava a necessidade da “integração” das três artes – arquitectura, escultura e pintura: “as formas artísticas abstractas têm dado fortes impulsos à arquitectura moderna… e a arquitectura por seu turno tem dado impulsos à arte abstracta – é de mãos dadas que elas se têm ajudado reciprocamente”.

Passados cinco anos, em Junho de 58, novo texto de Aalto é publicado entre nós, desta vez no nº 3 da nova revista “Binário”. Trata-se da alocução proferida pelo arquitecto por ocasião da exposição de Arquitectura finlandesa apresentada em Londres em 1957.

No discurso, que é de uma flagrante actualidade, Aalto aborda o problema da falta de qualidade da maior parte da produção arquitectónica, e isto num país onde seria suposto ser essa produção da autoria de profissionais. Fala até que não será mais do que “2 ou 3% a quantidade da construção e da urbanização com um mínimo de qualidade.” E para caricaturar a situação refere que com frequência jovens arquitectos que não o reconhecem lhe perguntam: “Você é antigo ou moderno?”, interrogação que ouvira há pouco também em português, no Estoril. E acrescenta: “É que existe hoje uma quantidade suficiente de arquitectura má e superficial, que é moderna.”

Para tentar encontrar uma saída para este problema, Aalto serve-se do exemplo da literatura. O que fez a glória de escritores como Voltaire, Rousseau, Shaw, Strindberg ou Anatole France “foram a crítica, a elevada categoria da sua arte e a sua capacidade de luta.” E continua: “O hábito de escrever artigos de crítica sobre um artista isolado… é apenas uma crítica de casos individuais e assim perde-se a verdadeira linha, que é projectar e construir para o homem comum.”

Ao reler estes primeiros textos de Alvar Aalto publicados em Portugal nos anos 50 resulta evidente que o seu divulgador foi Manuel Tainha, colaborador assíduo da revista “Arquitectura” na época do ICAT e director da primeira fase do “Binário”. É que, para além desta circunstância, no número 46 daquela revista, em que é publicado um dos textos de Aalto, aparece um artigo de Tainha intitulado “Estilo e Espaço, Arquitectura”, no qual o autor defende pontos de vista acerca da criação arquitectónica muito próximos daqueles que estão no centro das preocupações do mestre finlandês: “Passar do estado de experiência ao da consciência vai todo um processo de cultura, cuja elaboração conduzirá a uma revisão dos dados sociais da arquitectura, ou melhor, à confirmação do seu carácter social. Assim, o drama volumétrico, luminoso, sonoro, dos cheios e dos vazios, deixa de valer alguma coisa em si, para adquirir um significado superior. A um plasticismo puro que historicamente afirma a hegemonia da técnica, com base num funcionalismo sumário e didáctico, sucede um organicismo realista que atinge o plano da complexidade humana.” E mais adiante: “A consciência espacial afirma, não apenas o primado da razão na sua voluntária compacidade funcional, mas também o do sentimento como sua forma elaborada, na plena maturação de um processo em que as contradições internas e externas se resolvem numa síntese superior.”

Destes juízos Manuel Tainha deduz consequências operativas: “Deste modo se poderá desenvolver o nosso trabalho no sentido de favorecer a apropriação integral por parte do homem dos novos temas da arquitectura e do urbanismo modernos”, acrescentando: “Neste plano torna-se possível a interacção fecunda entre o homem e a obra numa constante devolução recíproca. Este diálogo intenso e orgânico, que imprime valor social à obra de arte, leva-nos para bem longe dos enredos puramente especulativos em que a arquitectura corre o risco de cair, não só na argumentação dos seus detractores, como na dos seus defensores.”

Entretanto, a revista “Arquitectura” sofre uma viragem em 1958, mercê de uma nova comissão directiva na qual Carlos Duarte e Nuno Portas assumem uma posição preponderante. E é da autoria deste último, jovem recentemente chegado à profissão, um importante texto programático publicado no nº 66 (Novembro/Dezembro de 1959) sob o título “A responsabilidade de uam novíssima geração no movimento moderno em Portugal.”

É neste artigo, que exprime a nova orientação da revista no sentido de uma crítica aberta ao já gasto vocabulário da arquitectura moderna, que Nuno Portas invoca Alvar Aalto: “a possibilidade da opção de um caminho por todos pressentida [implica] a abdicação provisória de preconceitos formais, a máxima objectivação do processo de criação e dos factores que o condicionam, num esforço de síntese e não de somatório. A obra de um Aalto constituiria o mais alto exemplo dessa síntese original que caracteriza o pós-guerra – mas o mestre finlandês recusa sempre uma tradução em método ou pedagogia.”

E mais adiante: “Mas, e sobretudo, a formação do espaço responderá a uma procura minuciosa das necessidades humanas, resolvendo no plano da forma as ambiguidades e as contradições das exigências pessoais e sociais… – e isto é que é novo – tomados na sua existência concreta, nos seus impasses e contradições – como têm vindo a ser pressentidos pelas ciências humanas (fenomenologia, psicologia, sociologia).” É esta postura que Portas considera ser “uma nova etapa de enraizamento cultural e social”, sendo que “uma maturação artística se não produz sem uma relação eficaz e operativa com a realidade que interpreta… em plena revisão do conceito de modernidade.”

Neste elenco não pode ser esquecido Raul Hestnes Ferreira, persistente divulgador da arquitectura da Finlândia e da obra de Aalto entre nós, após ter trabalhado neste país durante um ano (1957/58). No seu regresso apresentou comunicações na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, e na Escola Superior de Belas Artes do Porto.

As obras

Apesar do interesse pela obra de Aalto que estes textos documentam, será apenas em Novembro/Dezembro de 1960, no nº 60, que a mesma revista “Arquitectura” publicará pela primeira vez em Portugal algumas das obras do arquitecto, poucos meses depois da exposição de arquitectura finlandesa em Lisboa, onde o mestre estava largamente representado.

Säynätsalo, Sunila, a Caixa de Pensões e o plano de Imatra, este com grande desenvolvimento, ocupam várias páginas da revista, acompanhadas de uma introdução de Jorge Silva e de excerptos de um divertido diálogo entre Aalto e Siegfried Gideon transcrito da revista finlandesa “Arkkitehti” (nº ½ de 1958).

Mais tarde, no nº 63 (Dezembro de 1963), a revista mostra o Centro Cultural de Wolfsburgo, obra que em Janeiro de 65 o nº 76 da “Binário” também documenta. Esta mesma revista já publicara antes (nº 68, de Maio de 64) o grande edifício residencial de Bremen.

Mas é novamente na “Arquitectura” (nº 91, de Janeiro/Fevereiro de 66) que uma documentação circunstanciada da primeira grande obra de Aalto é apresentada em original português. Trata-se de “Notícia de Paimio”, da autoria de Romeu Pinto da Silva, como resultado de uma viagem à Finlândia.

A justificar a reportagem, o autor alude à insuficiente documentação publicada em revistas acerca desta obra capital de Aalto, não permitindo a sua completa percepção. Neste sentido, são publicadas numerosas fotografias, a partir de ângulos de visão indicados numa planta esquemática do sanatório, e que são objecto de comentários esclarecedores chamando a atenção para aspectos particularmente interessantes.

No texto, Pinto da Silva explica que “toda a articulação de Paimio nada tem que ver com a defesa de teses figurativas nem com os apriorismos geométricos da época purista. Ele é outrossim a consequência de uma tomada de posição em relação a um programa, forjado em ideais de humanização do organismo arquitectónico.”

Finalmente, é na mesma revista “Arquitectura”, agora dirigida por José Ressano Garcia Lamas, que no nº 152 de 1984 é publicado um importante ensaio intitulado “Alvar Aalto e os seus códigos”, da autoria de Victor Consiglieri, Carlos Alberto Marques e Isabel Robalo. Neste trabalho é feita uma exaustiva análise à complexidade do desenho de Aalto, chamando a atenção, entre outros aspectos, para o seu movimento e dinâmica, para o equilíbrio volumétrico das assimetrias e para a importância do percurso como propriedade fundamental da caracterização do espaço.

Um sucinto balanço

A cronologia das publicações a que se fez referência, e que cobre toda a década de 50, mostra como a atenção prestada entre nós ao pensamento de Aalto coincide com o desencadear do processo de revisão crítica do modernismo na arquitectura portuguesa – processo para o qual o mestre finlandês terá fornecido um importante contributo.

Os modos e formas como esta nova fase se foi desenrolando ao longo dos anos sessenta em Portugal permitem avaliar como a influência de Alvar Aalto se repercutiu na arquitectura que por cá se foi produzindo. Não através de receitas estilísticas ou vocabulares, a despeito do forte impacto formal que é patente nas suas obras, mas muito mais profundamente, e por isso mais escondidamente, na prática do ofício e na maneira de sentir a arquitectura como expressão da riqueza e da complexidade da vida humana nas suas relações com a natureza e com a sociedade.

Felizmente para nós, a obra de Aalto não se traduziu numa moda, o que se deve não só às características do autor e da sua arquitectura, como também à forma como esta foi sendo apresentada nas publicações portuguesas: não se limitando a reproduzir as sucessivas realizações do mestre finlandês – de que aliás se ia tomando conhecimento através das revistas estrangeiras – mas antes a penetrar no segredo da sua génese, procurando descortinar aquilo que era novo na sua atitude perante os desafios da profissão. E isto ficamos sem dúvida a dever à clarividência dos que entre nós procuram dar a conhecer o pensamento de Alvar Aalto.

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Alvar Aalto e a arquitectura em Portugal”. Alvar Aalto: Arquitecto. Almada: Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea, 1998, pp. 101-107. [Catálogo de exposição]
Existe original impresso, 8 p.

ALVAR AALTO (1898-1976). Arquiteto.