Arquitetura

Cassiano Branco

A PERSONALIDADE E A OBRA DE CASSIANO BRANCO NA CIDADE DE LISBOA

A singularidade de Cassiano

Companheiro de geração de um conjunto de arquitectos que protagonizaram em Lisboa as correntes modernistas da Arquitectura na década de 30 e que mais tarde evoluíram para soluções estilísticas mais de acordo com o padrão nacionalista que o Estado Novo quis imprimir à Arquitectura. Cassiano Branco tem uma carreira e uma produção em extremo singulares.

Relembremos sucintamente o contexto da época no que se refere ao panorama da Arquitectura e da construção na cidade. O Estado, no desejo de afirmar pela mão de Duarte Pacheco, que chegou a acumular os cargos de Ministro das Obras Públicas e de Presidente da Câmara de Lisboa, uma pujante e inovadora política que mais tarde viria a ser apodada de «obras de fachada», encomendava a arquitectos de nomeada trabalhos significativos que em parte iriam modificar a paisagem da cidade. Enquanto Pardal Monteiro projectava o Instituto Superior Técnico, o Instituto de Estatística e as Gares Marítimas, Jorge Segurado encarregava-se da Casa da Moeda e do Liceu Filipa de Lencastre, os Rebelos de Andrade da Escola Naval do Alfeite, Cristino da Silva da Praça do Areeiro, Carlos Ramos do Instituto de Oncologia e Cotinelli Telmo da Estação do Sul e Sueste. Eram tudo obras marcantes que – à excepção da Praça do Areeiro – marcaram a conjugação de uma forte política de Obras Públicas com um despertar para as novas correntes animadas pelo Movimento Moderno. Mas Cassiano Branco não foi contemplado, nem nunca teve praticamente uma encomenda estatal.

Enquanto este era o panorama da construção oficial, a construção civil de iniciativa privada conhecia também um período de grande actividade, motivada pela procura crescente de habitação e pelo proteccionismo fiscal que o governo lhe concedia. Protagonizado por uma onda de construtores oriundos de Tomar, que acrescentavam novos bairros à cidade, este surto de construção caracterizava-se por não recorrer senão excepcionalmente à colaboração de arquitectos: os projectos eram quase sempre assinados por engenheiros ou mesmo construtores civis diplomados. Verificava-se assim uma dicotomia que só com o rodar dos anos se foi esbatendo: os arquitectos eram para a construção oficial – os engenheiros e construtores para a iniciativa privada na habitação.

Ora bem: Cassiano trabalhou intensamente para este sector, ao mesmo tempo que para alguns projectos de equipamento urbano, como foram o caso do Hotel Vitória e dos cinemas Éden e Império, estes últimos onde a sua intervenção é parcial, embora marcante. Podemos assim dizer que Cassiano Branco popularizou a arquitectura modernista, difundindo-a por toda a cidade, enquanto os seus colegas de geração produziam obras de encomenda pública que, embora notáveis, eram acontecimentos singulares.

A construção civil em Lisboa

Qual o panorama que Cassiano Branco veio encontrar no início da sua intervenção?

Ao longo de todo o século XIX, a arquitectura dos prédios de Lisboa não conseguiu desfazer-se da herança pombalina. Os prédios chamados de rendimento caracterizavam-se por fachadas de janelas de desenho rectangular, com ou sem sacadas e de espaçamento uniforme. A partir dos meados do século, vãos com arcos de volta perfeita e platibandas por vezes de balaustrada introduziram algumas novidades, por influência do estilo neoclássico. Mas só na viragem do século, enquanto se construiam as Avenidas Novas, o estilo eclético europeu fez a sua aparição em Lisboa, tendo sido substituído no desenho das fachadas pelo Art Deco no início dos anos 30. Tudo isto desenhado nas pranchetas de construtores civis, que iam seguindo as modas da época, com a ausência quase total de arquitectos.

Foi em pleno período Art Deco, cujo expoente mais expressivo é o chamado Bairro Azul (porque as persianas eram pintadas desta cor), que Cassiano começou a fazer projectos para a construção civil, constando que se ocupava sobretudo do desenho das fachadas, deixando porventura aos engenheiros e construtores a divisão interior, que se procurava de acordo com as conveniências do mercado. Este período coincidiu com uma mutação importante na tecnologia da construção, que foi a introdução do betão armado na construção dos pavimentos (ainda não na estrutura das paredes, fenómeno que só veio a ocorrer bastante mais tarde). Se bem que Cassiano tenha provavelmente projectado prédios ainda com pavimentos de madeira, a arquitectura nova que protagonizava ganhava assim coerência, como expressão formal de novos processos de construção com base no betão armado.

Com a intervenção de Cassiano Branco, em prédios notáveis como o da Av. Álvares Cabral e o da Rua Nova de S. Mamede, a arquitectura modernista passou a dominar o desenho das fachadas, tendo sido retomada e repetida por construtores civis nos mais diversos bairros da capital. Exemplo interessante é o do Bairro Lopes, ao Alto de S. João, de características modestas, onde as fachadas glosam os temas de Cassiano numa infinidade de matizes.

A arquitectura de Cassiano Branco

Mas como se caracterizava esta arquitectura que tão profusamente marcou Lisboa?

Em primeiro lugar pela introdução assumida e corajosa da 3ª dimensão. As fachadas de Cassiano são movimentadas, quer ondulantes nas suas curvas voluptuosas, quer de uma geometria quebrada de planos e arestas, sempre ultrapassando o plano marginal. Aqui está uma característica tornada possível pela introdução do betão armado, permitindo balanços em consola, que produziam ricos valores de claro-escuro. Mas Cassiano Branco soube expressar o carácter plurifamiliar dos prédios liboetas, ao geometrizar as fachadas delimitando com vigor os diferentes andares e apartamentos. Estas linhas divisórias entre pisos e entre esquerdo e direito de um mesmo prédio pode dizer-se que era novidade e marcaram profundamente a arquitectura da época. O gume vertical cortando as fachadas a meio foi um elemento que se repetiu até à exaustão, constituindo um traço marcante do dedo de Cassiano Branco. Para além disto ainda Cassiano marcava com nitidez as entradas, sobrepujando-as com consolas e desenhando caprichosos motivos nas suas portas de ferro. Da mesma forma o coroamento dos edifícios era movimentado, recortando-se contra o céu.

Estas características pôde Cassiano Branco introduzi-las e desenvolvê-las com mestria e originalidade ao longo de uma ou duas décadas, até que a pressão exercida pela arquitectura oficial o obrigou a mudar de rumo em direcção ao que depois se veio a chamar o «português suave», expressão de uma pretensa arquitectura nacional que o regime salazarista impôs aos arquitectos contra aquilo que se considerava arquitectura internacional. E não deixa de ser curioso verificar, com o recuo do tempo que agora nos é consentido, como a expressão plástica de Cassiano se casava bem com Lisboa, adquirindo uma feição própria que a distinguia dos figurinos internacionais, embora dentro da linguagem modernista.

A pressão da arquitectura oficial, que nas encomendas do Estrado se exercia de forma directa, não deixou de fora a construção privada, de tal forma que Cassiano Branco se terá visto constrangido a adoptá-la. Mas aqui fê-lo de maneira irónica, como que troçando dos seus mentores, como quem diz: se é isto que querem, então aí vai! É assim que surgem os prédios dessa fase de decadência, como são o torreão da Praça de Londres e o gaveto da Fontes Pereira de Melo. Os motivos da arquitectura «nacional», em vez de cultivados com aplicação, como fazia a generalidade dos arquitectos de então, são por Cassiano Branco como que caricaturados, atingindo uma expressão de ridículo.

O homem e a obra

Afastado da encomenda oficial por questões que se prendiam com as opiniões políticas que sem rebuço manifestava, afirmando-se claramente como democrata e oposicionista do regime, Cassiano Branco soube fazer do seu modesto trabalho como projectista de prédios lisboetas uma obra de grande repercussão e alcance.

É verdade que soube aproveitar as raras oportunidades que se lhe depararam para obras de maior vulto, como são o Hotel Vitória, o Éden ou o Coliseu do Porto – tudo encomendas privadas. Mas foi ali nos prédios espalhados pela cidade que o seu labor criativo se afirmou de forma singular, criando manchas de fulgor e de modernidade nas ruas de Lisboa. O seu carácter comunicativo, jovial e anti-elitista levou-o a estabelecer pontes com o mundo da construção, que não fazia encomendas aos arquitectos de prestígio e que marcava com acentuada mediocridade os novos bairros da capital.

E se na época estas obras correntes não mereceram especial atenção, hoje, com a importância que se reconhece à arquitectura dita anónima para a paisagem urbana, essas obras são naturalmente enaltecidas e notabilizam o seu autor. Na verdade, se os edifícios singulares, nomeadamente os de uso público – e Cassiano também os fez – são indispensáveis para configurarem uma cidade, a arquitectura corrente, que faz as ruas, não o é menos. É por isso que urge conhecer, divulgar e proteger a obra de Cassiano Branco, notável arquitecto português dos meados do século XX.

PEREIRA, Nuno Teotónio. “A personalidade e a obra de Cassiano Branco na cidade de Lisboa”. Cassiano Branco: uma obra para o futuro, 1991, pp. 150-154. [Catálogo de exposição].
Exposição realizada no Cinema Eden, Lisboa, maio 1991.
Republicado em Escritos: 1947-1996: selecção. Porto: FAUP Publicações, 1996, pp. 242-249

CASSIANO VIRIATO BRANCO (1897-1970)
Colóquio nacional: Cassiano Branco, 50 anos depois (2020)
Vida & obra de Cassiano Branco (documentário de Edgar Pêra,1991)