Arquitetura

Cristino da Silva

CRISTINO, MESTRE DE UMA GERAÇÃO REBELDE

Professor durante longos anos da cadeira de Arquitectura na Escola (ainda não superior) de Belas Artes de Lisboa, Cristino da Silva – Mestre Cristino, como era tratado pelos alunos, marcou com a sua forte personalidade sucessivas gerações de arquitectos. Alto, impulsivo, voluntarioso, a sua passagem pelos estiradores no velho convento de S. Francisco constituia o momento crucial em que o “partido” adoptado por cada um dos estudantes podia ser paternalmente acalentado ou chumbado sem remissão.

Se muitas vezes os argumentos que utilizava num ou noutro sentido não convenciam os alunos, não havia dúvida de que eram sentidos e convictos – e por isso sinceros. Efectivamente, Cristino entregava-se nesses momentos generosamente à missão, como ele a entendia, de conduzir os jovens iniciados pelos caminhos da “verdadeira” arquitectura. E que caminhos eram esses?

Fortemente influenciado pelas Beaux-Arts da Escola de Paris (de que gostava de contar o clima e as peripécias da entregas dos trabalhos à última da hora) o seu sentido da Arquitectura era indissociável da chamada “grande composição”. Por isso ignorava os pequenos programas de uma estação de correios ou de habitação, da escola de bairro ou da intervenção urbana de escala mais modesta. Isso, para Cristino, não chegava para fazer Arquitectura. Os trabalhos escolares de que me lembro foram o arranjo monumental do grande espaço ajardinado à ilharga do Palácio de S. Bento – cujo projecto é da sua autoria – e um gigantesco observatório astronómico no cume da Serra da Estrela. A grande dimensão dos programas apelava à monumentalidade e à grandiloquência, atributos que Mestre Cristino considerava ser o apanágio da verdadeira Arquitectura. Adequação às necessidades, aspectos de funcionalidade ou conforto, concepção dos espaços interiores, técnicas de construção – tudo isso ficava de fora ou era visto de raspão. Por isso ficávamos com a sensação de que a Arquitectura se resumia ao jogo de volumes e à composição das fachadas. A Arquitectura exigia rasgo e este só se podia revelar com a grande escala.

Foi neste contexto que o curso de que fiz parte, entre o início da 2ª guerra mundial em 1939 e o imediato pós-guerra, procurou abrir caminho para a modernidade, rompendo as trevas à sua volta. Manuel Tainha, Coutinho Raposo, Victor Palla, Carlos Manuel Ramos, Costa Martins, Blasco Gonçalves, Alzina de Meneses, Garizo do Carmo e mais alguns outros, dispunhamos de poucos instrumentos para suportar os nossos anseios e argumentar com o Mestre. Por causa da guerra, as revistas de arquitectura escasseavam.

Alguns, mais afortunados, podiam encontrá-las nos ateliers onde trabalhavam, como era o meu caso com Carlos Ramos. As revistas americanas, que ainda iam chegando cá, não nos interessavam, dominadas pelo estilo academizante género Rockefeller Center ou Skidmore, Owens & Merril. Salvava-se a “Werk”, que se vendia na recente Bucholz da Avenida da Liberdade, porque a Suiça se mantivera neutral e continuava a construir imune ao contágio dos vizinhos. Nem muito nos valia o Corbu, de cujos livros anteriores à guerra só ouvíamos falar, e os recentes, publicados sob o regime de Vichy na França ocupada, achávamos despidos da radicalidade do Mestre, que tanto nos entusiasmava. Assim, tudo o que apanhávamos de arquitectura moderna produzida lá fora era sorvido avidamente. Lembro-me de uma escola primária em Villejuif, no cinturão vermelho de Paris, projectada por André Lurçat antes da guerra, e que correu com êxtase de mão-em-mão.

Curiosamente, a produção portuguesa da vanguarda dos Anos 30 era desdenhosamente ignorada: a Casa da Moeda e o Liceu Filipa, de Jorge Segurado; o pavilhão de Oncologia e o prédio da Garcia de Orta, de Carlos Ramos; a garagem do “Comércio do Porto”, de Rogério de Azevedo; os prédios lisboetas e o Eden, de Cassiano; a Escola Naval do Alfeite, dos Rebelos de Andrade; a central telefónica do Estoril e a Emissora Nacional, de Adelino Nunes; e mesmo o Capitólio, o Liceu de Beja e o café Portugal, do próprio Cristino – apesar de muitos destes exemplares terem sido publicados na revista “Arquitectos” do Sindicato, dirigida por Cottinelli Telmo. Talvez porque quase todos estes autores já tinham nesta altura atraiçoado a causa e estavam a produzir as mascaradas que o regime desejava e, quando necessário, impunha.

Por outro lado, as obras de Pardal Monteiro (IST, Estatística, Diário de Notícias) e o pavilhão da Exposição de Paris de 37, do jovem Keil, eram considerados impuros, de compromisso. Éramos assim órfãos desamparados num oceano de hostilidade e indiferença, apenas guiados pela luz bruxuleante de uns raros e longínquos faróis de modernidade.

No Outono de 1941 as posições extremaram-se na Escola quando o governo nazi trouxe a Lisboa uma vistosa exposição da Moderna Arquitectura Alemã, patente no grande salão das Belas Artes. Estava-se então no auge do poderio hitleriano: depois de varrida a Europa Ocidental em 1940, Rommel chegava quase à vista do Cairo, os exercícios do III Reich ocupavam a Grécia e invadiam a União Soviética numa ofensiva que se afigurava imparável.

A exposição, designada na versão germânica do catálogo por “Nova Arquitectura Alemã”, era traduzida em português por “ Moderna Arquitectura Alemã”. Podia não ser inocente esta discrepância : talvez se quisesse vender gato por lebre, já que a expressão “moderna” exercia um declarado fascínio sobre as novas gerações, e curiosamente, uma das revistas mais procuradas era a “Moderne Bauformen”, suspensa pelos nazis quando chegaram ao poder.

Quem apresentou a exposição em Lisboa foi Albert Speer ele-próprio, o arquitecto preferido de Hitler, que chegou a ministro do Armamento na fase final da guerra, tendo sido condenado no tribunal de Nuremberga a uma longa pena de prisão à qual conseguiu sobreviver. E o cicerone de Speer em Lisboa foi, nem mais nem menos, do que Cristino da Silva, talvez pela razão de a mulher deste ser alemã e assim falar a língua do ilustre hóspede. Segundo nos relatou na aula, ao passarem pelo Terreiro do Paço, o arquitecto de Hitler mostrou-se deslumbrado, tendo exclamado: “Agora, na Alemanha, vamos também fazer coisas assim!”

O Mestre ficou fascinado com a exposição. Olhando desdenhosamente para o estirador de um de nós, proclamou que o que teimávamos em fazer pertencia já ao passado e que a arquitectura do futuro seria a que Speer tinha vindo mostrar.

Foi certamente fruto desta admiração o que julgo poder considerar-se o projecto de mais acentuada feição germânica-nazi construído entre nós: o edifício de promoção municipal nos Restauradores tornejando para a rua 1º de Dezembro e já construído na década de 50 (a par do Hospital de Santa Maria, mas este da autoria deum arquitecto mesmo alemão, Herrmann Diestel).

Alguns anos após o modelo fundador da pretensamente nacional arquitectura do Estado Novo que foi a Praça do Areeiro, e das suas variações no quarteirão Sidónio Pais/António Augusto de Aguiar, Cristino da Silva dá aqui o seu contributo para uma nova, ainda que não confessada, arquitectura internacional: aquela que se perfilava, no auge do poderio nazi, para corporizar, na eternidade da pedra, a “nova ordem mundial” anunciada como uma aurora pela propaganda de Hitler.

Com o desenlace da guerra, Mestre Cristino foi perdendo as suas certezas, deixando de bradar que andávamos por caminhos errados. Desceu do seu pedestal e o seu sorriso tornou-se mais frequente. Os radiantes olhos claros já não tinham o fulgor com que por vezes nos fulminava e os seus gestos largos, tantas vezes ameaçadores, tornavam-se agora afáveis. Assim, estas transformações permitiram descobrir o professor que se entregava generosamente ao ensino, que buscava a beleza e a harmonia, e que amava a sua profissão. Mestre de uma geração rebelde, uma coisa pelo menos ele nos legou: a paixão pela Arquitectura.

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Cristino, Mestre de uma geração rebelde”. Original impresso, 20 nov. 1997, 4 p.
Publicado em Luís Cristino da Silva: arquitecto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/CAMJAP, jan. 1998, pp. 139-142. [Catálogo de exposição]

LUÍS RIBEIRO CARVALHOSA CRISTINO DA SILVA (1896-1976). Arquiteto.