Falar de Ernesto Borges a um escasso ano da sua morte não é fácil. Por um lado, as memórias da sua passagem entre nós permanecem muito vivas; mas por outro, a brutal realidade da sua partida ainda nos sufoca a voz e prende a escrita. Presença e ausência afrontam-se assim no nosso íntimo num conflito tão difícil de superar como é o mistério da morte.
Jovem ao longo da vida
Tive a sorte de encontrar Ernesto ainda nos anos da nossa juventude. Levado pela mão de Bartolomeu Costa Cabral, então estudante de arquitectura, e de José Lucena, engenheiro civil, entrou no nosso gabinete de projectos num 5º andar da rua Rodrigo da Fonseca onde também estavam os meus colegas Raul Chorão Ramalho, Manuel Alzina de Menezes e Manuel Tainha. E Ernesto logo nos surpreendeu com a sua simpatia generosa e o seu entusiasmo contagiante – características que sempre manteve vivas ao longo do tempo. Ele era o mais expansivo, o mais imaginativo, o mais sonhador também. E o que tomava mais iniciativas ao nível da convivência: encontros, viagens pelo País, idas a espectáculos, participação em acontecimentos.
Lembro-me de uma viagem inesquecível às Beiras no primeiro carro que tive, uma minúscula joaninha Renault, que ele logo explicou que era uma versão barata do carocha VW do engenheiro Porsche, construída por este na França do após guerra. Ernesto, já então seduzido pelas máquinas, não descansou enquanto não pegou no volante em plena Serra da Estrela, e logo carregou no acelerador. Mas numa das intermináveis curvas da estrada perdeu o controlo da direcção e vimo-nos de repente a rodar em direcção ao abismo. Porém, numa fulminante manobra, vira o volante em sentido oposto salvando-nos a vida, mas embatendo fragorosamente contra o talude. Como o carro tinha o motor atrás pudemos continuar viagem, mas Ernesto não se recompôs tão cedo, pois aquele acidente tomou-o como uma humilhação à sua destreza. E só recuperou o à-vontade habitual depois de, na cascata do Poço do Inferno, perto de Manteigas, ter mergulhado do alto de uma fraga e praticado exercícios de ginástica que nos deixaram assombrados. Mas na visita a um parente na aldeia de Matança, perto de Fornos de Algodres, pediu que o carro ficasse afastado da casa, para não sofrer o vexame de ter que assumir o acidente.
Se este foi um episódio da sua juventude, a verdade é que Ernesto foi a muitos títulos jovem até ao fim da vida, não deixando que as dores que teve de suportar com frequência apagassem o que havia em si de jovialidade, entusiasmo e utopia.
Um pioneiro da indústria
No campo profissional Ernesto Borges tinha sede da inovação, possuindo ao mesmo tempo a capacidade para levar a bom termo os empreendimentos industriais de carácter pioneiro a que se lançou.
Fervoroso adepto de Ferreira Dias, o impulsionador da electrificação e da industrialização do país após a 2ª guerra mundial, teve um primeiro emprego, ainda quando estudante, na construção da barragem de Pracana, no vale do Tejo. A partir daí, acompanhou apaixonadamente a construção dos vários sistemas hidroeléctricos – Zêzere, Cávado, Douro, Tejo – que vieram colmatar um atraso de décadas na produção energética nacional. Acompanhei-o em algumas das suas visitas de trabalho a essas portentosas obras e também me deixei contagiar pelo seu entusiasmo.
No entanto, a sua vocação era a de criar indústrias com as suas próprias mãos e as escolhas que fez destacam-se pelo seu pioneirismo, ultrapassando ventos e marés.
Começou pelas lentes, com a criação da IOLA em Setúbal, continuou com a MESSA no fabrico de máquinas de escrever, erguendo mais tarde a ROL, instalada nas Caldas da Rainha.
A criação destas indústrias teve uma característica comum a todas elas: o fabrico em Portugal de artigos até então importados, contribuindo assim para a economia de divisas, para a introdução de tecnologias inexistentes no País e consequentemente para o aumento de emprego qualificado. Aparte a ROL, cuja implantação entre nós foi negociada com uma grande empresa alemã da indústria dos rolamentos, para as duas primeiras Ernesto Borges teve que obter, organizar e planear tudo, desde a angariação de capitais até à aquisição de tecnologias e à formação da mão de obra. Foram indústrias criadas a pulso, peça-a-peça, persistente e inteligentemente vencendo as resistências habituais num meio ainda muito dominado por uma mentalidade conservadora enraizada na sociedade e reforçada pela matriz rural do regime político. Dos pormenores do que foi essa epopeia pessoal poderão com mais propriedade falar alguns dos que foram seus companheiros em tais empresas. Mas uma interrogação, e também uma resposta, vêm a propósito: por que razão Ernesto Borges, pioneiro criador de empresas de sucesso, não criou um império e não se transformou num capitão da indústria? A resposta só pode ser uma: o que movia Ernesto não era a ambição de enriquecer, mas a vocação de ser útil.
Uma amizade multilateral e multiplicadora
A amizade peculiar de Ernesto era diferente da que encontramos em nós próprios e em tantos amigos com que construímos as nossas vidas. Porque não era só bilateral, de pessoa para pessoa – ele porfiava em que os seus amigos fossem também amigos uns dos outros. O seu afecto por cada um era indefectível, mas a sua excepcional peculiaridade consistia em suscitar e alimentar verdadeiras galáxias de amizades. Era assim que os amigos feitos na actividade profissional passavam a ser logo “amigos da casa”, ao mesmo tempo que procurava ligar os amigos recentes aos que já vinham de trás. E tudo isso sem diluir em nada as amizades interpessoais, de amigo para amigo, sempre cada vez mais profundas. Era aquilo a que se chama um coração aberto, mas que escapava ao risco da banalização e da dispersão.
Por ser assim, nas suas vindas a Lisboa, desde que se radicara no Porto, combinava jantares com todo o grupo do antigo atelier e não com um e outro em separado. Não para poupar tempo, pois às vezes ficava por vários dias, mas porque era o cimento do grupo.
De muitas outras facetas da vida de Ernesto se poderia falar, por exemplo de como ele era Pai. Mas aqui, o melhor é dar a palavra aos seus filhos. Neste breve testemunho o que procurei foi mostrar como ele comungou da minha vida e da vida da Maria Natália, numa amizade fecunda que também partilhámos com Eunice e com os seus filhos ao longo dos anos. Na sua peregrinação de terra em terra – Lisboa, Luanda, Porto – em que descobrimos em que os amigos podem estar longe da vista mas estão sempre perto do coração.
Lisboa, no dia de anos da Joana, 25 de Dezembro de 1999
PEREIRA, Nuno Teotónio. [Falar de Ernesto Borges]. Original impresso, 25 dez. 1999, 4 p.
Publicado em Ernesto Borges, s.l., [2005], pp. 137-140.
UMA CARTA RECONFORTANTE
Cá estou eu a responder ao teu comovente apelo para que os amigos aparecessem. Mas faço-o respondendo a um impulso interior: é que desde o rue dia de Natal – já lá vão 3 semanas – temos vivido momentos (ia a escrever) – mas não: em permanência, uma profunda ligação afectiva. A doença e a morte do teu Pai têm sido uma exaltação da amizade e do amor. Tenho a certeza que todos os que viveram aquelas horas nos Prazeres não mais as esquecerão durante a vida. E para os que estão, como eu, na recta final, trouxeram a prova de que, numa sociedade onde os sinais mais visíveis que dominam o quotidiano realçam o egoísmo ou a indiferença perante o sofrimento dos outros, o amor está e estará sempre presente, embora de uma forma escondida, como lhe é próprio. A vida do teu Pai foi guiada pela amizade e pelo amor e assim é e continuará a ser com vocês, como foi tão claramente demonstrado naquelas horas. E tu, querida Joana, tens tido um papel fulcral em tudo isso.
Emocionou-me encontrar nos Prazeres, à nossa volta, os 6 fundadores do atelier da rua Rodrigo da Fonseca, há perto de meio século. Lá estiveram, ainda com vida, os 4 arquitectos: o Raul – o mais velho de todos nós – o Manuel Tainha, o Manuel Alzina e eu. Estiveram também, com uma presença através das famílias e em espírito, os 2 engenheiros que já nos deixaram: o Zé Lucena e o teu Pai, que foi o elo de ligação. Só faltou o Bartolomeu, que não pôde ser prevenido a tempo, mas que não era sócio; era como que um jovem aprendiz, levado pela mão do teu Pai. O facto de rodos serem ou terem sido excelentes profissionais e cidadãos exemplares é uma coisa de que me orgulho, modéstia à parte…
Se ainda escrevesse artigos para os jornais, certamente fazia agora um sobre o papel pioneiro do teu Pai na industrialização do País. Numa época em que a cultura industrial estava ainda incipiente, mas em que a substituição de importações por produtos fabricados em Portugal era crucial para o desenvolvimento do País, o teu Pai foi capaz de erguer, à custa de esforço e competência, e num curto espaço de tempo, nada menos do que três indústrias que não existiam em Portugal: lentes, máquinas de escrever e rolamentos de esferas. Só uma, a MESSA, deixou de existir, por motivo do aparecimento dos computadores; as outras duas, ao que sei, continuam a produzir em pleno.
Muitas coisas importantes da vida vivi-as com o teu Pai. Havemos de ter longas conversas sobre isso, não para cultivarmos uma saudade apenas, mas para ganharmos força para o que está para vir.
Querida Joana, um beijo muito terno para ti e para os teus irmãos, para a Mãe também que associo a muito do que escrevi. Para todos, um beijo da Irene.
O Padrinho Nuno
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Uma carta reconfortante”. Ernesto Borges, s.l., [2005], pp. 16-17.
ERNESTO BORGES (1924-1998). Engenheiro.